“Mestre, são plácidas as horas que perdemos…” — eu poderia, prezado Trevisan, começar esta carta assim, citando Ricardo Reis, mas estaria contrariando seu desejo de não ter discípulos e estaria também falseando meu ritmo, próximo daquele outro heterônimo pessoano, Álvaro de Campos, autor do mais indignado texto da língua portuguesa: “Toda gente que conheço e que fala comigo/ nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho/ nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida”. Talvez meu tom fique entre um e outro, revelando perigosas alterações de humor.
Vem sendo espalhado há alguns anos que escrevo uma biografia sobre o renomado contista, este e outros boatos fizeram com que fôssemos nos distanciando. O grande culpado fui eu, pois nunca desmenti publicamente e meu silêncio era lido como comprovação. Não escrevi e nem tenho desejo de escrever biografias, por me faltar sensibilidade para este gênero e por eu estar mais interessado nas revelações de atos isolados das personalidades, entediando-me com narrativas lineares e longas. Sequer sou bom leitor delas, a matéria de meu interesse foi e sempre será a ficção.
Mas tenho pecados mais pesados do que o da omissão, porque além de leitor e crítico, fui tentado, violentamente tentado, a ir além e me deixei perder. Minha perdição foi ter passado à categoria de escritor, e todos souberam acusar-me com veemência — eles, os tais príncipes. Depois que publiquei Chove sobre minha infância, amigos afastaram-se de mim e começou o trabalho noturno das intrigas, resolvi então isolar-me em Ponta Grossa, para onde voltei em 2001, menos de um ano depois do lançamento do romance. Achei que saindo de cena, as intrigas diminuiriam, eu poderia levar minha vida tranqüilamente. Mas já estava contaminado por elas, tinha que dar uma resposta. Mais do que ninguém, o grande contista sabe que a única forma que um ficcionista (por menor que ele seja) tem de compreender a realidade é deformando-a com as ferramentas da ficção.
E aí está meu pior pecado. Aprendi a usar algumas destas ferramentas, e aprendi isso em obras de altíssima qualidade, como a sua, que venho estudando desde que dominei os rudimentos da análise literária. Não sou seu maior crítico, mas sou com certeza o mais persistente e talvez o mais devotado. Foram muitos trabalhos, uma dissertação de mestrado, uma tese de doutoramento e dezenas de artigos, no mínimo um sobre cada livro seu. Como crítico, posso dizer, que tenho sido fiel à obra do mestre, mesmo que você não queira se ver assim, pois conheço suas opiniões e a sinceridade delas.
Estraguei-me para o tipo de convívio esperado por você quando tive que fazer minha própria literatura. Esta opção obrigou-me a ser quem eu era, afastando-me de um estilo alheio — imenso, é verdade, mas que não pode ser imitado, apenas reverenciado.
Depois da estréia na ficção, comecei a escrever outro romance. Estamos sempre escrevendo um novo romance, mesmo quando não estamos escrevendo. O primeiro tinha revelado minha família biológica, o de agora, pensei, deveria se fixar na família espiritual. Na raiz destas duas obras, a mesma idéia — o espírito grupal anula a individualidade. O novo romance foi escrito entre 2001 e 2003, sob um estado de espírito marcado pela decepção. Ao contrário do anterior, aqui as pessoas são fictícias, embora haja um vínculo direto com as experiências vividas nos últimos anos.
O livro já teve vários títulos, mas parece que o definitivo será Chá das cinco. Andam dizendo que é sobre você, eu deixei que este boato tomasse corpo, mas agora devo esclarecer tudo. Não sei se vou tranqüilizá-lo, mas não é a história do contista. É algo menos interessante, a vida de um jovem, nascido na década de 70, no interior, e que vem a Curitiba em um projeto equivocado. Ele se chama Beto Nunes, abandona a faculdade, vive de colaborações em jornal e de uma mesada familiar, convive superficialmente com os escritores locais, escreve um romance, sofre muito com a morte de uma tia querida e rompe com a cidade. Mais de dois terços do livro são sobre o inofensivo e provinciano Beto Nunes, que não é um alter ego meu, embora seja movido por sentimentos que conheço.
Era inevitável que características de autores paranaenses fossem condensadas em alguns personagens inventados. Igualmente inevitável o aproveitamento ficcional de frases, histórias e comportamentos desta fauna. Tudo isso aprendi na leitura de sua obra, em que tantos são os exemplos de uso de histórias reais para fins de ficção. Embora rebelde e nanico, o ex-quase-discípulo tentou aproveitar as horas plácidas de convivência e leitura. Perdoe nele, portanto, a ousadia, mas tente reconhecer o esforço e a dedicação.
Dizem que este Chá das cinco é contra o contista. Não é contra nem é a favor. Não é sequer sobre. Então qual sua polêmica matéria?
Embora não seja exclusividade nossa, a grande marca do paranaense é a intriga. Este livro é sobre a arte da maledicência, praticada em menor ou maior grau por todos nós. Se é contra os escritores paranaenses, é também contra o próprio autor, que não pode se julgar acima dos demais e que confessa aqui sua culpa, sua incomensurável culpa. A diferença é que uns usam a maledicência para fazer fortuna, outros para exercitar o ressentimento, outros para mostrar superioridade — estou entre aqueles que a usam para fazer literatura. Não chega a ser algo nobre, mas torna-a menos detestável.
O romance está pronto, cópias dele já passaram por alguns leitores e uma editora paulista aprovou sua publicação. Mas ando segurando os originais para mais e mais revisões, e hoje confesso que não tenho certeza se vou ou não publicá-lo, pois há o risco de que seja lido como um romance à clef, fazendo uma ligação simplista entre alguns personagens e certas personalidades. Ele pode ser lido assim, mas toda pessoa real, transposta para o mundo da ficção, torna-se outra, e só existe ficção quando há esta alteridade. A leitura colada a nomes próprios pode estragar a recepção. Como agora me dedico a outro romance, sobre os anarquistas italianos, talvez Chá das cinco nem seja publicado. Que fique apenas para meu secreto deleite.
Boatos como este sempre estão sendo criados, o que talvez indique que algo em mim incomoda as pessoas. Não pode ser a beleza nem a inteligência, nunca me distingui por nenhuma das duas. Talvez seja apenas o esforço típico de quem vem de um meio pobre. Dizem, por exemplo, que Fulano e Beltrano (com maiúsculas, é claro) são meus inimigos. Tenho a sorte de não ter um único inimigo. Só tem inimigos quem aceita tê-los. Estou sempre pronto para a amizade mesmo com quem me prejudicou. Por não guardar ódio, livrei-me dos inimigos. Tenho, isso sim, inúmeros detratores. Mas há uma diferença conceitual entre eles. Os inimigos precisam ser declaradamente contendores, e como nunca vou me render ao rancor, jamais haverá o confronto — conseqüência inevitável da inimizade. Os detratores conspiram por trás das cortinas de veludo. E eu tenho o péssimo hábito de tratar de todos os assuntos abertamente.
Receba esta carta como mais um gesto de admiração de seu sempre leitor.