É um erro se iniciar a leitura de Salvar o fogo, imaginando-o uma extensão de Torto arado. São como pássaros de mesma pluma, mas com cantos distintos. Enquanto o primeiro e inescapável romance de Itamar Vieira Junior usava da construção literária para dar dimensão a um universo fecundo, de sincretismos e ancestralidades, no qual os simbolismos e os comentários críticos se irradiavam naturalmente das experiências dos personagens, este segundo livro parte de um constructo sócio-histórico para guiar os atores da trama num texto autociente das reflexões que propõem.
Trata-se de uma mudança de perspectiva na qual o debate ganha igual (ou um pouco mais de) relevância que a forma artística, resultando numa imaginação tendenciosa através da qual o enredo parece uma mira para se chegar a um alvo. A ficção, mesmo viva, mesmo robusta, mesmo engenhosa, não flui em seu curso espontâneo, pois está, em sua origem, comprometida com determinadas questões. O ponto de vista autoral se destaca e, em alguns casos, a composição romanesca não se desenvolve devidamente, pois sempre figura a preocupação em se filiar a um contexto mais geral, fora dos limites paginados.
Isto se evidencia logo na escolha do título do primeiro capítulo: A vingança tupinambá. Saber a que se refere é o suficiente para antecipar os desdobramentos da trama, portanto fica a dica para não se inteirar. Esta parte inicial é narrada por um personagem anônimo que, mais para frente, vai se apresentar como Moisés. O tempo que conta é o da infância, quando vivia com o pai e a irmã mais velha, Luzia, às margens do rio Paraguaçu, numa aldeia chamada Tapera, interior da Bahia. A mãe morreu em decorrência de seu parto, o que lhe impregna de uma culpa umbilical, e outros de seus irmãos buscaram no êxodo uma forma de ventura para seus destinos. O local subsiste do lavor febril, do que oferece a natureza desmaiada, além de ser controlado pelo catequismo sórdido de um mosteiro que, há séculos, oprime (e influencia a população a oprimir) qualquer manifestação contrária aos desígnios da Igreja Católica, assim amputando todas as raízes de uma herança afro-indígena.
Pela inflexão decantada deste menino, o autor confirma seu talento exuberante para a plasmação de mundo, com uma escrita elegante, magnética, dotada de uma substância poética que atua tanto para aplicar contornos maviosos aos cenários e aos seres quanto para ser meio de interpretação do plano metafísico. Arma-se, deste modo, um entrelaçamento da subjetividade lírica com o imagético da terra, do sentido de apreensão espacial que percorre a interioridade dos personagens para retratar e reconhecer o meio, dando amplitude e complexidade ao que concerne os conflitos psicológicos e sociais. É uma abertura de livro fascinante, que regula com precisão a potência ficcional e a visão crítica. Através das vivências de Moisés, da correnteza dos acontecimentos, revelam-se os ardis e as maldades dos monges, apoiados na impunidade da fé, sobretudo contra Luzia, que, em razão de uma deformidade e rebeldia aos dogmas cristãos, sofre com a pecha de bruxa. Atribuem ao seu comportamento algo de pecaminoso e sobrenatural, instituindo uma presença dramática utilizada para denunciar os estragos cometidos pela religião neste contexto característico de modo a evocar um vasto passado trágico.
A irmã tem uma relação de severidade e de preocupação com o menino, que se faz mais premente ante o primarismo do pai, intensificado pela bebida. Trabalhando como lavadeira do mosteiro, Luzia descobre que funciona ali uma escola proibida aos aldeões, e, lançando mão de um artifício, garante o ingresso de Moisés. Esta é a passagem mais bonita do livro. A descoberta da leitura e da escrita como um segundo nascimento, o desembarque num cosmo de compreensões e sentimentos, onde era possível “nomear as coisas, as pessoas, as emoções, os mais vagos pensamentos: o que estava fora e o que estava dentro”. A entrada da literatura na vida do menino, descrita com o encantamento das tintas autobiográficas, é a chave para a guinada do andamento da história, embora seu efeito estrutural precise superar um capítulo, ou parte deste.
