Carta a um presidiário

Resenha do livro "Tesão e prazer", de Luiz Alberto Mendes
Luiz Alberto Mendes, autor de “Tesão e prazer”
01/07/2004

Prezado Luiz Alberto Mendes,

Acabei de ler seu livro Tesão e prazer — Memórias eróticas de um prisioneiro. Não se anime muito, não o comprei por espontânea vontade, mas sim para resenhá-lo para este Rascunho. Fiquei numa sinuca de bico, o livro é ruim, difícil de ser comentado sem expor suas muitas fragilidades. Em consideração ao seu esforço e aos seus obstáculos já conhecidos, por se tratar de um presidiário, resolvi fazer uma resenha um tanto particular, de “homem pra homem”.

Não li seu primeiro livro (Memórias de um sobrevivente, 2001), mas posso garantir que não li e não gostei. Até pensei em fazê-lo, para poder realizar uma melhor avaliação de Tesão e prazer, mas o tamanho (480 páginas) me desencorajou. E, depois de ler seu segundo livro, definitivamente desisti de arriscar-me pelo primeiro. Previ a dureza de enfrentar quase 500 páginas de um texto claudicante e de alguém que tem dificuldades em ordenar suas idéias, como percebi em Tesão e prazer.

Sinto-me quase um carrasco, mas não posso deixar de aconselhá-lo a ir devagar com o andor. Soube que está com outros livros em andamento e já pensa até nos Memórias de um sobrevivente II e III. Calma, amigo. Depois de 30 anos encarcerado, não é em cinco que se recupera o tempo perdido. A sua história de vida é belíssima, a evolução por meio da dedicação aos livros e aos estudos é exemplar, mas, para chegar a escritor, o passo é mais longo.

Não se iluda com os elogios fáceis, nem com as boas vendas, fruto de uma estratégia de marketing eficiente. Quem o compara a Jean Genet não sabe o que diz. Quem o iguala a Graciliano Ramos deveria ser preso. Falsidade é o que permeia o mundo literário. Confie mais naqueles que têm a sinceridade de apontar-lhe os defeitos. Seu texto, por exemplo, tem uma estrutura infantil, as frases são quebradas por uma pontuação inadequada, as palavras são mal escolhidas e mal colocadas. Os erros gramaticais são um acinte a nossa língua.

Não o condeno pelos erros gramaticais. É natural que quem só veio a estudar depois de adulto tenha dificuldades com o português. Mas seu revisor merece uma pena severa, pois o trabalho dele é, justamente, corrigir os erros que todo escritor comete. No seu caso, os equívocos devem ter sido inúmeros, e o revisor deixou passar vários que comprometem bastante o texto. Você não sabe, por exemplo, que numa frase com o primeiro verbo no imperfeito, o verbo “haver” também deve ir para o imperfeito. Na página 66, quando você escreve que “Milena estava morta há mais de três semanas”, o “há” tem que ser trocado por “havia”. Você comete este erro dezenas de vezes pelo livro. Aliás, nesta mesma página 66, em outra frase similar, o erro é ainda mais grave, quando você escreveu “Afirmei-lhes que estivéramos juntos a menos de duas semanas”.

Perdoe-me a insistência, mas tenho que lhe informar o quanto seu revisor foi desleixado. Numa mesma frase (página 25), você escreveu minissaias e mini-calcinhas (mini só leva hífen quando seguido de uma palavra com h). Um pouco mais adiante, você tascou um “mini-saias” (p. 134). Além disso, algumas vezes você separou o sujeito do verbo, e também cometeu uma cacofonia incrível em “Masturbou-se sonhando me ter dentro de si” (p. 110). Tudo bem que o livro almeja uma conotação erótica, mas “me ter dentro de si” é sacanagem, Luiz Alberto. Será que “ter-me dentro de si” não ficaria melhor?

Novamente, levo em consideração que essas dificuldades com o português são naturais para um estudante temporão, mas será que elas também não são uma mensagem que ainda é cedo para se aventurar no mundo literário?

Não se zangue, pois sei que você entrou até para a faculdade depois de preso. Isso é muito bacana no papel, e louvável pelo seu esforço. Mas sabe qual o valor prático? Quase nenhum. A faculdade brasileira é caquética, burra e, na maioria das vezes, só serve para formar profissionais relapsos como o seu revisor. Em Tesão e prazer você até fez um capítulo chamado Faculdade em que, felizmente, relata sua decepção com alunos, professores e aulas da PUC-SP. Pois se alegre (ou se entristeça) em saber que você não foi o único enganado. Também fiz PUC (Paraná) e sei o quanto é doloroso. Eu até brincava com os colegas que na faculdade estávamos num assalto com seqüestro e tortura, pois tínhamos que pagar, ficar lá por várias horas e sermos torturados com aulas piores que um pau-de-arara.

Aliás, no capítulo Faculdade, você faz uma comparação entre o seu conhecimento e o de seus colegas, mas você superestimou-se um pouco, e isso fica evidente em todo o livro. Entendo que você leu muita coisa, mas não é de um dia para outro que se vira intelectual. É preciso ler, reler, ler novamente, e depois reler tudo. Você leu uma vez e já sai alardeando frases e conceitos prontos. Calma, não é porque você identificou-se com uma idéia de um pensador que tudo que ele diz está correto. Pelo contrário, uma leitura mais atenta servirá para mostrar que você discorda bastante, e isso é o que interessa, avaliar tudo, concordâncias e discordâncias, para então formular suas próprias opiniões. Arrotar Marx, Gramsci, etc. é fácil, difícil é perceber que eles também se equivocavam.

