A sinopse no site da Biruta diz: “Através dos olhos de uma menina, o leitor acompanha a trajetória de sua família que, em meio à Revolução Russa de 1917, viu-se obrigada a deixar para trás tudo o que conhecia e a empreender uma audaciosa e perigosa fuga rumo a um destino totalmente desconhecido. Com novas vidas e identidades, vê-se despertada pelas inúmeras perguntas que permanecem sem resposta. Mas, essa é a chave da morada. Não ter as respostas lhe permite seguir em frente e abrir todas as portas”. Entretanto, Morada das lembranças traz uma narrativa moralista e religiosa do que seria um sofrimento enorme, mas que não convence. Há uma total ruptura entre questionamentos infantis e a linguagem utilizada. Fica claro desde o início que o livro é proposto como um relato de uma senhora de idade que, ao lembrar de seu passado difícil, o narra na voz da menina. Esta diferença de idade entre a voz narradora e o que se lê de fato é justificada, então, por esta visita a um outro tempo. Justifica, não a torna boa.
Há um discurso de alma, de sofrimento por obrigação, de penar, que faz com que o livro caia em uma caricatura da mulher judia. Como toda caricatura, imagino ter um fundo de verdade qualquer, mas ainda assim é uma caricatura, que, por natureza, explora traços marcantes mas não necessariamente relevantes. Explora os mesmos preconceitos que diz combater. O livro é tão caricato e falha tanto em criar um vínculo afetivo com o leitor, que a decisão da editora em resolver o design só no projeto gráfico foi acertadíssima. Qualquer ilustração ali reforçaria ainda mais este problema, pois iria engolir o texto. O projeto gráfico, aliás, é ótimo e dá conta inclusive de um movimento necessário que falta à narrativa.
A história tinha tudo para ser incrível. Uma menina foge da Rússia, junto com sua mãe e um irmão bebê, após o assassinato do pai, durante a Revolução de 1917. Primeiro chegam à Polônia e, de lá, para o Rio de Janeiro. Só os contrastes dos lugares já seriam suficientes, mas não são explorados. A questão da língua é mencionada en passant mas o quanto a narradora vai bem na escola é reforçado várias vezes. Ou seja, a narradora, ela, sofrida, injustiçada, explorada, ainda assim não tem problemas na escola, tão fantástica, ela. As outras mulheres nas mesmas condições se prostituem, ela não. As outras mulheres polacas corrompem o seu corpo e perdem o direito de serem enterradas em cemitérios judeus, ela não.
O livro ganhou um prêmio importantíssimo, o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional 2014 na categoria Literatura juvenil, ou seja, livros para jovens leitores a partir de 14 anos. Fico me perguntando se eu, que tenho parte de família judia fugida da guerra, que escutei histórias parecidas — inclusive no teor de rancor —, não consegui criar nenhum vínculo afetivo com nenhuma das personagens, que adolescente de 14 anos o fará. Ao contrário do último livro de Marina Colasanti, o valor de Morada das lembranças é atribuído pelo prêmio, não pela qualidade literária.
Morada das lembranças esbarra perigosamente em uma autoajuda, em um tom de meritocracia, como quem diz que se a senhora-menina conseguiu manter-se “digna” e vencer, casar, criar filhos, estudar, trabalhar etc., mesmo com todas estas dificuldades, qualquer mulher consegue. Além do fato de que a perfeição não cria empatia com ninguém, acho especialmente perigoso quando este tipo de discurso está em um livro juvenil.
O livro todo é permeado por comentários fatalistas, religiosos, moralistas. Exemplos: A vida é o que tem de ser, difícil é acreditar nisso (p. 58). Esses anos sem fé foram os anos mais difíceis de minha vida (p. 158). Ser homem é completamente diferente de ser mulher. Sei que essa é uma questão óbvia, mas, de tão óbvia, inexplicável (p. 175).
Parece haver um esforço da autora em aplicar seus conhecimentos psicológicos na narrativa, sob a forma de demonstração da fantasia infantil da independência. O problema é que isso funciona no consultório, não aqui. O delírio infantil é mantido na voz de uma senhora: “Resolvi que, daquele dia em diante, não levaria mais meus problemas a nenhum adulto, eu os resolveria sozinha, à minha maneira (p. 69)”. Crianças precisam disso para se tornarem independentes, se tornarem adultos saudáveis. A maioria dos adultos que acreditam que foram, de fato, plenamente independentes quando crianças, é, no mínimo, delirante. Guerra ou não guerra. Este é um dos problemas de se colocar a narrativa na voz de uma senhora quando a história pertence a uma menina.
Não sei se a origem de Morada das lembranças é essa, mas consigo imaginar uma senhora, talvez a avó da autora, contando essas histórias. Consigo até me identificar com a necessidade de colocá-las no papel, que não se percam. Estas histórias são importantes. Não devem ser esquecidas. Este esforço precisa ser feito. Há, entretanto, um hiato entre a emoção de quem as recebe, de quem as escuta da boca de entes queridos, e a possibilidade de torná-las interessantes como literatura.
Tive uma professora na Belas Artes que me dizia que o fruidor não sabe e nem deve saber se a obra foi ou não difícil de fazer, que seu percurso não importa. Ele deve se emocionar com o que tem à frente. A obra pronta, finalizada, é toda a informação que o fruidor tem. O mesmo vale para a literatura. Só podemos analisar um livro pelo livro, pela literatura, pela emoção que nos causa. Morada das lembranças não emociona.