Cartão-postal de um país à deriva

Em "Alguém vai ter que pagar por isso", Luís Pimentel cria um realismo urbano repleto de assassinatos, corrupção, miséria e abandono
Luís Pimentel, autor de “Alguém vai ter que pagar por isso”
01/05/2021

O conceito de literatura advém da filosofia. Segundo Derrida, a literatura não deixa de ser filha da filosofia, integra seu sistema e carrega a marca de várias estruturas e noções de natureza filosófica — imitação, tempo, etc. Desse modo, podemos dizer que o conceito de literatura alicerçado na imitação, em última instância, seria um disfarce do discurso filosófico com a finalidade de legitimar-se como discurso neutro.

Estabelecida a proximidade da literatura com a filosofia, depreende-se que também esteja em questão a problemática da verdade da literatura. Sendo a literatura baseada na imitação, como buscar a sua verdade? Na abertura de A perda da imagem ou Através da Sierra de Gredos, do austríaco Peter Handke, temos: “Evite a palavra ‘verdade’, ditou ela ao autor, substitua-a por ‘abrangente’”. A mulher dita sua história ao escritor e faz a advertência que estimulará a criação, que abrirá caminho a uma subjetividade incomum.

Fausto Wolff, por sua vez, no romance O lobo atrás do espelho, ensina que “a verdade é uma mentira sem imaginação”. Ainda nesse mesmo título, somos informados que “as coisas são o que quisermos que sejam e estão onde quisermos que estejam”.

A frase acima resume uma possibilidade de interpretação da literatura — a literatura comprometida com a fantasia, sem prestar contas ao real, livre das exigências de uma racionalização exacerbada.

Realismo urbano
Você, astuto leitor, perceberá que Alguém vai ter que pagar por isso trafega por outra pista. Luís Pimentel descreve um realismo urbano que tangencia o absurdo, a cópia fiel do mais famoso cartão-postal deste país à deriva. A matéria dessas possibilidades: o ser humano. Este se repete em seus anseios, sua mediocridade, sua baixeza, sua periculosidade.

Pimentel faz literatura, imprescindível literatura, utilizando a repetitiva pauta de jornais, rádios e noticiários televisivos. O cenário repleto de contrastes sociais não está nos mapas, mas se assemelha à ainda bela e cada vez menos alegre cidade do Rio de Janeiro, capital do estado recordista em governadores afeitos a um xilindró — Witzel, Moreira, Cabral, Pezão, Garotinho, Garotinho. Corrupção, miséria e morte são o subproduto da incompetência aliada às piores intenções.

A narrativa de Pimentel se encaixa com exatidão na realidade carioca: tiros, assassinatos, corrupção, miséria, abandono da população. Dessa matéria resultaria um conto. Quem não escutou tal profecia? Até mesmo bordar um lenço pode gerar um conto, desde que escrito por alguém talentoso. No mais, é puro relato. Nada além… “Nada além de uma ilusão.”

A trajetória de uma bala de metralhadora, pistola, revólver, pode resultar uma história. A fala de alguém que teve seu familiar assassinado por conhecido desleixo institucional também é matéria-prima valiosíssima, mas precisa cair em mente afeita à escrita. Pimentel é escritor sem turma, tem seu jeito, seu estilo, distribui seu conhecimento.

Estrutura
A ficha catalográfica do livro informa: 1. Literatura brasileira. 2. Conto brasileiro. Não acredite. É conto e muito mais. É crônica e ao mesmo tempo um grande romance. Mas pode ser tudo isso? Pode. Leia os capítulos como contos, todos terão coerência e cronologia que conduz a um fechamento, como a vida em seu passar dos dias.

Determinados capítulos são crônicas do cotidiano, imagino carioca, e, por fim, leia-os em sequência e perceberá o encadeamento e comporá um significativo romance. Algo como abrir o livro, abrir a janela, ler os capítulos, observar a cidade do Rio de Janeiro em seus movimentos mais deploráveis, aqueles que mostram seres humanos honestos, inocentes, infantis, como coadjuvantes de uma história sórdida e aterrorizante.

Atenção: insistir em definir o pano de fundo como sendo o Rio de Janeiro é fruto desta mente que ora merece sua atenção e paciência, já que o autor não nomeou/acusou a Cidade Maravilhosa, apenas chamou atenção para o que cabe a uma população abandonada — o conformismo, a falta de opção:

Só o cão da repartição marcava ponto na saída, meditando sobre o rabo cabreiro. Viu nos olhos do animal certa expressão de “sinto muito” e ficou comovido. Atirou para ele o resto dos biscoitos. Deu cinco ou seis passos à frente e, em seguida, voltou para pegar de volta.

Morte e embrutecimento
Alguém vai ter que pagar por isso aponta na direção do embrutecimento, o abandono criando éticas, beirando o matar para viver, o matar para sobreviver, o individualismo, o egoísmo em primeiro plano. Amor? Amor é coisa para depois. Depois da novela, do futebol.

O filho está sentado diante da televisão ligada, assistindo ao futebol. Tem um copo de cerveja na mão e o revólver sobre a mesa de centro. Ele intercepta o olhar da mãe na direção da arma e se antecipa:

Está descarregada.

A mulher mantém a expressão de desconfiança com a qual o encarou desde sempre. O filho oferece uma justificativa:

É só por segurança, minha mãe. A senhora sabe como a cidade está.

Ela faz um gesto de desconforto que o filho entende logo.

Está mijada de novo? Vou trocar sua fralda. O sentimento dela é de tristeza e vergonha. O rapaz se impacienta:

Espera acabar o primeiro tempo do jogo.

A morte se faz presente o tempo todo, o que não torna a narrativa pesada ou deprimente, pois Pimentel o faz com bom humor. Você a perceberá nas entrelinhas dos planos para abortar o filho do bandido, nas promessas de matar a estrela da escola de samba; em primeiro plano, a morte se anuncia quando policial ou bandido mata para vingar colega. O corriqueiro desentendimento entre vizinhos e a demissão do emprego, em meio à grande tensão, também levam à morte. Tem morte na prisão, gente morta por policial por segurar um guarda-chuva confundido com fuzil. Mas também tem o policial que mata pela última vez:

Ele sacou a pistola institucional e começou a atirar. Fez mais de dez disparos. Acho que pensou que os jovens estavam assaltando o depósito, sei lá.
Logo em seguida o policial se aproximou dos corpos e reconheceu uma das vítimas: era seu sobrinho, filho de seu irmão.
Nem guardou a pistola. Ali mesmo se matou, com dois disparos na têmpora.

Não conheço quem negue ou minimize as belezas naturais do Rio de Janeiro, desconheço quem negue a participação da perigosa mão dos administradores. Eleitos, pasmem!, jogaram a cidade à responsabilidade de milícias e burocratas incompetentes.

Impossível não visualizar a Cidade Maravilhosa e seus vícios durante e após a leitura da esclarecedora narrativa de Luís Pimentel, que mostra as nefastas ações das balas indevidas (se encontram alvo não podem ser “perdidas”), sem esquecer as ações de formação de quadrilhas.

É sobre o seu filho. O seu amado filhinho. Sabia que o boneco também está envolvido no assassinato da vereadora? Ele é carne e unha com o tal Tonho da Matraca. A senhora sabe a história da vereadora, não sabe? Foi fuzilada juntamente com o motorista, porque contrariava alguns interesses do grupo ao qual o seu filho pertence.

O livro mostra a essência da vida de muitos brasileiros. Um pessimismo diluído no texto bem-humorado, futebol e carnaval, também evoluem pelas páginas/passarela de um triste e arrogante país. Realidade ou ficção? Do bom humor e do lirismo do autor resulta a lúcida ficção que puxa as orelhas do desafinado coro dos acomodados, aqueles que preferem areia e sol ao voto, permitindo que a mediocridade os comande.

Real e ficcional
Voltemos à discussão acerca dos limites da ficção e do real em literatura, tema discutido por Paul Valéry: “Em literatura o verdadeiro não é concebível e qualquer tipo de confidência visa à glória, ao escândalo, à desculpa, à propaganda”.

Cabe acrescentar que a aproximação do real com o ficcional, em qualquer instância, traz consigo um perigo bastante considerável, abalando a legitimidade dos gêneros. Afinal de contas, o que é isso? Um romance resulta da liberdade de imaginar, mas que culpa tem o autor se a realidade colabora significativamente?

Trata-se de uma narrativa-denúncia dos horrores do conflito, do colonialismo, do capitalismo, da pobreza, da fragilidade da condição humana. Pequena mostra dos feitos da pós-modernidade.

(Parêntese para breve esclarecimento acerca do significado de pós-modernidade. Em primeiro lugar, o ápice do capitalismo. Em segundo, apogeu das incertezas, apagamento das utopias, luta desenfreada pelo poder.

Enquanto no modernismo buscava-se o novo, a originalidade, entendia-se o escritor como um representante da genialidade criativa, em nossos dias a concepção é bem outra. A literatura traz consigo uma gama de responsabilidades, tais como o engajamento do autor, a preocupação com temas sociais e o ineditismo temático como lema. A última parte, em se tratando de horrores, é quase impossível em nossa realidade recente.)

Alguém vai ter que pagar por isso não constitui uma narrativa da felicidade, muito pelo contrário, é uma narrativa da “quase realidade”, da vida — essa “cruel quase ficção”.

Alguém vai ter que pagar por isso
Luís Pimentel
Faria e Silva
119 págs.
Luís Pimentel
É jornalista e escritor. Baiano de nascença, tem 67 anos e mora no Rio de Janeiro (RJ). Publicou livros em variados gêneros (romance, conto, poesia, infantojovenil, música e teatro) e ganhou prêmios por seu trabalho, como o Literatura para Todos, do MEC, Cruz e Sousa, da Fundação Catarinense de Cultura, o Cidade de Belo Horizonte e o União Brasileira de Escritores Internacional.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho