Você nunca ouviu falar de David Foster Wallace. É que, por algum motivo que alguém, um dia, ainda vai explicar, a atual literatura americana — ao menos a fração traduzida ao português — não faz muito sucesso no Brasil. Thomas Pynchon (O arco-íris da gravidade) e Michael Chabon (As incríveis aventuras de Kavalier & Clay) são exemplos disso. Jonathan Safran Foer (inédito), Augusten Burroughs (idem) e William T. Vollmann (ibidem) também. Existem, é claro, um Paul Auster aqui e um Philip Roth ali. Mas são exceções que desmoralizam o resto. Ainda mal.
Você nunca ouviu falar de David Foster Wallace e a Companhia das Letras acaba de lançar Breves entrevistas com homens hediondos, primeira e única obra do autor no país. Começar a ler Wallace por esse livro é como chegar a uma festa em que todo mundo já comeu, bebeu e cantou parabéns. Pode-se encontrar um ou outro docinho miúdo, mas os campeões de audiência — aqueles de morango e de uva — já acabaram faz tempo. De qualquer forma, é melhor chegar atrasado do que não chegar nunca.
Olhe para a foto de Wallace que ilustra a orelha do livro — a mesma que aparece nesta página — e a primeira impressão pode não ser das melhores. Ele tem cara de mecânico e deve estar um pouco acima do peso. O cabelo comprido e a camisa desabotoada na região do colo não ajudam em nada. Ele não usa óculos (não na foto) e é mais jovem (43 anos) do que se espera que um escritor seja. Parece um mecânico no sentido que seu rosto lembra o de um homem comum, do tipo que passaria despercebido em uma fila de banco. Essa é uma primeira impressão possível.
Aí você lê isso:
“Quando foram apresentados, ele fez uma piada, esperando ser apreciado. Ela riu extremamente forte, esperando ser apreciada. Depois, cada um voltou para casa sozinho em seu carro, olhando direto para frente, com a mesma contração no rosto.
“O homem que apresentou os dois não gostava muito de nenhum deles, embora agisse como se gostasse, ansioso como estava para conservar boas relações a todo momento. Nunca se sabe, afinal, não é mesmo não é mesmo não é mesmo.”
Sob o título Uma história radicalmente condensada da vida pós-industrial, o conto de menos de 500 caracteres que abre o livro mostra que, mecânico, Wallace não é. Começa, aos poucos, o percurso que pode levar o leitor brasileiro a respeitar ou não boa parte da crítica especializada dos EUA, que entende sua prosa como a mais influente de sua geração. Essa condição surgiu em 1996, quando chegou às livrarias ianques Infinite jest, livro famoso por seu tamanho e por seu peso — 1.088 páginas, 23cm x 16cm x 5cm e 1,3kg —, mas não só por eles. Wallace disseca o fascínio da América pelo entretenimento e, resumindo grosseiramente, diz que a cultura de seu país se limita à preocupação de divertir as pessoas até o dia de suas mortes. Na história, personagens bizarros — inclusive terroristas canadenses em cadeiras de rodas — estão à procura de um filme capaz de divertir, literalmente, até a morte (daí o título ser Piada infinita). O tal filme é tão divertido que seus espectadores não querem fazer outra coisa, a não ser assistir a ele. Ecos do grupo humorístico inglês Monty Python. O esquete clássico Piada mortal mostra um sujeito comum que consegue escrever uma piada tão boa que qualquer pessoa exposta a ela, morre de tanto rir. Depois a anedota é traduzida ao alemão para ser usada como arma secreta contra os nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.
O consenso diz que faltou a Wallace um bom editor, capaz de tesourar pelo menos um terço do calhamaço que é sua obra máxima. É consenso também que, mesmo alternando momentos não tão bons com outros arrebatadores, ele mostrou ser capaz de escrever sobre o que quiser da maneira que quiser. Um exímio escritor de personagens com talento para todo tipo de prosa, incluindo a pós-moderna e a pós-pós-moderna (seja lá o que forem uma e outra). Ele pode ser, a um só tempo, engenhoso na forma — característica comum aos escritores “pós” isso e aquilo — e tradicional nas sensações que espera suscitar no leitor. Quer pegá-lo pelo intelecto e pelas entranhas.
Dos 23 contos que compõem Breves entrevistas…, um é genial e dois são muito bons. Os bons: o da abertura, reproduzido na íntegra há três parágrafos, e Igreja não feita com mãos, sobre um pai que tenta assimilar as conseqüências de um acidente absurdo sofrido pela filha em uma piscina. O genial: Para sempre em cima, mostra um garoto no dia em que completa 13 anos, reunindo coragem para saltar pela primeira vez do trampolim mais alto da piscina pública de Tucson, cidade onde mora. “Feliz aniversário. É um grande dia, grande como o teto de todo o céu do sudoeste. Você pensou bem. Lá está o trampolim alto. Eles vão querer ir embora cedo. Você sobe e faz o que tem de fazer.”
