Gabriel García Márquez e Guimarães Rosa gostariam de entabular uma conversa sobre A cabeça do santo, de Socorro Acioli, por diversos motivos. O primeiro é a história — essencialmente boa. Samuel é um jovem que começa a narrativa num estado miserável de existência. Ele vaga pelas estradas do interior do Ceará, pelas cidades de Juazeiro, Candeia, Canindé para cumprir a promessa feita à mãe às vésperas de sua morte: encontrar a avó paterna Nicéia e o pai Manoel e acender velas aos pés dos santos de sua devoção. E num fragmento de tempo a vida do protagonista muda. Os outros motivos de que falo vão surgindo ao longo da narrativa e da nossa leitura. Mas posso enunciar alguns, não todos, para que o leitor possa descobrir as qualidades do texto, como eu fiz em cada nova página.
Samuel vive uma série de peripécias, de desenlaces, descobrindo fatores de sua própria vida e acessando as suas origens. Filho de Mariinha com Manoel Vale, fora criado pela mãe, expulsa e renegada pelo pai, pela gravidez e a vergonha de ter sido desonrada. Sobrevivem, mãe e filho, a custa da ajuda de pessoas boas e do trabalho com palha que Mariinha realiza. Doente, portadora de sífilis, que Samuel julga ter sito transmitida pelo pai, ela morre, deixando os pedidos ao filho.
Ao contar a trajetória de Samuel, Socorro incorpora elementos que vão ficando evidentes na construção do romance. Um deles é a religiosidade. Santos que estão presentes no imaginário do povo nordestino e que funcionam como fonte de fé e misticismo servindo de eixo para histórias contadas de geração a geração. Padre Cícero, Santo Antônio e São Francisco formam a tríade divina que compõe a base da narrativa. Cada um no pedido da mãe deve receber uma vela, aos seus pés, para salvar a sua alma.
O místico em A cabeça do santo não fica apenas na crença dos milagres dos santos. A mãe de Samuel, assim como todas as mulheres de sua família possui o dom de prever a própria morte. Essa característica do romance se expande no protagonista. Ele mesmo tem a capacidade de ouvir vozes. Após ser expulso da casa da avó, ele vai por ordem dela mesma, alojar-se em uma gruta mais afastada. A gruta é na verdade a cabeça degolada de uma estátua enorme de Santo Antônio, padroeiro da cidade de Candeia.
Atacado por cães, escondido, doente, Samuel ouve as histórias contadas pelas vozes que vertem das paredes da cabeça. Auxiliado por um garoto, Francisco, ele se recupera e acaba achando uma utilidade para as vozes que falam o tempo todo. Ele se torna um Mensageiro do santo, fazendo com que as mulheres resolvessem seus problemas amorosos.
E então a narrativa toma rumos diferentes: o místico torna-se o começo de descobertas e desvelamentos sobre a história de Candeia, suas personagens e a vida de Samuel.
Sobre a cidade, descobrem-se as irregularidades de um prefeito, a história de um santo mal construído e da morte de uma comunidade. Por superstição dos moradores e por descaso da prefeitura. Samuel é odiado e perseguido pelo poder local, que não deseja responder pelas suas ações erradas e inércia em relação à cidade, assim como a ressurreição de um espaço que julgavam morto: Candeia não era mais a cidade abandonada.
As personagens vão se desdobrando, mostrando suas histórias particulares, origens. E toda a trama vai se encaixando, como as peças que compõem a própria imagem do santo. Histórias de amor, morte, abandono e esperança, todas depositadas na possibilidade de que o dom de Samuel e das vozes ouvidas consiga resolver. Socorro nos apresenta um quadro vasto de personalidades a que são atribuídas características como solidariedade, esperança, afetuosidade e outras ruins, mas que também fazem parte tanto das personalidades ficcionais como reais: ganância, avareza, rancor e tantas outras.
Samuel encontra seu pai, que de forma circular contribuíra para a decadência da cidade. A história vai se misturando à de Candeia e o passado torna-se mais claro e o presente assume um sentido próprio.
Descobre entre as vozes, a história de Rosário. Que herdara da mãe africana o hábito de cantar às cinco da manhã e às cinco da tarde. É a voz que acalma o coração de Samuel, todos os dias. A beleza da voz — associada ao mistério das canções em uma língua que oscila entre o português e outra desconhecida — vai despertando em Samuel o que mais tarde se descobriria como amor.
Atendendo aos pedidos da mãe, reforçados pela avó, ele completa o sentido da sua missão, cumpre a sua jornada de herói. Samuel vivencia a pobreza e a dor pela perda, constrói amizades, ajuda a reconstruir uma cidade, a bondade de um santo e o passado de sua família.
É aos pés dos santos que ele encontra o que procura: Santo Antônio lhe entrega o pai, exilado na estátua degolada; São Francisco lhe entrega o caminho para Rosário, que agora lhe acalmaria o coração não apenas com a voz, mas com a sua presença.
Lendo a biografia de Socorro Acioli, percebemos que ela procurou aprender para exercer o que lhe sobra: talento. A cabeça do santo é a carta fiadora de Socorro: confiamos nela como autora. Confiamos na elaborada trama composta por elementos fantásticos (nos fascinam tanto), sistemas de encaixes entre passado e presente e uma circularidade que nos assombra e nos deixa curiosos. Por 168 páginas de texto, conhecemos Samuel e sua história, uma narrativa pungente de sobrevivência, de amor e, sobretudo de esperança. Se a literatura é o exercício artístico de representar a vida real, ou basear-se nela, Socorro fez isso com habilidade.