Digo isso porque Tesão e prazer, que deveria ser uma obra de crônicas saborosas, torna-se enfadonho quando você anseia por mostrar seu “conhecimento”, com articulações ridículas. (“O melhor do tesão e do prazer é o que se aprende a dois. Mas toda aprendizagem pede dedicação, uma cota de renúncia e alegria. Na vida tudo é vontade, tesão, amor e prazer”.) Por favor, Luiz Alberto, deixemos isso para o Paulo Coelho.

Devido a seu tempo enclausurado, percebe-se que a falta de informação atualizada o moveu a reproduzir alguns chavões antigos. Cuidado, é muito perigoso para você emitir opiniões sobre o mundo de fora. Quando você diz que “desses servidores públicos que a ditadura prolongada dos militares fez julgarem-se semideuses nas funções que exerciam”, há uma falta de sintonia com a realidade de nosso país, o que, aliás, acontece com muitas pessoas aqui fora também. Há pouco se falou muito nos 40 anos do golpe militar, mas muitos não se dão conta de que já são quase 20 anos sem os militares no poder. O Brasil só piorou nos últimos 20 anos. Temos liberdade, claro, posso dizer aqui, sem o risco de ser preso, que só venceríamos uma guerra contra o Paraguai, que compra equipamento bélico descartado dos quartéis brasileiros, onde se passa o dia treinando ordem-unida para desfilar em 7 de Setembro e engraxando o equipamento obsoleto para enganar os paraguaios. Grande bosta, de que nos serve a liberdade com um salário mínimo de 260 reais? Adianta não haver mais crimes do porão, se no Morro do Índio, no Jardim Ângela, a média de homicídios é de 15 por mês? Não se iluda com o fim da ditadura, pois ela não acabou. Os servidores públicos continuam julgando-se semideuses. E sem os militares, não respeitam nem a hierarquia natural. Qualquer funcionariozinho de governo se acha o tal, e com o direito de tratar mal o público que lhe paga o salário para ser bem atendido por ele. Por falar nisso, você deveria mesmo é ter dado uma porrada na cara daquele guarda que rasgou seu documento, pois tem coisas que só assim se resolvem. Luiz Alberto, não deixe que os livros amoleçam seus brios.

Bem amigo, te detonei bonito até aqui, mas depois alivio um pouco. Na resenha de livro ruim tem que ser assim mesmo, não se pode ter escrúpulos, bate-se bastante e acaricia-se no final. Tem mais um porém em Tesão e prazer: suas aventuras sexuais não impressionam ninguém. Você está um pouco defasado, parou no tempo em que não havia visita íntima. Pasme em saber que já está sendo discutida a autorização legal para que até menores infratores possam receber suas meninas. Além disso, cá pra nós, a beleza de suas mulheres é meio forçada. Porra, Luiz, você só faturou mulher bonita e gostosa. Ou você é um grande mentiroso, ou seu conceito de beleza (você já ouviu falar em Daniela Cicarelli?) é duvidoso. E, pela foto que vi na orelha do livro, sua fachada está mais para filhotinho de cruz-credo que para de galã de novela.

Amigão, tirando o título surrado, o erotismo banal, o texto e o português ruins e o pedantismo intelectual, você perdeu oportunidade de publicar um livro razoável (desde que bem revisado). Crônicas da cadeia podem sempre ser interessantes. É um mundo intrigante (que às vezes funciona melhor até do que aqui fora). Você deve ter lido Estação Carandiru (Companhia das Letras, 2001), que tem muito do que Tesão e prazer poderia trazer (e ainda com um diferencial em seu livro, que seria a visão do preso). O Drauzio Varella conseguiu traduzir mais fielmente a rotina dos presidiários, mesmo não sendo um de vocês (ele também escreve muito melhor e teve um bom revisor).

Apesar de todas as críticas, não há como negar que você é o grande exemplo de que é possível evoluir mesmo atrás das grades. A sua opção pelos livros foi acertada, ainda que a evolução seja mais lenta do que você imagina. Mas você é um preso diferenciado. Algumas boas idéias já freqüentam sua cabeça, como no trecho:

“Se morávamos ali, naquele espaço, então era nossa obrigação melhorá-lo. Cada companheiro que retirássemos da ignorância e da alienação, estaríamos ajudando a transformar nosso meio existencial.”

Em alguns capítulos, como Estupro, Franchone e Sanatório penal, você também conseguiu trazer para fora algumas situações enredadoras e trágicas (estupradores, homossexuais e aidéticos na cadeia, respectivamente), que nos fazem ver que o mundo prisional precisa ser rediscutido, que é também nossa obrigação melhorá-lo.

Nesses capítulos, você também deixou uma fresta para observarmos que há um cronista em formação. Que, se não houver precipitação em publicar, se houver mais paciência para estudar e burilar o texto, se houver mais tempo para amadurecer as idéias, você poderá surpreender. Quem sabe um dia eu possa ler um livro seu por tesão e prazer, e não por obrigação e compaixão.

Tesão e prazer
Luiz Alberto Mendes
Geração Editorial
211 páginas
Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho