Chá & sacarina

O chá da Academia Brasileira de Letras e seus quitutes são o combustível para a eternidade
Paulo Coelho já saboreou o chazinho da ABL: poção mágica para as agruras do além-túmulo
01/05/2003

A imortalidade é um lanche.

Na tarde quente, os acadêmicos dão a prova dessa iluminação que eu tive e reparto aqui com vocês: São Paulo Coelho e os demais colegas tomam chá de cadeira da eternidade garantida só para eles, os imortais de terno e gravata, sentados nas suas cadeiras, sob as lentes do fotógrafo Ernani d’Almeida, da revista Quem.

Há fotos & photos. Claro que esta dá água na boca, causa admiração, enlevo, pasmo.

É tudo tão chique e bonito: o rococó ambiente, a luz suave, a ceia larga dos apóstolos do Mago, convocados para a sua estréia mágica como conviva à mesa desse truque supremo da Academia Brasileira de Letras (ABL): em onze minutos, converter merda em sopa de pedras do Rio Piedra à margem do qual choramos nós e Machado de Assis, lá no ossuário dele.

Se foi o grande Machado quem começou com essa frescura do “chá”, ele até que podia porque era o autor do Dom Casmurro, vá lá, todo escritor tem seu dia de A mão e a luva. Mas não imaginava, decerto, estar dando o “tom” da ABL como Academia do Bolo Livre (inglês e de aipim) e de biscoito de nozes, pastéis de carne e queijo e empadas — de galinha e camarão — sobre a mesa acadêmica, forrada com toalha de renda, onde se serve o lanche da imortalidade carioca, mais para Café Colombo do que para grêmio nacional das letras. Em torno dela, ei-los: os grandes mestres da língua e do paladar reunidos, todas as quintas-feiras, às 15 horas, na sede afrancesada do alto colégio literário em tarde de adoçante de todas as marcas, por todos os lados (pois a imortalidade é doce, mas pode matar de taxas altas de glicose, colesterol) etc.

Será por isso, especulo, que alguns dos presentes parecem amargar a falta de prato? Notem que há, na photo, quem esteja com a louça vazia — ou mesmo sem louça nenhuma — à sua frente. Descartada a hipótese, absurda, de estar incompleto o serviço de porcelana da casa, deduz-se que o motivo seja aquelas restrições de dieta impostas pela idade, eventualmente, junto com o chá eterno.

Que é fatal: o encontro se dá faça chuva ou faça sol, goste-se ou não de chá quente, frio, natural. “E, naturalmente, são proibidas as bebidas alcoólicas”, informa a senhora Cecília Costa e Silva, responsável pelo repasto, todo santo mês, ano a ano da imortalidade feita de bons-bocados. Talvez por isso é que não se aviste o romancista João Ubaldo Ribeiro, metido em traje passeio formal para a espécie de ceia “a seco”, no meio da tarde longe das fomes, do Johnnie Walker e dos Iraques. Em contrapartida, o escritor Antonio Olinto (cadeira 8, patrono: SNI), cochicha ao ouvido do atento poeta Lêdo Ivo — com circunflexo, conforme costuma alertar o autor de Ninho de cobras (ocupante da cadeira 10).

Cadeira sei-lá-qual, Arnaldo Niskier — isso mesmo: ele é “acadêmico” — parece reclamar de alguma dor no braço, ao lado de “Giovanni Ricardo”, que não é acadêmico, mas convidado. Não se sabe o que Giovanni faz ou é, porém aquela massa acaju de cabelo, mais adiante, só pode ser do ex-ministro Eduardo Portella (cadeira 27), que “está” mais acadêmico dos que os outros que mal escovaram o paletó suado de outros chás, em tardes quentes demais para a praxe. Por sobre seu ombro, o tradutor Ivan Junqueira (cadeira 37) ergue o braço para Tarcísio Padilha (cadeira 2) em peroração de conviva e não em briga — que imortais não brigam: apenas arengam pelo resto do tempo eterno que lhes resta.

O novato da cadeira 21 (QUEM É? Ganha um relógio com a voz do Sílvio Santos dando as horas, quem adivinhar o nome dele, com mais esta dica: esteve no Roda Viva e todo mundo entrou na dele), o novato, encantadoramente, sorri para o fotógrafo, xícara a postos e o ar, inefável, de cantora careca de posar para fotos, com e sem ph. Aos 55 anos e “53 milhões de livros vendidos” (diz ele), o “benjamim” da roda tem razão de sorrir para QUEM, quantos, quando?, e mais: mesmo cansado de ser mago, alguma poção do seu encanto grisalho ele tem sabido usar na conquista de cada um dos pares em média vinte anos mais velhos do que o mega-caçula das contabilidades (cerca de cinqüenta e dois milhões e novecentos e quarenta mil livros vendidos a mais do que toda a mesa). O “caçulinha” é phoda.

A viúva de outro campeão de vendas — agora dona da sua cadeira — não aparece na photo (só de homens engravatados), mas foi ouvida lá em São Salvador, e declarou que “adora o bolo inglês, embora a empadinha de camarão da Academia também seja uma delícia”. Sucessora do seu amado no assento (“assento” fica bem?) ou poltrona 23, a Zélia do Jorge é acadêmica graças aos anarquistas, aos gaiatos e ao Deus-Gattai mais poderoso do que o Deus-Pai que não manda na Bahia.

Na Bahia, quem manda é Gil, Caetano, Gal e ACM. E, se ninguém sabia, imortalidade também se herda.

