Eu vou matar você. Esta é a declaração de amor mais doce que Ernest, um holandês descendente de tailandês, diz para Helena, uma brasileira que vive na Holanda sem mesmo saber o propósito de tal estada. Não tem certeza se apenas viaja ou se foi à procura da ex-noiva de um primo ou ainda se está ali para estudar alguma coisa. De certeza só o ódio pelo país, por seu clima sempre encharcado e pelo individualismo dos nativos.
Este ambiente de degradação é o ponto de partida do novo romance de Claudia Nina, Paisagem de porcelana. Com uma linguagem segura e muito bem delineada, a escritora discorre sobre um mundo de falências. Tudo é escuro, frio, denso. E as ações vão conduzindo os personagens, sobretudo Helena, para o extremo da miséria humana e econômica.
Por vezes, no entanto, esta busca constante pela linguagem ideal leva a escritora a optar por espaços vazios, cenas e ações que não se concluem de todo. Se por um lado isso dá ao leitor a capacidade de redesenhar o destino da protagonista, por outro cria algum anticlímax que poderia ser evitado em favor de uma maior fluência da narrativa.
O romance, por outro lado, ganha fôlego na absoluta falta de piedade com que trata Helena. Não há uma sequência natural de perdas, mas uma enxurrada delas. E neste caminho ela vai se despojando de tudo. Primeiro de uma cômoda, embora desconfortável, hospedagem em um alojamento universitário, depois da moradia segura e do jantar garantido num quarto sobre o restaurante do pai de Ernest, em seguida da possibilidade de sobrevivência com os gastos constantes que dilapida o pouco que tem e até mesmo do respeito do parceiro, um personagem rico por suas contradições e indiferenças.
Neste inventário de perdas sobressai a figura de Yasuko, uma japonesa com quem Helena divide suas angústias iniciais, mas chega um tempo em que a amiga precisa partir, voltar para o Japão. Sozinha, Helena busca outros apoios e os encontra na obsessão sexual de Ernest e na indiferença estudada de Peter, um amigo que tem pouca utilidade, pois está sempre a refletir sobre necessidades que não fazem parte do universo degrado da protagonista. Ou seja, para ela não há muito por onde escapar da falência plena.
Até mesmo a liberalidade sexual que Ernest lhe impõe termina por resvalar em questões culturais e, claro, num ciúme inadequado para os desejos do rapaz, que logo depois de ser expulso do quarto que ocupava no restaurante do pai, intensifica sua grosseria, sua brutalidade. Em outras palavras, nesta relação, digamos, amorosa Helena somente encontra outras vertentes da opressão. Por necessidade ou por estranha paixão, vai ficando ali, mesmo vivendo contra o muro. E aí requenta a dúvida: a submissão da protagonista é por falta de opção ou por comodidade?
Os espelhos holandeses não dão respostas. Aliás, eles são sempre altos demais para que Helena veja seu rosto e se dê conta da decadência. E assim leva seus dias, sem esperanças, sem pão, sem banho. A chuva constante é o que lhe lava, mas também traz a sujeira da lama e o fedor das roupas encharcadas. Já a falta de dinheiro a leva a se alimentar, quando pode, com insípidas sopas e restos de pão e queijo. Tudo precário, tudo insuficiente.
Voz infiel
Diante deste horror, o leitor passa a desconfiar da narradora, ou seja, da própria Helena. Claudia Nina lhe dá voz, mas uma voz infiel, ou pelo menos pouco confiável. Logo no início da narrativa, a própria Helena confessa: “Entre uma respiração e outra, abrem-se as cortinas: o cenário é falso — como os detentos jogados no deserto garantem ter visto o oásis, também crio imagens que não são verdadeiras”. Certamente aí está a chave para justificar aquele falta de conclusão de algumas cenas de que falamos anteriormente. Helena delira, tem várias versões para uma mesma cena, diverge de si mesma em cada nova frase, perde a confiança de quem lhe ouve, ou seja, o leitor, para justificar sua desvairada vivência.
Com linguagem segura e bem elaborada, Claudia Nina trabalha com a violência psicológica de sua personagem. Está claro que Helena vive de paranoias, medos e ódios que não se escudam em fatos concretos. Apenas busca coisas que de fato não se sabe se existem, como a japonesa rica amiga de Yasuko que supostamente precisa de aulas de inglês. Tudo parece nascer de uma imaginação que tropeça em si mesma e se machuca por suas próprias opções.
Uma nova tendência da literatura brasileira contemporânea busca falar do homem cosmopolita e, claro, inserir o brasileiro neste contexto. Tal figura circula com desenvoltura por outras culturas, mesmo sofrendo os males da falta pertencimento. A carga cultural que este homem carrega é demasiado forte para uma liberdade plena e uma inserção perfeita em outros ambientes.
A Helena criada por Claudia Nina em Paisagem de porcelana é este homem levado ao extremo de sua condição de não pertencimento. A Holanda lhe é estranha, o clima lhe é hostil, a língua lhe é inacessível, a sobrevivência é impossível, mesmo assim ela vai ficando. Ora diz que lhe falta dinheiro para fugir, ora acredita nas possibilidades de mudança de Ernest, ora se pega à falsa possibilidade de dar aulas de inglês e conseguir dinheiro.
Enfim, Nina criou o protótipo da passividade moderna. Nada dá certo, mas ainda se acredita que numa esquina qualquer esteja reservada a surpresa da esperança. Enquanto isso, só resta o sofrimento.
Uma prosa que envolve exatamente por esta capacidade de renovar uma esperança que há muito morreu.