Carona para não filósofos

Apesar de trazer conceitos difíceis, romance de Juliano Garcia Pessanha serve para quem busca uma boa história carregada de impasses modernos
Juliano Garcia Pessanha, autor de “O filósofo no porta-luvas”
01/04/2022

O filósofo no porta-luvas contém mesmo altas doses de filosofia. Será que por ser um romance isso devesse merecer uma tarja vermelha na capa? Essa leitura exige a travessia de um pedregoso chão de conceitos e abstrações, que se ligam à trama, à história, à narrativa, de forma indissociável. A boa notícia aos não habituados à filosofia, seus jargões conceituais, é que vale a caminhada, ainda que sem essa caixa específica de ferramentas.

Minha leitura, por exemplo, crua de entendimento real de filosofia, foi muito afetada pela identificação com o personagem principal, Frederico, esse Cândido contemporâneo. A apresentação da editora sugere que o texto é um ensaio em meio à ficção. Discordo. É literatura, onde sob boa escrita e boa edição cabe de tudo. É um romance, onde o personagem atravessa uma transformação ao longo do tempo, este nosso tempo (ele é professor e trabalha de Uber!). Mas tem isso: contém altas doses de filosofia.

Um certo resumo da jornada de Frederico o próprio autor fornece, na página 37:

Chegou a fazer folders divulgando seus grupos e passou a anunciá-los na internet. Em vez de alunos, chegaram as goteiras e os curtos-circuitos. A casa desmanchava. Precisava de uns cinquenta mil para mantê-la (…) Era preciso agir. Era preciso fazer. Ler-se pelo mundo e colorir-se com suas cores.

Frederico sentia-se deslocado no mundo, aí encontrou um guru. Foi aconselhado a libertar-se dos julgamentos externos, das pressões do mundão capitalista, viver para os outros e confiar que o mundo lhe daria abrigo e comida, o suficiente. Dependia da mãe e comeu o pão que o diabo amassou. E então despertou, para se distanciar dos pensamentos do guru; se arrependeu, para tentar se recuperar. Mas o tempo passa, torcida brasileira… o tempo passa (ai, chavões, ainda me abrem grandes portas).

Essa história poderia ter sido contada de diversas formas: um longo poema épico, uma narrativa intimista em primeira pessoa, mas o autor fez a escolha de ser um tipo especial de narrador onisciente em terceira pessoa que é também personagem.

Tem um momento pelo menos em que a pulga se posiciona atrás da orelha do leitor, como na página 46:

O problema foi o guru ter garantido uma vida digna no mundo para quem estava fora dele. Se um dia alguém disser que você nasceu vocacionado ou é especial, preste atenção: de nada vale uma vocação se não há para ela um exercício correspondente. Foi aí que a porca torceu o rabo para mim. O mundo cobrou caro. Deu o bote de uma fera na selva.

Para mim? Ué, quem é esse narrador? Será um erro? Não, não é. O parágrafo a seguir contém spoiler, que pode ser um problema, a não ser que você entenda que literatura é mais como, não o quê.

Juliano Pessanha, o autor do livro, aparece na história como escritor, autor do livro que adapta para um romance a vida relatada por Frederico. Esse encontro entre Frederico e Pessanha deixa registrado que há, na história, uma forte identificação entre eles, entre suas experiências e impressões da vida.

Peço licença para fugir do termo autoficção. Não que o considere falho, insuficiente, não apenas isso, mas porque no fundo toda ficção brota da vivência do autor, então o grau de elementos biográficos provavelmente é o que determina a fronteira. Como não sou geógrafo literário, especialistas darão conta disso. O que importa é que esse encontro se soma a outros que tornam a narrativa muito viva e surpreendente, apesar dos muitos trechos mais difíceis de atravessar para um leitor desacostumado à filosofia.