Desde que foi feita a imagem — na quinta-feira, 24 de outubro de 2002 — houve baixa como, aliás, infelizmente não poderia deixar de ser, pela média das idades. O saudoso Geraldo França de Lima (de costas, cadeira 31) abriu vaga provável para Moacyr Scliar, contista escalado para dar consolo, afinal, aos gaúchos inconformados com a nossa Casa das Sete Empenas. Explica-se: o Rio Grande do Sul nunca entendeu (nem ninguém) as derrotas de Mário Quintana, na ABL, nas duas vezes em que se candidatou e foi rejeitado pelo escrutínio secreto dos votantes cuspindo um “não”, dois, quantos fossem necessários contra a entrada do cantor da rua dos Cataventos. Quintana ainda engrenou uma terceira postulação acadêmica, mas desistiu, não chegou até o fim do ritual de mendigar os votos a eleitores como José Sarney (o que é, de fato, charopada humilhante para um grande poeta).

Devia ter insistido? Foi o que Lêdo Ivo fez: só lá pela sétima candidatura foi que Ivo viu a uva na urna, ao conseguir, afinal, os suados votos necessários para ascender ao Olimpo dos 40 fardões de ouro, após constrangimentos tais como o de ser vencido (pasmem) pela farda-de-verdade do general Aurélio de Lyra Tavares, o famoso “Adelita”, acadêmico quatro-estrelas, autor da obra-prima Minhas ordens do dia.

O chá literário tem livro de presença e jeton de R$ 400,00, pago a cada comensal-acadêmico residente no Rio — ou de passagem pela cidade, que permanece maravilhosa.

Como as demais despesas da ABL, os “chás” — e outras tradições da boa convivência — são mais do que garantidos pelas rendas acadêmicas, entre as quais se destaca (e bote destaque nisso) o aluguel dos inúmeros imóveis de propriedade da mesma. Bastaria citar o vistoso edifício vizinho do “Petit Trianon”, alugado do piso ao teto, onde já foi (e talvez ainda seja) superlocatária uma multinacional de peso como a super-IBM. Ou vocês pensaram que os comes-e-bebes ficariam por conta de alguma “vaquinha”, de algum jogo-de-palitinho entre comensais que tentam superar as barreiras do colesterol e do tempo? Não senhor: a super-Academia paga com prazer, pois o encontro é regimental, a hora de comer é sagrada para o colégio literário rico de alfaias & alqueires. Trata-se de sarau essencial à sua vocação de delicatessen, ao rendado dezenovesco de onde vem a ginástica cortesã das academias de hoje, como antigamente.

Na velha Guanabara, os salamaleques de estilo ajudaram a eleger Getúlio Vargas (sério: ele foi “acadêmico”), o já citado imortal presidente José-Marimbondos-de-Fogo-Sarney e outros senadores, ministros e mários palmérios. Pois não havia de ser? A valorosa ABL precisa de recursos para quitar lanches e enterros, luz e água, telefone e taxa de bombeiro. Por isso, recebe aluguéis, subvenções, mimos e presentes até do Fernandinho Beira-Mar (se for o caso). Doações podem ser encaminhadas diretamente para a conta da entidade, neste Mês das Mães, das Noivas e da Bienal de Jacarepaguá.

Diante da cena do chá, qualquer um se comove. Eu, por exemplo, me envergonho das limitações cá da garotada, neste Rascunho onde nos comportamos — os velhos e os novos — como se a literatura fosse, ainda, up-to-date (e agora me assalta a dúvida: Ibrahim Sued foi acadêmico? Teve a merecida honra, antes de morrer?). Escrevam para a redação deste jornal.

Ou melhor, não escrevam, que o assunto de mortes é de profundo mau gosto, em academias e fora delas. E desde que João Guimarães Rosa substituiu o verbo “morrer” por “se encantar”, não é de bom-tom usar “morte”, “morrer”, “falecer” ou, ainda pior, lançar mão de grosserias tais como “bater as botas” etc. Ainda assim, não há como desconhecer que o próprio Rosa “se encantou” de pura emoção, todos sabem, após envergar o fardão — apenas alguns dias depois da posse solene na ABL (é a pura verdade e faz parte da biografia oficial e chapada do velho Guimarães).

O Rosa, coitado, não chegou nem a participar do seu primeiro “chá” de cadeira esquentada, no sagarano piquenique dos cardeais da ceia dos canetas emplumadas. O grande João foi vítima de cardiopatia sem dúvida agravada pela noite de festa, pelo momento dourado que almejava, o cume estranho da sua ambição, pois há gosto para tudo, João era assim, perdeu o bolo de aipim, ninguém é perfeito (e o bolo, dizem, é mesmo excelente).

Enfim, a culpa não foi da veneranda instituição.

E reconheçamos: ela faz o que phode. Se ainda não concede bolsas, por exemplo, para incentivar os jovens escritores de talento, um dia a ABL o fará, tenho certeza. No futuro, certamente aplicará uma parte da renda dos aluguéis (e outras rendas) promovendo cursos de formação de leitores e patrocinando — parcial ou integralmente — a edição de obras consideradas difíceis (aquelas que os editores recusam, sem ler) e investindo na divulgação da nossa literatura fora do Brasil, através de bolsas de trabalho concedidas a tradutores que se interessem pelos nossos autores…

O futuro a Bush pertence, mas eu sou otimista: a nossa Academia, um dia, ainda dirá a que veio — além de para as horas do chá imortal e interminável enquanto dura.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho