Cenas nossas de cada dia

Em "Dia dos mortos", sua estréia literária, Marcelo Ferroni acerta a mão com talento e precisão
Ferroni soube deitar um olhar investigativo nas pessoas que habitam essa entidade chamada cidade grande
01/09/2004

Na França, somente neste ano foram lançados cerca de 1,3 mil livros inéditos, de mais de 230 autores estreantes. Um mar de gente em um mar de papel. No meio dessa avalanche, o que determinará o sucesso de um autor? Parece que, quanto mais popular fica o computador, mais fácil fica escrever (e o trabalho físico é realmente menor, não há como negar), mais barato fica editar e publicar um livro, e há novas maneiras de colocar o livro no mercado.

Por todas essas facilidades, deve-se louvar e elogiar o trabalho de Marcelo Ferroni, que estréia no mercado editorial com uma coletânea de contos, Dia dos mortos. O trabalho deve ser louvado, pois apesar de todas as facilidades tecnológicas à disposição, Ferroni levou alguns anos preparando o seu trabalho até considerá-lo pronto para publicação. E mesmo o fato de ser atualmente editor da Globo Livros não desmerece seu lançamento. Isso porque o cargo veio um mês após a seleção de seu livro para publicação.

(A frase seguinte parece um chavão, mas acredite, não é. São tão poucos os jornalistas de hoje em dia que são escritores que a frase deixou de ser chavão há muito.) Jornalista de formação, Ferroni levou para o conto a precisão, economia e concisão no escrever. Não há palavras em excesso nos nove contos do livro. Não há floreios desnecessários, descrições inúteis, personagens que aparecem do nada e somem como se nada tivessem sido.

Some-se ao bom trato da língua a habilidade em retratar a vida contemporânea na grande cidade. Ferroni soube deitar um olho investigativo nas pessoas que habitam essa entidade chamada cidade grande, e que apesar de indistintas e sem personalidade quando vistas de longe, adquirem sua identidade única e particular quando observadas de perto. Nem toda a massificação a que somos submetidos diariamente — transporte coletivo, audiência de massa, crachás com números, contas numeradas em bancos, financeiras, seguradoras, lojas de eletrodomésticos — conseguiu ainda tornar-nos iguais. Há uma essência individual que resiste à igualdade. E Ferroni nos mostra isso.

Veja, por exemplo, o conto que dá título ao livro, Dia dos mortos. Marcinho e Anita, casal de namorados, vão à casa do avô jantar. Uma cena prosaica, comum seja na periferia pobre seja no condomínio fechado. É no desenrolar dessa cena comum, no descrever as atitudes das personagens desse pequeno drama, que Ferroni mostra a sua habilidade. Os personagens vão sendo apresentados sem atropelos, mas sem enrolação. Primeiro o avô, Gino. Depois o pai. Em seguida a avó Yolanda, que como velha matrona pilota o fogão, Nelson, velho amigo velho da família, e Amiano, o irmão de Nelson.

Sem contar muito, aprendemos dali que a mãe de Marcinho não existe mais para eles. Que ali está uma família desagregada, que não conseguiu manter-se unida ao longo de suas existências. Aprendemos que Amiano tem algum problema, sabe-se lá qual. Aprendemos que Marcinho não liga muito para Anita. Que a avó não liga nem um pouco. Que Nelson e Gino ligam muito, não exatamente para ela, mas para suas formas. E que, como em toda família, sempre é possível existir uma nota estranha, bizarra, mas que parece absolutamente normal.

As dores da princesa nos conta uma possível história paralela da passagem da Princesa Diana, a Lady Di, ao Brasil, em 91, e os desejos mundanos daquela que hoje é considerada santa no resto do mundo, e devassa pela nobreza inglesa, que preferia vê-la esquecida. Um encontro de Ferroni com Felício Montanha, segurança free lancer contratado para escoltar a princesa em uma noite de São Paulo, é o início do relato. Montanha quer contar tudo o que viu, viveu e sentiu durante uma noite específica da visita da Princesa. E que noite. Há humor, ironia e crítica na dose certa em todos os momentos do conto.

O amor é outra temática que permeia Dia dos mortos. Mas não o amor meloso, hollywoodiano, em que tudo são flores e não existem contratempos. O amor de Ferroni é dolorido, é marcado por traições, abandonos, falsidades e pela vida comum. Não há grandes arroubos no cotidiano. Ele é pontuado de momentos bons e ruins, mas nada como vemos na tela grande do cinema.

O repovoamento conta a busca de uma mulher por sua identidade, mesmo que em vidas passadas. Nada além de flores mostra como uma família vai perdendo a sua aura após um acidente em que ninguém sabia que o patriarca, ex-presidente do Banco Central, estava na estrada para Santos, e não nos Estados Unidos, participando de um seminário. Os últimos dias de Pompéia mostra o fim de um casal, seus momentos derradeiros, aquele em que ambos sabem que não há mais volta, não há mais solução possível, mas ainda não houve a coragem de ambos para tomar a decisão. Mulher de Cubatão; menina-lagarto mostra a impossibilidade do amor entre as castas brasileiras, nessa sociedade onde teoricamente não há racismo e a ascensão social é possível, mas que se mostra a cada dia mais estratificada.

O livro traz ainda os contos Por que eu fugi, Angélica e irmãs e Olho ruim. Em todos os contos Ferroni mostra que trabalhou bastante em todos eles, e não se satisfez com soluções fáceis ou enredos previsíveis. Conseguiu assim criar um belo trabalho de estréia, que nos faz esperar com expectativas o segundo. E se ele demorar outros cinco anos para esse segundo, desde que seja com a mesma qualidade ou superior, tudo bem. Garimparemos aqueles 230 e tantos franceses estreantes para ver se algum presta e merece elogios.

Dia dos mortos
Marcelo Ferroni
Globo
152 págs.
Marcelo Ferroni
Nasceu em 17 de junho de 1974, em São Paulo. Formou-se em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica (PUC). Trabalhou durante alguns anos no jornal Folha de S. Paulo, onde foi repórter e editor-assistente de ciência. Atuou também como editor da revista Galileu, sub-editor da revista IstoÉ e, posteriormente, como repórter free lancer nas áreas de ciência e cultura. Atualmente, é editor da Globo Livros — cargo que assumiu um mês depois de seu livro ter sido selecionado para publicação pela editora.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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