Carta ao presente

Em “A criação”, Edward O. Wilson faz uma radical defesa da preservação da vida, do reencontro com a Terra e da essência do homem
Edward O. Wilson, autor de “A criação”
01/06/2008

Quando o entomólogo Edward Osborne Wilson decidiu escrever A criação — como salvar a vida na Terra, talvez não tenha se inspirado em A nova Heloísa, de Rousseau, ou em Pamela, de Samuel Richardson. E, com absoluta certeza, seu objetivo não foi seguir o modelo escolhido por Chordelos de Laclos em Relações perigosas. Mas, ao eleger o gênero epistolográfico para compor seu longo ensaio em defesa da preservação da biodiversidade, Wilson se inscreveu em uma das mais prolíficas — se não das mais prazerosas — categorias literárias.

Não poderia ser diferente, contudo. Destacado intelectual, biólogo que ascendeu à classe dos humanistas, era previsível que, próximo de completar 80 anos, Edward O. Wilson se filiasse ao seleto grupo de missivistas que concederam ao coloquialismo de suas cartas uma inflexão de perenidade. Em um grupo tão díspar quanto extraordinário, no qual encontramos Cícero, Petrarca, Maquiavel, Madame de Sévigné, Voltaire, Goethe, Flaubert e Gramsci, Wilson optou pela epistolografia para gravar sua concepção de uma ética não só possível, mas profundamente desejável.

Dirigindo-se, em tom fraternal, a um hipotético pastor protestante, filiado ao criacionismo, Wilson não dispensa, em sua proposta de diálogo sincero, a colocação, desde o início, das diferenças entre ele e seu interlocutor. O que o move é a certeza de que há uma luta comum — necessária, urgente — capaz de unir ambos: salvar a Criação, pois “a defesa da natureza viva é um valor universal”.

Em certo trecho, Edward O. Wilson afirma: “a Criação — quer o senhor acredite que ela foi colocada neste planeta por um único ato de Deus, quer aceite as evidências científicas de que ela evoluiu de maneira autônoma durante bilhões de anos — é a maior herança, além da própria mente racional, que já foi oferecida à humanidade”. O autor não se furta, portanto, à franqueza. Não se permite o uso de quaisquer subterfúgios. O terreno para o qual convida seu interlocutor não é neutro, pois a neutralidade é impossível, mentirosa. Se há uma ética comum — “com base na razão, na lei e em um senso inato de decência” — e valores comuns a serem defendidos — “segurança, liberdade de escolha, dignidade pessoal” —, o local do encontro é “o lado de lá da metafísica”.

Riqueza de gêneros
Mas A criação não é apenas uma longa carta. Outros gêneros confluem na elaboração dessa defesa daquela “parte do ambiente original e de suas formas de vida que permanece depois do impacto humano”, ou seja, da natureza, segundo a definição de Wilson.

Esse biólogo ganhador de dois prêmios Pulitzer — em 1979 (por On human nature, Harvard University Press, traduzido entre nós pela T. A. Queiroz, mas infelizmente esgotado) e 1991 (por The ants, Belknap Press, escrito em parceria com o mirmecologista Bert Hölldobler, sem tradução no Brasil) — envereda pela memorialística e pela narrativa de viagens. Recorda não só a própria formação intelectual, mas inclusive parcela de sua história familiar. E se revela um cronista atento aos sinais, no espaço urbano, de que a natureza ainda respira, de que a vida ainda tem uma oportunidade. Certa frágil planta, nascida em meio ao concreto armado, surge como “o último bastião da resistência, a vanguarda da inevitável volta do planeta Terra para o verde e o azul”, esperando que os homens mudem sua maneira de pensar e agir.

A missiva ao religioso imaginário é também um exercício de investigação biológica que incorpora pesquisas históricas. Wilson viaja até os dias de frei Bartolomé de las Casas para esclarecer as razões de uma praga de formigas que assolou o Caribe durante os séculos 16 e 17. Mas não se trata de um estudo gratuito. Suas conclusões são de que “a história das formigas é um reflexo fatídico do que está acontecendo com o restante da vida no planeta. Com o aumento da globalização, do comércio e das viagens internacionais, aumenta também a difusão das espécies alienígenas, inteiramente como resultado da atividade humana. Todos os países são hospedeiros, em geral inconscientemente, de uma multidão desses seres invasores, uma maré que só tende a aumentar”. Quanto às conseqüências dessas invasões crescentemente sistemáticas, todas são terríveis: pragas agrícolas, agentes exóticos de doenças humanas, prejuízos incontáveis, extinção de espécies nativas e, a mais séria de todas, a “homogeneização da biosfera”, ou seja, a destruição do maior patrimônio da natureza: a sua diversidade.

Wilson sabe equilibrar os péssimos prognósticos — “os cientistas estimam que, se a conversão dos habitats naturais e outras atividades humanas destrutivas prosseguirem no ritmo atual, metade das espécies de plantas e animais da Terra pode desaparecer, ou, pelo menos, estará fadada à extinção precoce até o final deste século” — à inesperada visão dos pormenores de uma realidade que, infelizmente, ninguém jamais nos ensinou a observar: “a voraz lagarta de uma obscura mariposa da América tropical já salvou as pastagens da Austrália do excesso de cactos”; “um ‘matinho’ de Madagascar, a pervinca rosada, forneceu os alcalóides que curam a maioria dos casos da doença de Hodgkin e de leucemia infantil”; a “substância derivada de um obscuro fungo da Noruega possibilitou realizar os transplantes de órgãos” — e, dentre inúmeros outros exemplos, uma maravilhosa substância encontrada na saliva das sanguessugas, a partir da qual “foi feito um solvente que evita a coagulação do sangue durante e após as cirurgias”.

