Cartas a alguém

"A caderneta de endereços vermelha", da sueca Sofia Lundberg, narra a história de uma idosa solitária que revisita memórias variadas
Sofia Lundberg, autora de “A caderneta de endereços vermelha” Foto: Viktor Flemling
01/08/2021

“Não se mandam cartas de amor registradas” é um verso da poeta portuguesa Adília Lopes. Soa, talvez, como uma prescrição ou um aforismo contraintuitivo, uma espécie de “dica” de como manter no anonimato remetente e destinatário de uma carta de amor. Em A caderneta de endereços vermelha, da jornalista sueca Sofia Lundberg, acontece o gesto contrário ao prescrito no verso de Adília: os nomes registrados na antiga caderneta de Doris, personagem central do livro, são os pontos de partida e o pretexto para o desenrolar da narrativa.

Além das cuidadoras, que frequentam com distração a sua casa para preparar seu banho e seu almoço, Doris — idosa que mora sozinha em Estocolmo — mantém um único vínculo importante na vida, a sobrinha-neta Jenny, que mora nos Estados Unidos, com quem tem conversas semanais por Skype enquanto aguarda sua visita sempre prometida e adiada.

A idosa começa, então, a rememorar e narrar sua vida desde a adolescência, visitando uma caderneta vermelha antiga, com endereços das pessoas que conheceu ao longo dos anos, e colhendo de lá seus nomes. O procedimento é mais ou menos assim: os nomes disparam memórias, que ela usa para narrar episódios de seu passado; conforme os nomes são de pessoas que já faleceram, ela vai riscando-os e escrevendo ao lado “morto” ou “morta”.

Faz muito tempo que não abre aquele caderninho, mas agora levanta a capa e vê uma lista de nomes na primeira página. A maioria já foi riscada. A margem tem várias anotações feitas por ela. Uma palavra. Morto.

Doris usa um notebook para registrar as memórias e escrever. E essa passa a ser uma das poucas atividades que sustentam sua rotina: sentar-se diante do computador e narrar.

Escrita e desejo
Duas temporalidades se intercalam na narrativa. A personagem central, Doris, vai produzindo uma espécie de diário de memórias, cartas que deixa a si mesma sobre o passado, como quem narra a temporalidade de um sonho: “Eu me sentia cansada. Não tinha palavras. Não tinha alegria. Estava sentada no meu colchão, encolhida na parede, com as costas apoiada numa almofada”. Os capítulos em que Doris fala do passado levam sempre como subtítulo algum dos nomes registrados na caderneta e são intercalados aos capítulos que narram o presente da vida da personagem.

Para além da temporalidade, de cartas ou endereços, é justo apontar para as construções inegavelmente clichês com as quais nos deparamos ao longo do texto, que repetem padrões gastos no uso da língua, como quando a personagem vai falar da relação com um amigo: “Nós tínhamos algo de diferente, algo muito especial. Um vínculo entre nossos corações, um arco-íris cintilante que brilhava e bruxuleava ao longo dos anos, mas que estava sempre presente”. Também é necessário ressaltar que, conforme o livro avança, somos introduzidos a uma série de acontecimentos carregados com gravidade excessiva, que aparentam estar ligeiramente descolados da narrativa, como que deixados ali, talvez, com o intuito de justificar o enredo.

Isso faz lembrar de outras cartas, que ficaram importantes na história da literatura, as que Rainer Maria Rilke escreveu a um jovem poeta que pedia-lhe aconselhamentos sobre os seus escritos e sobre o trabalho da escrita. As cartas foram enviadas entre 1903 e 1908, e publicadas em 1929, três anos depois da morte do tcheco. Em certo momento, Rilke escreve ao jovem que ninguém pode aconselhar ou ajudar ninguém:

Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se entende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: “Sou forçado a escrever?”. Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar aquela pergunta severa por um forte e simples “sou”, então construa a sua vida de acordo com essa necessidade.

