Cápsulas ficcionais

No mês em que Lygia Fagundes Telles completaria 99 anos, análises mostram a complexidade de seus contos, nos quais certas camadas só se revelam a olhares atentos
Ilustração: Lygia Fagundes Telles por Fabio Miraglia
01/04/2022

O conto total
Há alguns anos, relendo Anão de jardim, de Lygia Fagundes Telles, comecei a pensar que ele não era apenas o texto final de A noite escura e mais eu, último livro de contos da autora[1], mas um fecho de sua contística, numa espécie de recenseamento. Em sua primeira edição, a obra trazia na capa uma imagem de Ismael Nery, uma Eva segurando uma maçã. Algo bastante pertinente num livro com personagens em queda e cujo desfecho passa-se num jardim que pode ser visto como uma representação microcósmica do universo ficcional lygiano; e seu protagonista, como uma condensação de suas personagens e de seus dramas.

Ela fez algo semelhante também no âmbito do romance, quando publicou As horas nuas (1989), em que diversas vezes há a presença do autotexto, da autorreferência, geralmente por meio da paródia, com citações a obras e personagens anteriores[2]. Um grande exemplo disso é o fato de talvez estar num conto da década de 1960 a solução para um grande mistério do romance: o desaparecimento de uma de suas personagens.

Citei seu “conto total”[3], uma peça que encapsularia sua obra; mas o encapsulamento também acontece num nível mais reduzido, compositivo, por conta de certos tipos de imagem presentes nos textos de Lygia, por meio das quais, muito economicamente, um drama pode ser descortinado, e os textos, vistos como alegorias: um grupo de imagens significativas que, se lidas em conjunto, dão-nos uma outra narrativa sob a primeira narrativa — objetos, gestos, espaços alçados à categoria de elementos conarradores. Segundo José Paulo Paes, “objetos [convertidos] em suportes de significados latentes. Não se trata de símbolos entremeados à fábula, mas de elementos intrínsecos dela que se investem de valor simbólico. A naturalidade dessa investidura é que dá a medida do refinamento da arte da Lygia Fagundes Telles”[4].

Sobre tais objetos, e outros elementos com essa latência significativa, Walnice Nogueira Galvão disse ser “um dos grandes achados de Lygia”: “A imagem pregnante, que estrutura internamente seus contos. Essa imagem é um concentrado ou condensado de sentido, uma síntese extremada de tudo o que o conto insinua. De tal modo que, quando aparece, traz consigo um senso de revelação, iluminando em rastilho toda a narrativa”[5].

Nos textos de Lygia, possivelmente recorre-se a esse expediente para que não fiquemos sem terreno em que nos apoiar, pois suas personagens, no mais das vezes, escamoteiam suas interioridades, tentam esconder-se de si e do outro, escondendo-se também de nós leitores. Assim, esses elementos tentariam nos dizer o que elas teimam em esconder, como se considerando a afirmação bíblica de que, “se eles [ou elas] se calassem, as pedras clamariam”.

Mas se alguns elementos carregam em si essa pregnância, causando-nos forte impressão, pode acontecer de uma significação estar diluída, estendida numa cadeia de eventos, passando despercebida, por não ter a carga simbólica, o peso, o halo que algo isolado carregaria. Digo isso pensando nos inícios de determinadas narrativas, pequenas cápsulas cujos eventos nos permitem antever o cerne ou o desfecho do texto. Como demonstração, tratemos de dois contos: A medalha, publicado em O jardim selvagem (1965), e O menino, em O cacto vermelho (1949).

Antes, fica um alerta de spoiler. Se ainda não leu os contos ou algum deles, pegue A estrutura da bolha de sabão, para ler A medalha, e Antes do baile verde, para ler O menino — ou Os contos, edição que traz toda a contística lygiana. Pegue-os, porque a experiência de ler um conto de Lygia Fagundes Telles, de deixar-se enredar por suas teias, é algo grandioso. Leia-os. Este texto continuará aqui, sem pressa, no aguardo.

