Carta ao autor fora do baralho

Não é de espantar que a amizade, o amor e o rancor sejam determinantes na consagração ou na avacalhação de livros e escritores
Ilustrção: Tereza Yamashita
01/02/2006

Caro amigo,

Você sabe. Durante todo o ano de 2000 vários cadernos culturais, muitos sites e seis ou sete editoras de peso começaram a estabelecer e a divulgar a lista dos cem, dos 20, dos dez melhores livros publicados ao longo do século que ainda não havia acabado. O desdobramento natural dessa iniciativa foi o surgimento de duas antologias importantes, que, unindo a literatura e o nosso fetiche pelo redondíssimo e harmônico número cem, elegeram os cem melhores contos e os cem melhores poemas brasileiros do século 20, ambas organizadas por Ítalo Moriconi. A partir daí até pelo menos meados de 2005, devagar foram sendo publicados dezenas de outros balancetes: antologias que apresentam a movimentação literária do último século, a contabilidade, o cálculo das despesas e dos ganhos principalmente da nossa literatura.

Dentre esses balancetes constam as antologias organizadas por Claudio Daniel e Frederico Barbosa, Flávio Moreira da Costa, Heloísa Buarque de Hollanda e Luiz Ruffato, e as organizadas por mim mesmo: Geração 90: manuscritos de computador e Geração 90: os transgressores. Até onde se tem notícia, as duas últimas foram as primeiras antologias de autores, não de peças literárias, publicadas no Brasil (a seleção feita por José Nêumanne Pinto, intitulada Os cem melhores poetas brasileiros do século, apareceu meses depois). Aliás, esse desvio da norma, essa queda na excentricidade (selecionar os melhores prosadores e não as melhores prosas publicadas na última década antes da virada do século) desencadeou reações muito interessantes, a maioria de espanto e desconforto.

Mas não é apenas sobre as antologias que eu quero falar. É sobre as mais diversas reuniões canonizadoras. É sobre você e seus amigos. É sobre os excluídos de nossa literatura, sobre os que justa ou injustamente foram, são e serão sempre deixados de fora da festa, de todas as festas. Aliás, se quiser se divertir um pouco, Sérgio Sant’Anna publicou uma crônica bastante reveladora sobre esse tema no site Cronópios (www.cronopios.com.br).

No final do ano passado, seguindo essa tendência natural de fazer e divulgar os balancetes, vários cadernos culturais e muitos sites importantes pediram aos críticos e aos escritores que estabelecessem a lista dos melhores livros publicados em 2005. Essas enquetes são valiosas por dois motivos: por meio delas o leitor fica a par do que chamou a atenção nas livrarias, e também fica sabendo um pouco mais sobre o temperamento dos críticos e dos escritores que votaram. Na minha lista para O Estado de S. Paulo (a crônica do Sérgio é sobre essa enquete) tive a oportunidade de apresentar os dez livros que me chamaram a atenção no ano passado. Reproduzo a lista abaixo, agora com as devidas justificativas:

1, poemas de Gonçalo M. Tavares (Bertrand Brasil). Esse talentoso poeta, contista e romancista português, cuja força está na ironia devastadora, surgiu de repente no cenário das letras e já arrebatou os principais prêmios literários de seu país. 1 reúne oito pequenos livros do autor, cada qual com seu próprio estilo.

O homem ou é tolo ou é mulher, poemas de Gonçalo M. Tavares (Casa da Palavra). Mais um pouco do humor e do nonsense da mais recente revelação da poesia portuguesa contemporânea. Esses poemas discursivos e confessionais aproximam-se muito da prosa.

Contos negreiros, contos de Marcelino Freire (Record). A irreverência do autor pernambucano, cujo texto se caracteriza pelo cuidadoso trabalho com a oralidade e a musicalidade das palavras, está afiadíssima nessa sua última coletânea.

Figuras metálicas, antologia de poemas de Claudio Daniel (Perspectiva). O melhor do melhor dos livros anteriores do poeta e tradutor paulista, somado a vários inéditos. É o livro mais importante da carreira de Claudio Daniel, especialista na criação de imagens sublimes e enigmáticas.

A dimensão da noite, reunião póstuma de ensaios de João Luiz Lafetá (Editora 34). A coletânea é ao mesmo tempo uma introdução e a síntese da trajetória crítica desse estudioso principalmente do nosso modernismo. A maior parte dos textos reflete de maneira perspicaz sobre o conflito entre dois projetos nacionais, o estético e o ideológico, conflito característico da primeira metade do século 20.

