Conversava com meu amigo Mojo Pellizzari: no inverninho fiadamãe que tem feito em SP, não pode haver melhor companhia que um bom russo. Dostoievski vai, Tchekhov vem, comento que estou lendo o tal Aguéiev. Não é que ele me diz que o livro fazia a cabeça dos colaboradores do finado e-zine Cardosonline, no fim dos anos 90? Esses gaúchos enfiam mesmo o nariz em tudo. Deve ser por isso que escrevem tão bem — apesar de teimarem no contrário os detratores de sempre.
Não conhecia a publicação anterior da novela (Círculo do Livro), agora apresentada pela Musa (numa edição polvilhada de gralhas tipográficas e falhas de revisão, diga-se). Fui em busca do tempo perdido recobrar a trilha acidentada de Romance com cocaína, de M. Aguéiev, publicado em 1934. Por trás do título intrigante, mais enigma. O autor escreveu só este livro, e, depois de ter sua autenticidade posta em xeque (chegaram a pensar que o autor fosse Nabokov), descobriu-se: a autoria da novela era de um moscovita chamado Mark Levi, que, exilado da Rússia, passou pela Alemanha, Turquia, talvez pela França, quase pelo Paraguai — até retornar à ex-URSS, onde trabalhou até o fim da solitária vida como professor de alemão, tendo como hobbies carteado, super-8 e charutos. Seu bordão era: “tudo na vida deve ser experimentado”. Pelo menos no karatê, o cara foi fundo.
Genealogia do mal
O relato sob e sobre estados alterados — em que o autor é ao mesmo tempo cobaia, laboratório e médico de si mesmo — praticamente constitui um subgênero literário, ou subsubgênero da literatura de confissão. Classe literária rara no Brasil — o exemplar mais bem realizado talvez ainda seja Uma experiência com LSD, crônica de Paulo Mendes Campos (em Cisne de feltro, Civilização Brasileira, 2001). Na literatura gringa, vale ver o recente Confissões de um comedor de ecstasy de meia-idade, de um tal Anônimo. Voltando no tempo, contemporâneas à novela de Aguéiev são as Memórias de um ex-morfinómano (Dantes, 1999), clássico do jornalismo gonzo português escrito no estilo romântico de Reinaldo Ferreira, periodista mais famoso de Portugal nos anos 30, e Haxixe (Brasiliense, 1984), as famosas anotações de Walter Benjamin. Anteriores, do século 19, são o poema Kublai Khan, de Samuel T. Coleridge, e Confissões de um comedor de ópio (L&PM, 2001), de seu discípulo, Thomas de Quincey, em que são lançadas as bases do gênero: aliar fidelidade factual (impossível a todo adicto, sabe-se…) à aspiração por recriar a experiência em chave metafísica.
Contemporâneo de Quincey, Charles Baudelaire escreveria sobre o vinho, o ópio e o haxixe nos Paraísos artificiais (Newton, 1999), e seguiriam- no o Opium de Jean Cocteau, o Opiário de Alvaro de Campos/Fernando Pessoa. Neste século, anos 50, temos As portas da percepção/ O céu e o inferno, com as experiências de Aldous Huxley com a mescalina, e Junky, do PhD em narcóticos William S. Burroughs. Nos anos 60/70, o tema encontra plenitude nos poemas de Allen Ginsberg, como Uivo, escrito sob influência de várias substâncias psicodélicas, e na bíblia dos estupefacientes e adictos do jornalismo gonzo, Las Vegas na cabeça, de Hunter S. Thompson (Brasiliense, 1984).
Sobre o ratatá, Burroughs assim escreveu, no Almoço nu (vergonhosamente fora das nossas estantes há anos): “Um impulso de puro prazer cruza o cérebro acendendo as conexões da cocaína. Sua cabeça estalando em brancas explosões. […] É um desejo exclusivamente do cérebro, uma necessidade sem sentimento e sem corpo, necessidade fantasma”. A novidade em Aguéiev é a análise deste exaltado estado mental sob os anos pré-Revolução Russa — bem antes das egocêntricas discotecas dos 70 e dos blazers yuppies lotados de papelotes, nos 80.