Construir a vida de acordo com uma necessidade talvez seja também aquilo que alguns chamamos por “desejo”.

Digressões
Um esboço da pessoa a quem são endereçadas: é o que as cartas instintivamente fazem. Quem disse isso foi Virginia Woolf, no ensaio As mulheres devem chorar… Ou se unir contra a guerra. Nele, ela responde a “uma carta talvez única na história da correspondência humana, pois, quando teria, antes, um homem instruído perguntado a uma mulher como, em sua opinião, se poderia evitar a guerra?”.

Virginia foi uma escritora de ficção, ensaísta e pensadora feminista, e este seu texto foi publicado pela primeira vez em 1938. Logo no início, escreve que as cartas são inúteis se não houver “alguém cálido e respirando do outro lado da página”. Ela diz sobre as cartas, mas isso também se realiza nos romances, nos poemas, em suma, em todo o texto que se dá a ser lido. Todo o texto faz um gesto de endereçamento, se coloca em relação a alguém.

Por exemplo, esse texto no jornal se coloca em relação a você, que agora o lê. Ele não se pretende um resumo do romance a que se refere, tampouco quer ser uma dica de leitura sobre o livro de Sofia Lundberg. Mas ele é, por princípio, uma resenha ou uma crítica literária, que passa a existir a partir do livro e é um vislumbre dele. Aqui se fala de assuntos que surgiram ou que cavei a partir dessa leitura, querendo criar, quem sabe, outros espaços de interesse. Esse texto tenta produzir conversas e, como as vezes acontece nas conversas, faz desvios, abre digressões, fala por acaso sobre outras coisas.

Diferentes vozes
Não é que a narradora se enderece diretamente ao leitor. Já que os relatos, quando feitos em primeira pessoa, dando testemunho a quem lê do pensamento da personagem que narra, são amortecidos pela forma da escrita de diário, ou seja, pela fala da personagem a partir de si e para si mesma, não para nós. Outro ponto é que, além de intercalar tempo presente com tempo passado, o livro também alterna as vozes narrativas. A vida presente de Doris é contada por um narrador externo aos acontecimentos, que os assiste. E as memórias do passado são narradas sempre pela própria Doris em primeira pessoa.

Nisso, há uma série de cartas e bilhetes reabertos, recados deixados para serem encontrados a seguir, arquivos de computador endereçados a alguém que deverá encontrá-lo no momento oportuno. Doris narra sua história e isso ao mesmo tempo vai constituindo o material do que é possível chamar de um “inventário” seu. E que alguém — talvez Jenny, talvez não — se deparará com esse conjunto em algum momento.

Em A caderneta de endereços vermelha, narradores e temporalidades narrativas se alternam e à pergunta “falam com quem?” talvez encontre em nós respostas imprecisas — o que não acontece em Virginia Woolf, em Rainer Maria Rilke ou em Adília Lopes, por exemplo, pois lá pensamos “falam comigo”.

Há também uma segunda pergunta, que se levanta sempre que alguém está diante de alguém e quer ser ouvido. Uma pergunta que as narrativas discretamente vão respondendo enquanto nos conduzem. Ou não, e é quando falham. Nesse caso, a pergunta se levanta esperando alguma complacência nossa e fica longamente se refazendo: por que esse outro vai querer me ouvir?

A caderneta de endereços vermelha
Sofia Lundberg
Trad.: Claudio Carina
Globo Livros
296 págs.
Sofia Lundberg
Nasceu em Estocolmo, na Suécia, em 1974. É jornalista com passagens pelas principais revistas de seu país de origem. A caderneta de endereços vermelha é seu primeiro livro.
Ana Luiza Rigueto

É poeta, jornalista e especialista em literatura brasileira. Atualmente, é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, com pesquisa em poesia contemporânea. Publicou Entrega em domicílio (Urutau, 2019) e tem poemas em diversas revistas online.

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