Dobras da noite, contos de Chico Lopes (IMS). As narrativas desse livro retomam certo projeto literário abandonado pela nova geração, em que a angústia e a claustrofobia existencialista desempenhavam papel fundamental. Esse projeto começou com Dostoiévski, passou por Lúcio Cardoso e Raduan Nassar, e agora tem Chico Lopes como talvez seu único autor.

Essa loucura roubada que não desejo a ninguém a não ser a mim mesmo amém, antologia de poemas de Charles Bukowski (tradução de Fernando Koproski, 7 Letras). Fazia tempo que o velho Bukowski não aparecia em verso nas estantes brasileiras. A antologia é uma edição bilíngüe que reúne poemas desbocados e demolidores, selecionados dos 11 livros do autor, do período de 1969 a 1999.

Fundo infinito, contos de Branca Maria de Paula (Rosa Rumo). Contos maliciosos, oníricos, cômicos ou libertinos, em que o erotismo jamais descamba para o mau gosto. Mesmo quando o apelo pornográfico começa a subverter o tom da prosa, esse exagero acaba provocando mais o sorriso do que o repúdio.

O segredo da bastarda, romance de Cristina Norton (Record). Esse é o primeiro romance da ótima autora portuguesa publicado no Brasil. Nele, a delicada revolta feminina reúne figuras imaginárias (Nossa Senhora) e históricas (a nobreza do período) para contar o drama da filha bastarda de Dom João VI, Eugênia Maria de Meneses, mulher que ousou ir contra os dogmas morais e religiosos de seu tempo.

Voláteis, romance de Paulo Scott (Objetiva). Primeiro romance do jovem autor gaúcho, que sabe criar personagens e cenários bizarros, às vezes violentos e escatológicos, sem deixar de lado o estilo refinado. No livro de Paulo Scott, o rosto belo e o rosto hediondo da metrópole são sempre o mesmo rosto.

Observe, meu amigo, que não foi citado o último livro de Flávio Viegas Amoreira, Escorbuto: cantos da costa. Nem o de Arlindo Gonçalves (Desonrados), ou o de Suênio Campos de Lucena (Depois de abril), ou o de Ivana Arruda Leite (Ao homem que não me quis), ou o de Marçal Aquino (Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios), ou os dois livros de Luiz Ruffato (do ciclo Inferno provisório), ou o de Moacir Amâncio (Óbvio). Esquecimento? Má vontade? De jeito nenhum. Falta de espaço, isso sim. Quem pouco leu o Rascunho e mal entrou numa livraria ao longo de todo o ano passado, mesmo esse diletante teve a sensação de que o número de bons títulos publicados foi enorme. Uma lista realmente justa teria que trazer no mínimo 20 ou 30 indicações. É claro que o tipo de cobrança acabrunhada, retratada pelo Sérgio Sant’Anna, jamais passaria pela cabeça do Flávio, do Arlindo, do Suênio e dos demais. A elegância e a fé no valor do próprio trabalho não permitiriam. Mesmo assim recebi vários e-mails chorosos de outros autores que, entra ano e sai ano, jamais foram indicados pelos críticos ou pelos seus pares. E-mails melancólicos, desanimados, cheios de autopiedade.

É certo que os escritores que, iguais a você, reclamam por estar à margem, esses escritores são os que, tendo ou não escrito obras de qualidade, não possuem capital social e nunca se esforçaram para adquirir algum. São os mesmos que detestam a vida social literária e defendem a velha máxima de que o importante, quando o assunto são os livros, é o mergulho no universo particular, ou seja, o trabalho disciplinado, solitário e silencioso. A grande literatura, para eles, é fruto da total privacidade.

É nessa hora que a necessidade tão humana de reconhecimento público cobra o seu preço. Apesar de elegerem a solidão como princípio estrutural, esses autores imaginam que o seu trabalho literário, tão solitário e relevante quanto o de todo mundo, deveria produzir (se possível no mesmo momento em que estiver sendo gestado) uma reação estupenda dentro da comunidade, uma comoção tão intensa quanto à provocada pelo próprio labor poético ou ficcional. Isso não acontece, pelo simples fato de que os recursos da literatura são suficientes para produzir apenas respostas individuais, não a tão desejada resposta coletiva. As únicas ferramentas capazes de provocar a comoção social são as da política.