Pergunte ao pó
Escrita com humor sardônico e voluptuosa imagética, Romance… é a narrativa de um jovem hedonista na Moscou de 1916 a 1919. Enquanto o país mergulha na primeira guerra, Vadim Máslennikov prefere cair em prostitutas. Quando os bolcheviques marcham pelo país, Vadim opta por cheirar até esquecer. Seguimos sua espiral descendente na cocainomania enquanto ele confronta a oposição entre o desejo por criticar injustiças sociais e o insaciável desejo de fruir o prazer físico. Mas assim como os privilégios burgueses, a revolução não diz nada a Vadim, que é severo consigo: “sensualidade e o espiritualidade eram completamente separadas em mim”.
O livro tem um saudável desequilíbrio em suas quatro partes. A primeira sugere “romance de formação”, em que Aguéiev retrata a psicologia dos estudantes com densidade dostoievskiana (Merejkóvski, crítico russo do período, chama-o de Dostoievski dos anos 30). Vadim é um brilhante garoto de 17 anos que não dá a mínima para os estudos. Sua vida caseira é miserável: o pai morreu há um ano e a mãe, pobre costureira, é sistematicamente maltratada pelo filho. Numa dolorosa seqüência, quando ela surge na escola vestida com um agasalho remendado, para pagar a semestralidade do filhote, é ridicularizada pelos estudantes — e Vadim finge não a conhecer.
A consciência política do livro é ditada por Burkévitz, colega de classe idolatrado por Vadim. Em discursos brilhantes, Burkévitz desponta como herói das classes trabalhadoras — e, quase ao fim da novela, terá surpreendente reaparição como um dos líderes do Outubro, enquanto o funga-funga virou farrapo humano. Já na segunda parte, Vadim larga um pouco as putas e apaixona-se pela madura Sônia. Porém, confrontado com o velho dilema machista do século 19 — como aquele ser tão estelar poderia entregar-se a seus arroubos sensuais? —, Vadim emperra o romance.
Cossaco cheio de farinha
Na terceira parte, iluminada pelas passagens detalhando a furtiva obtenção da droga e os rituais elaborados que a cercam, em que o romance conhece ao mesmo tempo uma aceleração (na descrição do uso) e um aprofundamento (no abismo da fissura), é que se percebe estar diante de uma obra extraordinária. Um dos aspectos mais insólitos é justamente o contraste marcante entre a propriedade da droga — a cocaína é um dos mais fortes estimulantes que existem — e o gélido, porém lúcido, mergulho na depressão. São especialmente verossímeis as intensas descrições das alucinações causadas pela superdosagem (Vadim chega a tecar três gramas por vez) e pela síndrome de abstinência, bem como doença que solapa o protagonista quando os efeitos da farinha já não o satisfazem:
“Certa vez (isso aconteceu a altas horas da noite, quando todos estavam dormindo e eu estava guardando a porta com a orelha na fresta), soou um forte estrondo no corredor e, simultaneamente, ouviu-se na escuridão do meu quarto um bramido prolongado. Somente passados alguns instantes, entendi que quem estava uivando era eu mesmo, tapando a boca com minha própria mão”.
Nos Pensamentos, seção final, Vadim sugere uma curiosa tese: a compulsão dos viciados está carregada do mesmo desejo que compele um comunista ou um capitalista, um homem de negócios ou um humanitário, em analogia com a gangorra euforia/depressão proposta pela cocaína. Para além do bem e do mal, Vadim conclui: “o mecanismo da alma humana é o do balanço, quando depois de um fortíssimo vôo para o lado da Nobreza do Espírito ocorre um fortíssimo recuo para o lado da Fúria do Animal”.