Em apenas 14 páginas, enquanto o garoto está na fila do trampolim, aguardando sua vez e vendo os tipos que saltam lá de cima, Wallace consegue criar uma atmosfera de suspense como se um assassinato estivesse prestes a acontecer. “Os degraus são muito estreitos. Isso é inesperado. Finos degraus de ferro redondo cobertos de escorregadio feltro Safe-T molhado. Você sente gosto de metal no cheiro de ferro molhado à sombra. Cada degrau afunda nas solas de seus pés e as marca. As marcas parecem fundas e doem. Você se sente pesado. Como a mulher grande acima de você deve se sentir. (…) A prancha ainda lá no alto, invisível daqui. Mas ela estremece e faz um som pesado de bate-e-volta e um menino que você só vê durante uns poucos centímetros contidos entre os finos degraus cai num flash de linha, um joelho dobrado no peito, fazendo um splash. Um grande ponto de exclamação de espuma entra em seu campo de visão, depois se espalha e cai num grande borbulhar. Então o som silencioso do tanque cicatrizando em novo azul outra vez.” Dá quase para sentir o cheiro do cloro e ver o garoto tenso graças a sua ousadia.
O conto que dá título ao livro não é um, mas quatro. Todos com o mesmo nome, Breves entrevistas com homens hediondos, feitos de respostas a perguntas que não se sabe quais são — elas aparecem indicadas apenas com um “P.” — e parecidos com um exercício verborrágico para personagens que não foram desenvolvidos por inteiro. O que não é um defeito e, sim, pós-moderno (seja lá o que isso quer dizer). O resultado é lúdico e lembra os livros que testam a capacidade de raciocínio do leitor, oferecendo as respostas para que ele deduza as perguntas. Qual é a pergunta para uma resposta que fala “Em criança, eu assistia muita televisão americana. Aonde quer que meu pai fosse enviado, parece que a televisão americana estava sempre disponível, com suas gloriosas e poderosas estrelas femininas. (…) O programa de televisão que eu mais gostava de assistir era A Feiticeira, com a atriz americana Elizabeth Montgomery. Foi em criança, enquanto assistia a esse programa de televisão, que experimentei as minhas primeiras sensações eróticas. Só muitos anos depois, já avançada a minha adolescência, é que fui capaz, no entanto, de ligar minhas sensações e fantasias a esses episódios de A Feiticeira no passado e minha experiência de espectador quando a protagonista, Elizabeth Montgomery, fazia um movimento circular com a mão, acompanhado do som de uma cítara ou harpa, e produzia um efeito sobrenatural em que todo movimento cessava e todos os outros personagens do programa de televisão de repente congelavam no meio do gesto e ficavam ausentes e rígidos, sem nenhuma animação”.
O trecho fala da mídia americana (televisão) e de sexo (fantasias eróticas), dois dos (inúmeros) temas que aparecem freqüentemente na prosa de Wallace. Existe uma entrevista muito boa e longa que ele cedeu para o Center for Book Culture (www.centerforbookculture.org), organização sem fins lucrativos disposta a discutir e divulgar literaturas pouco comentadas que, quase sempre, se situam no espaço entre a produção comercial e a marginal, mas não se identificam com nenhuma delas (aparecem na lista de entrevistados o brasileiro Osman Lins, o mexicano Carlos Fuentes e o argentino Julio Cortázar). Nessa entrevista, Wallace fala sobre qual seria o perfil do seu público: “Eu suponho que sejam pessoas mais ou menos como eu, talvez nos seus 20 ou 30 anos, com experiência suficiente ou boa educação para ter percebido que o trabalho duro que as ficções sérias exigem de um leitor, às vezes, recompensa. Pessoas que cresceram com a cultura comercial americana, estão envolvidas com ela, são informadas por ela e fascinadas por ela, mas continuam famintos por algo que a arte comercial não consegue dar”. É raro ver um escritor dar uma resposta objetiva desse jeito sobre as pessoas que o lêem. Mais raro ainda é ver um escritor se dar ao trabalho de pensar nas pessoas que o lêem. David Foster Wallace é autoconsciente como só seus personagens conseguem ser.
É mais fácil um brasileiro levar o Prêmio Nobel de Literatura do que Infinite jest ser lançado no país. O negócio é esperar por um trecho do tijolo de Wallace, traduzido por Caetano Waldrigues Galindo, autor de uma versão obscura ao português de Ulisses, de James Joyce, e professor da Universidade Federal do Paraná, a ser publicado no número 13 da revista literária Coyote, prevista para setembro.
Breves entrevistas com homens hediondos foi lançado nos EUA em 1999, sucedendo Infinite jest. Além desses, fazem parte de sua bibliografia outros dois livros de contos (Oblivion e Girl with curious hair), um romance (The broom of system), duas antologias de ensaios (A supposedly fun thing I’ll never do again e Consider the lobster and other essays), um livro sobre o infinito (Tudo e mais um pouco, a ser publicado pela Companhia das Letras em dezembro), um e-book (Up, Simba!, ensaio político sobre o senador John McCain, pré-candidato republicano a presidência dos EUA, derrotado por George W. Bush nas eleições primárias do partido), mais vários artigos e ensaios publicados em diversos jornais e revistas.
Surpreendentemente, Wallace nunca fez coisa alguma para a tevê nem para o cinema.