Imaginário mágico e crítica social
Antes tem a segunda parte, nomeada Luzia do Paraguaçu, na qual a personagem citada assume a voz narrativa. Neste ponto, a trama faz um movimento de dobrar sobre si mesma, gerando alguns problemas, pois visita o passado não como método de expansão, e sim de contemplação. O texto perde ritmo e, em vários casos, fica a sensação de que está se repetindo. Faltou claramente o punho firme de um editor na subtração de certas passagens, em especial aquelas em que o diálogo de duas irmãs traz à tona demandas e posicionamentos que não são devidamente aprofundados. Por outro lado, este é o capitulo que institui Luzia a real protagonista do romance, precedendo a um tempo de violência, desamparo e segredos familiares. Assim como Chico Buarque faz em suas composições, Itamar tem uma sensibilidade única para interpretar o anímico feminino.
O relato da “mulher tocada pelo Mal” machuca, e põe em cena alguns nomes que são apenas mencionados no segmento inicial. Alzira, a mãe, toma parte da sina que se transveste de existência, sendo vetor de um pensamento que chama atenção para a mestiçagem em seu aspecto latente para se discutir o racismo. Esta é uma questão que estimula pensadores desde o século 19, remontando a formação do Brasil, o segregacionismo e o branqueamento da população. É oportuno e pertinente, sobretudo na conjuntura de episódios bem atuais, embora se precise ter cuidado para que a defesa de uma ideia não se transforme num silogismo.
Da reputação de Luzia em Tapera do Paraguaçu, emana uma tensão que infunde aqui e acolá uma atmosfera ambígua, a incorporação do aspecto antirrealista no texto. Não é novidade, Torto arado já bebia do gênero fantástico. Mas era um imaginário mágico do Guimarães Rosa de Sagarana, do mítico, das quimeras perpetradas na tradição oral do Brasil de dentro, diferente de Salvar o fogo que apreende as caracterizações e os traços recorrentes do universo do mexicano Juan Rulfo de Chão em chamas. Os paralelos se denotam nos descaminhos da construção do enredo, nas vozes interiorizadas que contam suas próprias histórias, abolindo as fronteiras do tempo para reverberar a condição humana em representações da finitude, da sexualidade, dos elos fraternais, da injustiça e das lutas pela terra.
A terceira parte, Manaíba, narrada em terceira pessoa, articula encontros e desencontros entre vários personagens para armar um labirinto de conjecturas que revela que todos são reféns de um mesmo trauma, ainda que a memória diferencie o destino de um a outro. Para os fãs de Torto arado, por estas páginas há uma surpresa empolgante.
Aqui também que o elemento fogo, atrelado a sentidos concretos e abstratos, expressa mais intensamente seu significado de ruína e purificação. A trama se alarga e conecta-se a temas contidos no segmento inicial, adquirindo o vulto épico de uma saga familiar. Uma pena que o capítulo final inverte a predominância da ficção, recorrendo a uma espécie de espírito do tempo, um relator onisciente que deixa de inventar para refletir, nada mais sendo que a voz do próprio autor. Deste modo, as andanças dos personagens, seus dramas e conflitos, não estimulam o leitor a reagir e gestar seu próprio conceito crítico, mas a ser induzido a um conceito crítico estabelecido. Todas as implicações do mundo plasmado são postas de lado para dar vez a discurso baseado em comentários sociais que acabam por se reduzir a um pedagogismo panfletário.
São pecados que, no entanto, não abalam a situação de Itamar Vieira Junior como um dos mais talentosos escritores de sua geração; o único, em décadas, que conseguiu, por mérito, transcender a barreira que separa o encrave literário da cultura popular, tornando tudo que escreve um evento, independentemente das críticas negativas ou positivas. A certa altura da narrativa, quando Moisés é seduzido pelos livros, surgem breves fragmentos de intertextualidade no qual o personagem declara que, contra o vazio da vida, usou a leitura para singrar “mares em busca de uma baleia-branca”. Salvar o fogo confirma que seu autor já arpou sua baleia-branca; agora é confiar mais em deixá-la guiar seus caminhos.