Os melhores escritores são aqueles que modificam nossa forma de ler. Que ao articularem a dimensão poética da linguagem esgarçam outras possibilidades éticas. Que ao nos projetar em estado estético fundam outro modo de estar com o outro, ou seja, outro ethos. A poesia de Edimilson de Almeida Pereira indiscutivelmente faz isso. Não se trata de um convite para as diferentes camadas do que pode a literatura. Antes, é a própria rearticulação da dimensão política inerente à boa poesia.
Poesia + reúne poemas escritos entre 1985 e 2019 pelo poeta mineiro nascido em Juiz de Fora. Mas engana-se quem espera encontrar neste volume — de bela capa composta com foto do poeta tirada por Prisca Agustoni — a trajetória cronológica de um escritor. E não afirmo isso apenas pelo fato de Edimilson ter organizado os escritos de modo a recriar linhas de aproximações temático-poéticas de seus numerosos livros, digo isso por entender que o resultado dessa reunião de poemas afeta e impele o leitor, mais do que o escritor, à ressignificação de seus valores de leitura. O poeta, diferente da média de leitores, e mesmo praticantes, de literatura no país, tem a força de erguer o espelho da história diante de nossas faces envelhecidas. E faz isso por propor um novo ethos do qual não escapa nem mesmo (ou principalmente) a literatura:
morremos pela boca, exceto Exu,
guia de Tirésias
que desacata Gregório de Matos
Macunaíma e François Villon.
Exu calibã
luva insuspeita de Shakespeare
caçador que tem em si a caça
e se irrita
preso a uma dezena de nomes.
A literatura, que tanto fez para erguer monumentos éticos e culturais no ocidente, não à toa, foi colocada por Castro Alves no segundo canto d’O navio negreiro para lembrar-nos que ela também não se comprometeu historicamente em romper o pacto econômico de escravização e assassinato de negros. A diferença marcante entre os escritos do poeta romântico baiano (para além das formais, claro!) e do poeta mineiro contemporâneo está na sentença sugerida pelo primeiro no canto VI: melhor seria não ter sido descoberto o Brasil. A escolha de Edimilson de Almeida Pereira foi noutra direção: se empenhou mais na refundação ética desse lugar que não assume a violência da diáspora africana.
Poeta negro, que começa a publicar no período de redemocratização do país e que assiste nos últimos 30 anos, ao lado de outro poeta abolicionista contemporâneo, Ricardo Aleixo, ao genocídio imposto ao povo afrodiaspórico, Edimilson nos ensina a ler de novo. E faz isso ao dizer, para além dos versos, em entrevistas e palestras acerca de Lima Barreto, que um corpo negro sempre sai à rua sob a tensão de ser abatido. Dito isso com clareza, torna-se impossível, ou cretino, ler poemas daqui por diante em paradigmas degastados que não assumam essa realidade histórica.
Sua poesia procura fazer pela cultura do país aquilo que o próprio país se nega a encarar, a saber, estabelecer novos parâmetros de interpretação de nós mesmos em que o negro não seja um “matável”.
No entanto, engana-se também quem acredita que encontrará em Poesia + uma dicção panfletária. A sofisticação lírica dos poemas do livro nos ajuda a atravessar o mar de sangue de nossa história com primorosos escritos. Vide trechos do poema Cena 5, da série Cemitério marinho:
linguagem espolia o museu
de história natural
nem tudo o que ressoa
é som
a palavra ainda menos
[…]
o pássaro limpa
os dentes do hipopótamo
nem por isso
vão juntos à reza
a grande árvore freme
mas não é
com a chuva que se deita
a linguagem se joga
no oceano — para desespero
da memória
que se quer museu de tudo
Mais uma vez, como se pode ver, somos confrontados não apenas às vísceras podres de nosso arremedo de história, somos confrontados também no que temos de preciosidades em nossa cultura literária e que está em nosso melhor modernismo, pois o intertexto (provocação?) com João Cabral de Melo Neto é explícito neste poema.
Brasil cordial?
Outro ponto na reconfiguração ético-poética do que somos que está presente em Poesia + é a pá de terra que se joga sobre a mentira do Brasil cordial. Sabemos que muitos sociólogos já colocaram contra a parede teses no mínimo questionáveis de Sérgio Buarque de Holanda e de Gilberto Freyre, mas em tempos de esgarçamento do ódio ao outro, como é o caso do que vivemos publicamente hoje no país, uma refundação ético-poética não pode deixar de ajudar a enterrar o mito da cordialidade que tanto orgulhou outrora brasileiros que não precisaram encarar a si mesmos. Vejamos o poema Da fala moral, do bom coração:
[…]
Estar ao lado não é
estar a par.
Nem sempre o braço
que irmana
é irmão. […]
[…] Tem, se puderes,
uma carta
na manga: a mãe
teceu o berço,
a contrapelo,
as fronteiras. Retrocede
e salta
os diálogos
da conivência. […]
A conivência com que relativizamos em nossa história os estupros da colonização não sobrevivem na poética de Edimilson. Uma poética que em alguma medida se compromete com a revisão do passado sem perder de vista o único tempo de onde se pode fazer algo, o agora. E este, o tempo presente, deve ser refundado a contrapelo; sugestão feita por um pensador que também sofreu em outra diáspora, Walter Benjamin.
A passagem de Poesia + que talvez melhor apresenta o diferente ethos erguido a contrapelo de nossa história consiste, no entender deste leitor, na série de quatro poemas sob o título Livro da irmandade com as palavras sobre vivas à devoração do monstro esquecimento. Notamos nesse momento do livro a proposição estética de uma outra (eco)logia: Um pequizeiro no pensamento do amarelo; E tomar o gato, rir nos olhos dele. […]; O tempo de/ escravo demudado […]; E pacto só com boa assistência.
Essa série é das mais difíceis do livro. E é para ser difícil mesmo, pois não se transforma o modo de ler e significar no mundo sem uma boa perturbação sintática e semântica. Não se impele o homem para uma alteridade que vá além do antropo-culturalismo branco, onde o selvagem sempre é o outro, sem fazer confundir o que é homem, o que é bicho, o que é planta. Não se refunda um ethos sem fazer antropofagia dos fracassos infindáveis do passado que compõe o nosso presente, sem perceber que “o vermelho sangue do guará e o azul oceano da araruna segredam algo que excede o museu nacional de Copenhague”, como nos diz o poema em prosa De volta ao sol, que quase encerra o livro, mas não sem antes esgarçar mais uma vez nosso medo burguês de mexer na dinâmica perversa que nos assegurou até aqui essa versão remendada e ilusória da história do conhecimento.
Poesia + é livro irreversível para o leitor que esteja disposto a encarar o fracasso que insiste em sedimentar uma versão da história permeada de negacionismos nocivos a qualquer vida civil e suportável. E o mérito estarrecedor desse livro é o de conseguir ser — apesar de toda a densidade do movimento que opera — muito bonito.