***

Nas diversas culturas, muitas coisas adquirem valor simbólico. Há símbolos que nos parecem universais e aqueles que, na produção de um determinado artista, têm significados particulares e existem apenas nesse mundo artístico próprio. No caso de Lygia Fagundes Telles, há um mundo ficcional com suas especificidades, recorrência de espaços, ações, nomes, objetos… Um conto seu faz parte de um mundo mitopoético próprio, eivado de elementos que são pistas ou acenos para a segunda história, a que respira sob a história evidente, esperando apenas que a vejamos — como “a pessoa escondida”, a que alude a autora nesta precisa definição que ela mesma dá para o gênero em que é mestra: “Um conto é a fotografia de uma árvore; mas há alguém atrás da árvore”[6].

A medalha
Nesse conto, diversas vezes o próprio espaço e a forma como as personagens transitam por ele dizem sobre a relação que há entre a protagonista e sua mãe. Eis seu início:

Ela entrou na ponta dos pés. Tirou os sapatos para subir a escada. O terceiro degrau rangia. Pulou-o apoiando-se no corrimão.

— Adriana!

A moça ficou quieta, ouvindo. Teve um risinho frouxo quando se inclinou para calçar os sapatos, Ih! que saco.

Uma mulher entra na ponta dos pés, o que costumamos fazer quando em situações em que não queremos incomodar, despertar, chamar a atenção de outrem. Logo depois, ela tira os sapatos para subir a escada. Simbolicamente, os sapatos têm a ver com autonomia. Nós mesmos passamos a usá-los quando começamos a caminhar, andar com nossas próprias pernas, ter certa independência, ao ponto de podermos ir por um caminho traçado por nós mesmos — eles estão ligados à ideia de independência, liberdade.

Se essa mulher tirou os sapatos assim que entrou, após chegar na ponta dos pés, então talvez, antes disso, ela tivesse uma liberdade e caminhasse por caminhos que não pode trilhar nesse lugar a que agora comparece. Nesse ambiente, ela não é ou não pode ser a mesma pessoa que foi quando em outro espaço; não é e não pode ser a mesma que ela era até há pouco, antes de chegar e se descalçar para subir a escada. Ela possivelmente tirou os sapatos para não chamar a atenção de uma pessoa que criticaria quem ela foi até há pouco.

Subir uma escada, assim como uma ladeira ou algo semelhante, é fisicamente uma mudança de nível, e isso simbolicamente nos diria que haverá uma mudança na vida dessa mulher — que mudança, não sabemos. Mas sabemos que “o terceiro degrau rangia”, o que aponta para uma escada que não é nova ou é mal preservada — essa mulher está chegando a um ambiente velho/antigo ou mal preservado. E se os ambientes, em textos literários, podem remeter às relações das pessoas que o frequentam ou que aí vivem, é possível que devam estar esgarçadas as relações nesse ambiente a que a mulher está chegando.

Recapitulando: uma mulher chega a um lugar antigo na ponta dos pés, para não chamar a atenção de alguém, e tira os próprios sapatos — talvez ela esteja chegando a um lugar regido por regras antigas, e por isso ela tenha de mudar seu comportamento, para não incomodar quem mantém essas regras, que ela tenta seguir a duras penas, para não criar atrito com quem as dita. Mas, fora desse ambiente, ela é outra pessoa.

— Adriana! — alguém grita. E só então sabemos seu nome, dito por uma outra pessoa, que a nomeia. Mais à frente, descobriremos que é a sua mãe que grita; e que Adriana está chegando à noite, um pouco bêbada, na véspera de seu casamento. No terrível diálogo que acontecerá entre ambas, haverá muito sarcasmo, crueldade, preconceitos, de ambos os lados.

O menino
Num dos mais tocantes textos de Lygia, acompanhamos algumas horas na vida de um garoto ainda criança, durante as quais ele vai da condição de admirador inconteste da mãe a testemunha de seu provável adultério, sendo expulso de seu idílio, de seu paraíso. Assim inicia-se a narrativa:

Sentou-se num tamborete, fincou os cotovelos nos joelhos, apoiou o queixo nas mãos e ficou olhando para a mãe. Agora ela escovava os cabelos muito louros e curtos, puxando-os para trás. E os anéis se estendiam molemente para em seguida voltarem à posição anterior, formando uma coroa de caracóis sobre a testa. Deixou a escova, apanhou um frasco de perfume, molhou as pontas dos dedos, passou-os nos lóbulos das orelhas, no vértice do decote e em seguida umedeceu um lencinho de rendas. Através do espelho, olhou para o menino. Ele sorriu também, era linda, linda, linda! Em todo o bairro não havia uma moça linda assim.
(…)
O menino deu um grito, montou no corrimão da escada e foi esperá-la embaixo. Da porta, ouviu-a dizer à empregada que avisasse ao doutor que tinham ido ao cinema.