Conceitos na trama
Manja de Heidegger? E de Peter Sloterdijk? Emmanuel Lévinas? Wilhelm Dilthey? Se não manja, vai perder, como eu perdi, uma boa parte dessa criação do Juliano Pessanha. Não são perdas irreparáveis, nem uma condição para a leitura. Mas se essa resenha prestar para algo é para aconselhar que o não entendimento de alguns termos, alguns conceitos — e são vários ao longo do livro, principalmente na parte inicial —, não devem fazer o leitor desistir da empreitada.

A filosofia é central neste livro, não está apenas no porta-luvas do título. O Frederico desenvolve sua tragédia a partir de princípios de pensamento, de certos entendimentos de mundo, que vêm de filósofos importantes. Ele vive de acordo com o pensamento de Heiddegger, apropria-se de Lévinas, depois se aproxima de Sloterdijk e estuda amorosamente Dilthey. As obras desses pensadores provavelmente emprestam significação à trama, mas eu, burrinho, comum, não tenho profundidade em nenhuma delas (e olha que já tentei chegar perto de Lévinas e juntar uns pedaços de Dilthey). Outra resenha poderá ser escrita por um filósofo, ou melhor, por um professor de filosofia, para dar a um ser inferior como eu a chave desse entendimento a mais, que seria muito bem-vindo, não há dúvida.

“A tese sobre a queda no mundo e a saída do esquecimento pela recuperação da nadidade em Martin Heidegger já se encontrava escrita no próprio corpo do jovem”, escreveu Pessanha, que é doutor em filosofia. “Ele se sentia, disse, uma espécie de descabelado de bordéis escuros de Petersburgo, um frequentador das regiões em que a palavra estala sem freio em rascunho de sangue, mas agora estava convencido de que o grande vazio da palavra atravessada pelo real não passava de um meta-narcisismo transcendental”. Essa parte se refere ao Pessanha-personagem. Você consegue entender além do descabelado? Parabéns!

São dois exemplos de escolhas do autor, que tendem a criar mais afastamento do leitor não conhecedor de filosofia e de seus conceitos. Mas que, afinal, não invalidam a leitura, porque o texto não é o tempo todo assim. No fim, a gente percebe os caminhos que Frederico tomou e suas consequências. E que, no momento em que percebeu que não eram bons para ele, quis outro rumo, mas sentia que era tarde. Quantos de nós não carrega em maior ou menor medida essa impressão da própria vida?

O que, aposto, um livro como este traga de muito valor é essa semeadura da filosofia, a vontade de entender mais de filosofia — juro que tento, mas é árduo mesmo, me disseram até professores experientes em textos difíceis.

O filósofo no porta-luvas trata muito dessa ideia de que fugir do mundo, alhear-se das convenções sociais, é um caminho que geralmente dá em muro. Há outro personagem, Kazuo, que primeiro atende ao chamado de acumular bens e às necessidades familiares para só depois recolher-se numa busca interna, estruturado economicamente, protegido, e Frederico admira isso, descobre que desejava isso para si.

O que será que está propondo o autor? Que a filosofia atrapalha? Ou, pelo contrário, que termos clareza dos princípios e entendermos as possibilidades é que nos ajuda verdadeiramente? O oposto seria o adaptar-se ao momento, agir segundo o que o mundo requer, sem estarmos atados a muitos princípios de ação? Isso é bom ou ruim? O livro plantou perguntas em mim, quais plantará em você? Restou dúvida sobre o que achei? Que o livro é ótimo, mesmo para um não filósofo.

O filósofo no porta-luvas
Juliano Garcia Pessanha
Todavia
96 págs.
Juliano Garcia Pessanha
É doutor em Filosofia e professor de escrita no Instituto Vera Cruz. Publicou Recusa do não-lugar (2018) e a tetralogia Testemunho transiente, editada anteriormente pela Cosac Naify e relançada pela Sesi-SP em 2018.
André Argolo

É jornalista e pós-graduado em Formação de Escritores pelo ISE Vera Cruz (São Paulo). Autor do livro de poemas Vento sudoeste.

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