Quê? Você está torcendo o nariz para a palavra política? O folclórico Afrânio Coutinho escreveu mil vezes em mil artigos:

A vida literária brasileira não é muito limpa. Nela dominam a intriga, o espírito de capela, as rivalidades, a inveja aberta ou velada, as competições mesquinhas e as ambições pessoais. Tudo gira em torno do personalismo. Da glorificação de uns, da destruição de outros. Raramente a sinceridade é o combustível das atividades. No Brasil a vida literária suplanta a própria literatura. Enquanto a literatura brasileira denota grande pobreza de obras, é muito rica em figuras curiosas, carismáticas, pitorescas e espirituosas. Os escritores brasileiros são exímios na manobra de bastidores. Por meio do elogio mútuo, da troca de favores e da bajulação, eles conseguem êxito no domínio da vida literária.

Estava o crítico errado? Claro que não. Mas o tom virulento de seus artigos denotam espanto e nojo, que por sua vez denotam a mais pura ignorância das leis perversas que sempre regeram a vida em sociedade e a política. As mesmas leis que, até então ocultas, foram expostas à luz do dia por Marx, Darwin, Nietzsche, Freud e tantos outros. Revelar que na vida social literária — sejamos francos, na vida social em geral — dominam a intriga, o espírito de capela, as rivalidades, a inveja aberta ou velada, as competições mesquinhas e as ambições pessoais… Ora, essa revelação é tão surpreendente quanto apontar para o sol e afirmar que nosso planeta gira em torno dele.

Hoje não é novidade para ninguém que a comunidade literária, assim como todas as comunidades humanas — a científica, a médica, a cinematográfica, etc. — é sustentada quase que exclusivamente por laços instintivos e afetivos. A literatura, apesar de exigir disciplina e alto poder de raciocínio abstrato de quem a pratica, é motivada e realizada muito mais pela paixão do que pela razão. Sendo assim, não é de espantar que a amizade, o amor e o rancor sejam determinantes na consagração ou na avacalhação de livros e escritores. O reconhecimento público é fruto mais da política do que apenas da qualidade literária. É claro que quando há, além do talento político, também a qualidade literária, o trabalho da política fica muito mais fácil.

Depois desse rápido abrir de olhos para o fato de que o mundo das letras não está povoado de anjos, mas de mamíferos raciocinantes de todos os tipos — éticos e antiéticos, dignos e indignos, talentosos e medíocres, geniais e estúpidos, e as combinações possíveis: geniais e antiéticos, dignos e medíocres, etc. —, vamos às três formas naturais de reação a esse estado de coisas, por parte de quem se sente abandonado e incompreendido pela opinião pública. Se você escreve bons livros e jamais foi incluído nas listas de final de ano e nas antologias críticas, você tem o dever de:

1. Verificar se seus livros são mesmo bons. Reavaliar sua obra, procurar descobrir se ela realmente tem, para o resto da sociedade brasileira, o mesmo valor que tem para você.

E o direito de:

2. Falar diretamente com os formadores de opinião: os juízes de concursos literários, os jornalistas, críticos e escritores que participam das enquetes ou organizam antologias. Chamar sua atenção, mostrar a eles que você e sua obra existem, ter voz ativa na comunidade.

3. Pôr em xeque o próprio cânone provisório estabelecido por essas enquetes e por essas antologias. Tentar subverter as regras do jogo, começar a impor seu próprio gosto pessoal, retirar a autoridade dos formadores de opinião que participam de enquetes ou organizam antologias. Afinal, quem foi que lhes deu o direito de dizer quais livros devem ser lidos e quais não?

Como escritor, por temperamento gosto mais da primeira e da terceira alternativa. Reavaliar minha própria obra diante das últimas oscilações na bolsa de valores literária é algo que já se tornou habitual na minha vida. Mas o resultado de todos os balanços pessoais tem sido sempre o mesmo: continuo não duvidando da qualidade do que escrevi e publiquei. Essa crença me leva freqüentemente a dar o passo seguinte, que é esvaziar, sempre que desfavorável ao meu trabalho, o próprio cânone provisório estabelecido pelos formadores de opinião. A segunda alternativa, apesar de bastante legítima como tática de defesa contra os golpes baixos e perversos que o instinto de sobrevivência vive aplicando em toda parte, nunca me apeteceu. Como escritor, não condeno quem a pratica. Mas, como formador de opinião, detesto ser abordado nesses termos. Esse procedimento eu considero política de baixa qualidade.

Você certamente irá perguntar: e a modéstia? E o nobre silêncio diante das injustiças perpetradas pela massa insensível? Não são alternativas? Na minha opinião a modéstia (a verdadeira ou a falsa) não é alternativa a ser considerada, a menos que o autor negligenciado não viva neste mundo, mas apenas no espaço multiforme e confortável de sua literatura, ou seja, na região ideal de sua mente, para a qual a opinião pública, por ser externa, não faz nenhuma diferença. Pode até ser difícil de acreditar, mas existem autores assim. Eu os invejo.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho