Na França, somente neste ano foram lançados cerca de 1,3 mil livros inéditos, de mais de 230 autores estreantes. Um mar de gente em um mar de papel. No meio dessa avalanche, o que determinará o sucesso de um autor? Parece que, quanto mais popular fica o computador, mais fácil fica escrever (e o trabalho físico é realmente menor, não há como negar), mais barato fica editar e publicar um livro, e há novas maneiras de colocar o livro no mercado.
Por todas essas facilidades, deve-se louvar e elogiar o trabalho de Marcelo Ferroni, que estréia no mercado editorial com uma coletânea de contos, Dia dos mortos. O trabalho deve ser louvado, pois apesar de todas as facilidades tecnológicas à disposição, Ferroni levou alguns anos preparando o seu trabalho até considerá-lo pronto para publicação. E mesmo o fato de ser atualmente editor da Globo Livros não desmerece seu lançamento. Isso porque o cargo veio um mês após a seleção de seu livro para publicação.
(A frase seguinte parece um chavão, mas acredite, não é. São tão poucos os jornalistas de hoje em dia que são escritores que a frase deixou de ser chavão há muito.) Jornalista de formação, Ferroni levou para o conto a precisão, economia e concisão no escrever. Não há palavras em excesso nos nove contos do livro. Não há floreios desnecessários, descrições inúteis, personagens que aparecem do nada e somem como se nada tivessem sido.
Some-se ao bom trato da língua a habilidade em retratar a vida contemporânea na grande cidade. Ferroni soube deitar um olho investigativo nas pessoas que habitam essa entidade chamada cidade grande, e que apesar de indistintas e sem personalidade quando vistas de longe, adquirem sua identidade única e particular quando observadas de perto. Nem toda a massificação a que somos submetidos diariamente — transporte coletivo, audiência de massa, crachás com números, contas numeradas em bancos, financeiras, seguradoras, lojas de eletrodomésticos — conseguiu ainda tornar-nos iguais. Há uma essência individual que resiste à igualdade. E Ferroni nos mostra isso.
Veja, por exemplo, o conto que dá título ao livro, Dia dos mortos. Marcinho e Anita, casal de namorados, vão à casa do avô jantar. Uma cena prosaica, comum seja na periferia pobre seja no condomínio fechado. É no desenrolar dessa cena comum, no descrever as atitudes das personagens desse pequeno drama, que Ferroni mostra a sua habilidade. Os personagens vão sendo apresentados sem atropelos, mas sem enrolação. Primeiro o avô, Gino. Depois o pai. Em seguida a avó Yolanda, que como velha matrona pilota o fogão, Nelson, velho amigo velho da família, e Amiano, o irmão de Nelson.
Sem contar muito, aprendemos dali que a mãe de Marcinho não existe mais para eles. Que ali está uma família desagregada, que não conseguiu manter-se unida ao longo de suas existências. Aprendemos que Amiano tem algum problema, sabe-se lá qual. Aprendemos que Marcinho não liga muito para Anita. Que a avó não liga nem um pouco. Que Nelson e Gino ligam muito, não exatamente para ela, mas para suas formas. E que, como em toda família, sempre é possível existir uma nota estranha, bizarra, mas que parece absolutamente normal.
As dores da princesa nos conta uma possível história paralela da passagem da Princesa Diana, a Lady Di, ao Brasil, em 91, e os desejos mundanos daquela que hoje é considerada santa no resto do mundo, e devassa pela nobreza inglesa, que preferia vê-la esquecida. Um encontro de Ferroni com Felício Montanha, segurança free lancer contratado para escoltar a princesa em uma noite de São Paulo, é o início do relato. Montanha quer contar tudo o que viu, viveu e sentiu durante uma noite específica da visita da Princesa. E que noite. Há humor, ironia e crítica na dose certa em todos os momentos do conto.
O amor é outra temática que permeia Dia dos mortos. Mas não o amor meloso, hollywoodiano, em que tudo são flores e não existem contratempos. O amor de Ferroni é dolorido, é marcado por traições, abandonos, falsidades e pela vida comum. Não há grandes arroubos no cotidiano. Ele é pontuado de momentos bons e ruins, mas nada como vemos na tela grande do cinema.
O repovoamento conta a busca de uma mulher por sua identidade, mesmo que em vidas passadas. Nada além de flores mostra como uma família vai perdendo a sua aura após um acidente em que ninguém sabia que o patriarca, ex-presidente do Banco Central, estava na estrada para Santos, e não nos Estados Unidos, participando de um seminário. Os últimos dias de Pompéia mostra o fim de um casal, seus momentos derradeiros, aquele em que ambos sabem que não há mais volta, não há mais solução possível, mas ainda não houve a coragem de ambos para tomar a decisão. Mulher de Cubatão; menina-lagarto mostra a impossibilidade do amor entre as castas brasileiras, nessa sociedade onde teoricamente não há racismo e a ascensão social é possível, mas que se mostra a cada dia mais estratificada.
O livro traz ainda os contos Por que eu fugi, Angélica e irmãs e Olho ruim. Em todos os contos Ferroni mostra que trabalhou bastante em todos eles, e não se satisfez com soluções fáceis ou enredos previsíveis. Conseguiu assim criar um belo trabalho de estréia, que nos faz esperar com expectativas o segundo. E se ele demorar outros cinco anos para esse segundo, desde que seja com a mesma qualidade ou superior, tudo bem. Garimparemos aqueles 230 e tantos franceses estreantes para ver se algum presta e merece elogios.