No conto de Borges, Pierre Menard — depois de conhecer bem o espanhol, recuperar a fé católica, guerrear contra os mouros e esquecer a história da Europa entre os anos 1602 e 1918 — pretendia-se capaz de escrever o Quixote de Cervantes, palavra por palavra, vírgula por vírgula, sendo o próprio Cervantes. Realmente, certos fatos biográficos tornam o escritor aquele que conhecemos através das obras. Borges e Menard seguem por outras veredas ao longo do tal conto para chegar ainda a outras conclusões não menos interessantes, Quixote continua em direção ao moinho eternamente e nós, leitores, fechamos o Ficções, do contista argentino, e meditamos um pouco sobre o assunto antes da sesta.
Esse galope todo, meio atrapalhado, ao modo de um Sancho no lombo de um burrico literário, é só para explicar que para entrar no sótão onde dormem as bonecas de Cleci Silveira é primeiro preciso saber que esta contista gaúcha que estréia em livro, entre outras atividades, manteve entre 1988 e 1990 uma coluna sobre mobiliário antigo no jornal O Moinho. Ora, vejam, nós que há pouco falávamos do Quixote…
No Sótão Dormem Bonecas é, por isso, um livro com a influência do perfume da madeira antiga. Cleci Silveira é uma escritora de velhas cômodas, espelhos com molduras cheias de floreios, rostos que observam o além através de antigas janelas, homens de ternos antigos e gardênias na lapela, art décos, art nouveaus e professoras de francês que tomam chá. Certamente em delicadas xícaras de porcelana e nunca café.
Todo escritor tem as suas fixações, em maior ou menor grau. Borges, os espelhos, os tigres, as bibliotecas, os labirintos. Cleci, o passado feito matéria. E que forma mais perfeita para representá-lo que o sótão, presente já no título. No alto da casa, com todos aqueles objetos que não mais se usa, ou que não mais se quer ver, impregnados por uma poeira que a tudo dá um ar enigmático, com seus baús trancados, com desvãos, cheiro de mofo e segredos perdidos no tempo. Já vejo os chegados aos psicologismos e a um simbolismozinho jungiano esfregando as mãozinhas e pensando em subconscientes, inconscientes e tais. Pois que tirem seus rocinantes da chuva e que parem de lhe procurar chifres na fronte porque não é nessas vielas tortas e embarreadas que meterei meu burrico.
O grande lance de Cleci, na verdade, é o ouvido para certos ritmos das frases, certos coloridos sonoros e imagéticos que tornam a sua leitura, em alguns momentos, uma experiência quase musical, ainda que de forma sutil. Às vezes, a palavra certa no lugar exato da frase faz a diferença. De um certo modo, a maneira como escreve combina com as tais xícaras de porcelana da professora de francês que toma chá. Já no primeiro conto, que empresta nome à obra, temos: “Algumas roupas — isso me ocorre agora, olhando estas peças de cetim — depois de abandonadas têm o estranho poder de conservar impressas certas características dos corpos que envolveram. Não falo apenas de um resto de perfume, um leve cheiro de suor misturado aos ingredientes que o tempo vai acumulando sobre elas, mas de algumas saliências e reentrâncias, pequenas rugas no lugar onde apertou a cintura, uma vaga sinuosidade no ponto onde modelou um seio recém-desabrochado. As mangas me fascinam. Marcadas pela curvatura dos cotovelos e por dobras na parte de dentro, parecem ensaiar um movimento para a frente, talvez destinado a libertar um gesto final, cujo ímpeto ficou outrora retido.” O ritmo de que falei não é evidente, é tênue, como na maior parte dos contos de No Sótão Dormem Bonecas.
Fosse ele mais acentuado teríamos algo como no poema de Vinicius: “Deixarei que morra em mim o desejo de amar teus olhos que são doces, pois nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.” Este seria o outro extremo do que quero demonstrar: o ritmo e a musicalidade são muito mais evidentes. Nos dois casos, eles existem, ainda que em graus diferentes.
Mas convém talvez que Cleci Silveira não use o mesmo jogo de xícaras a cada chá, nem que fique olhando durante muito tempo para o fundo delas quando a bebida acaba. Convém talvez que vez em quando as atire ao ar só para ver o que acontece, cheias ou vazias. O leitor pode se surpreender.
Por exemplo, nas poucas vezes em que dá voz a seus personagens, suas falas soam inverossímeis, com um tinir cerâmico. É o caso da avó do conto O Indecifrável Silêncio das Coisas Antigas. A certa altura ela diz: “Deixemos em paz essas coisas. Pertencem ao passado, não resistiram ao poder exigente dos anos, foram transformadas por eles.” Ninguém fala assim. Mas isso pode ter sido intencional. Talvez a autora não tenha visto alguma forma coloquial que se encaixasse em seu estilo para dizer a mesma coisa nem tenha achado adequado manter o discurso indireto.
Cleci gosta de surpreender o leitor, geralmente com finais imprevisíveis, e, diversas vezes, consegue. Isso é bom desde que ela não passe a ver isso como uma obrigação. Em alguns contos, e cito novamente o que dá título ao livro, o fim é inesperado, mas a situação e a relação entre personagens só passa a existir a partir de sua metade. Até então, tudo é um pretexto para os fetiches da autora. A tensão, bem como sua resolução, só surge quase no final. A atenção do leitor, principalmente daquele que não se interessa pela musicalidade do texto, é escravizada justamente entre o distanciamento desses dois elementos: tensão e resolução. Aliás, essa idéia pode ser muito bem transferida para a música.
É importante também manter a dúvida do leitor em alguns momentos. Sim, senhoras e senhores, o leitor tem prazer em ficar na dúvida, afinal literatura não é uma ciência exata. É prudente que algumas coisas fiquem no ar, de forma que quem lê se pergunte: “Mas é isso mesmo o que eu entendi?”. E lerá o trecho novamente, talvez sem chegar a alguma conclusão a respeito. O conto a que me refiro, nesse caso, é Quase Medo, em que o quarto de uma professora do passado da personagem é o único que destoa da sobriedade do restante da decoração. A personagem chega — embora não a externe — a uma determinada conclusão com essa observação, mas a autora deixa transparente o mecanismo pela qual é feita a dedução. Alguma coisa a ver com uma visita à Amsterdã. De outra forma, o rapaz que chega a casa da tal professora, no momento em que a personagem deixa o lugar, poderia ser tão somente um sobrinho. Talvez. Mas não restam mais dúvidas. Nesse mesmo conto no entanto, mais uma vez, poesia: “Quedei-me a contemplar as altas árvores. Vistas dali, podia-se melhor entender o ímpeto que as projetara, em ânsias, rumo ao céu.”
Grande parte dos contos de Cleci passa a falsa impressão da ausência de ação porque diversas vezes seus personagens estão a lembrar ou a descrever ambientes. A ação não acontece, mas aconteceu. Porém, às vezes, isso não fica claro. E o melhor conto do livro é justamente o último e o que melhor consegue lidar com todas essas variantes, A Melancolia de Valdô. A tensão está logo no começo e o leitor aguarda durante todo o tempo os acontecimentos que levaram o tal Valdô a sua morte. A seguir, a ação vai para o passado e aguardamos sua resolução que é surpreendente, poética e de uma doce graça. Aliás, que tem a ver com madeira antiga, mas não tão forte ou nobre como a dos móveis de que Cleci tanto gosta, que ironia.
Seria como dizer que o Quixote deu sua arremetida mais brilhante justamente no momento em que deixou a cavalaria um pouco de lado. E nem Menard, Borges ou Cervantes contariam com essa.