É verdade que Edward O. Wilson se permite um discurso apocalíptico em determinados trechos. Mas a defesa radical da natureza — e a defesa, principalmente, do que não conhecemos da biodiversidade, ou seja, sua maior parte — não estariam justificadas pelo simples fato de que “cada espécie, por mais humilde e quase invisível que nos pareça, é uma obra-prima da biologia, que bem vale a pena salvar”?

Franciscanismo
Resguardadas as devidas proporções, o discurso de Wilson fez-me lembrar, em vários trechos, de são Francisco de Assis. E a analogia não surge apenas desse amor à criação, a todas as criaturas — “[…] nossa mãe a Terra/ que nos carrega e nos alimenta,/ que produz a diversidade dos frutos/ com as flores matizadas e as ervas…”, diz o Cântico do irmão Sol —, mas, principalmente, pela proposta de “volta às fontes”, “sinal e penhor de renovação e progresso”, como bem assinalou o medievalista Jacques Le Goff: “Volta às fontes, porque não se pode esquecer finalmente que o franciscanismo é reacionário. Em face do século XIII, moderno, ele é a reação não de um inadaptado […], mas de um homem que quer, diante da evolução, resguardar valores essenciais”. De fato, o pensamento de Edward O. Wilson assemelha-se ao “contraponto franciscano” — uma “necessidade do mundo moderno”, uma “sancta novitas”, plena daquela rara pureza, sempre indispensável.

Busca do consenso
Mas A criação tem outros aspectos peculiares. O livro comporta a ensaística de cunho pedagógico: além de desenvolver um método para o ensino da biologia, questiona-se sobre a necessidade de se formar biólogos e naturalistas. As respostas de Wilson inscrevem o autor no rol daqueles pensadores que, não satisfeitos em explorar os domínios de certa ciência, partem em busca do saber acumulado por todas as culturas:

Da liberdade de explorar vem a alegria de aprender. Do conhecimento adquirido pela iniciativa pessoal advém o desejo de obter mais conhecimentos. E ao dominar esse novo e belo mundo que está à espera de cada criança, surge a autoconfiança. Cultivar um naturalista é como cultivar um músico ou um atleta: excelência para os talentosos, prazer por toda a vida para os demais, benefício para toda a humanidade.

O gesto de estender a mão em busca do diálogo e de um consenso para a defesa do planeta é mais do que louvável. A única resposta diante do fato de que “menos de 10% das formas de vida são conhecidas pela ciência, e menos de 1% destas já foram estudadas além de uma simples descrição anatômica e algumas anotações sobre sua história natural” só pode ser a recusa a pactuar com qualquer forma de destruição ou, pior, de acídia. Mas Wilson dá outro nome a essa tibieza que acomete os seres humanos: “filosofia do excepcionalismo”. Segundo o biólogo, há duas formas de excepcionalismo: “a primeira é leiga: não vamos mudar de rota agora; a inteligência humana há de prover. A segunda é religiosa: não vamos mudar de rota agora, estamos nas mãos de Deus, ou dos deuses, ou do carma da Terra, ou do que quer que seja”.

Descartando todos os aspectos artificiais de nossa civilização, Wilson recusa a ignorância em relação ao meio ambiente e a educação científica inadequada, que chega muitas vezes a ser obscurantista:

As raízes espirituais do Homo sapiens se estendem até as profundezas do mundo natural, por meio de canais de desenvolvimento mental que ainda hoje permanecem, em geral, desconhecidos. Nosso pleno potencial não será atingido sem que compreendamos a origem e, portanto, o significado das qualidades estéticas e religiosas que nos tornam inefavelmente humanos.

Verdadeiro tratado de tolerância religiosa, A criação não nos convida, entretanto, ao frio exercício da virtude — esse ato solitário e, convenhamos, às vezes nascido de um evidente egocentrismo —, mas à preservação da vida, ao reencontro com a Terra e com a essência do homem.

A criação — como salvar a vida na terra
Edward O. Wilson
Trad.: Isa Mara Lando
Companhia das Letras
192 págs.
Edward O. Wilson
Nasceu em Birmingham, Alabama, EUA, em 1929. Professor da Universidade Harvard há quase cinco décadas e autor de mais de vinte livros, é considerado um dos mais proeminentes biólogos do mundo. Já recebeu diversas honrarias, incluindo a Medalha Nacional de Ciências dos Estados Unidos e o Prêmio Crafoord, concedido pela Real Academia de Ciências da Suécia para áreas não abrangidas pelo Prêmio Nobel. Além de A criação — como salvar a vida na Terra, foram publicados dele no Brasil: Biodiversidade (Nova Fronteira), Da natureza humana (T. A. Queiroz), Diversidade da vida (Companhia das Letras), Naturalista (Nova Fronteira) e A unidade do conhecimento — consiliência (Campus).
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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