Importante considerarmos o fato de o conto ser narrado em terceira pessoa parcialmente onisciente, dando-nos acesso apenas à intimidade do garoto. O mundo com que nos deparamos não é apenas o mundo, mas o mundo visto por ele — e nós, mais do que testemunhas do que o menino experiencia, somos experimentadores vicários.

No começo do conto, o menino e sua mãe estão num quarto, enquanto ela se arruma para irem ao cinema. Ela está em frente a um espelho, o menino a observa, admirado, e nós a observamos através do olhar dele. Num determinado momento, ela, sua imagem refletida, sorri para ele.

Se perguntados sobre quantas pessoas há nessa cena, talvez respondamos que há duas. Mas, na verdade, há três: o menino, a mãe e a mãe no espelho. O conto começa já nos dando uma triangulação que será presente em todo o texto, variando quanto a sua natureza, ora simbólica, ora oculta, ora explícita: quando no quarto, a mulher duplicada através do espelho; quando a caminho do cinema, a mulher sendo a que leva o filho e a que vai ao encontro do amante; quando já na semiescuridão do lugar, o menino testemunha e os amantes dando-se as mãos; quando já de volta à casa, o menino observando a mãe beijar o esposo e subir as escadas para recolher-se, “como todas as noites, como todas as noites”.

Ainda no quarto, ela perfuma-se, e os dois saem envoltos num perfume que se chama Vent Vert, vento verde — uma cor muito presente na obra de Lygia, e que pode nos remeter a uma zona de inexatidão, a algo que ainda não está pronto ou ao que está prestes a fenecer.

Conexões
Em A medalha, Adriana, que usava sapatos com fivelas de pedrinhas verdes (isso aparece mais à frente, no conto), sobe uma escada, encaminhando-nos à ruptura que acontecerá durante a narrativa. Também em O menino temos uma escada, mas, se em Adriana há uma ruptura pela qual ela tem alguma responsabilidade, no garoto isso acontece independente de sua vontade: Adriana sobe a escada por sua própria força, com seus próprios passos; o menino escorrega pelo corrimão, lançado para baixo pela força da gravidade, exterior a ele e maior que suas forças, tornando inevitável a “queda”.

É certo que o menino subiu no corrimão, mas lembremo-nos do que disse José Paulo Paes a respeito de Lygia se valer de elementos que fazem parte da diegese, ressignificando-as.

O mais famoso conto de Lygia, Venha ver o pôr do sol, também tem um início dessa natureza, essa força de cápsula. E tanto ele quanto os dois contos de que falamos aqui têm finais que afirmam o começo, numa quase circularidade — mas isso fica para que você pense a respeito. O que quero dizer, antes de terminar, é que tanto em A medalha quanto em O menino Lygia Fagundes Telles escolheu formas narrativas que, num primeiro instante, podem levar-nos a julgar as personagens. Mas depois, atentando para o rigor, o domínio que ela tem da arte de narrar, vemos que, de Adriana e sua mãe, sabemos apenas o que uma diz sobre a outra, pois o conto é narrado em terceira pessoa não onisciente; e da mãe do menino, sabemos apenas o que ele sabe, não fazendo ideia do que acontece no quarto entre ela e seu esposo, o quarto para onde ela vai ao subir as escadas, no final da narrativa.

Assim, os textos enchem-se de humanidade, porque não julga as personagens e não nos pede que as julguemos, mas que coloquemos em xeque qualquer uma de nossas certezas — como está em xeque tudo que foi dito aqui, este monte de palavras escritas por uma pessoa que inventou para si uma espécie de leitor modelo de uma autora modelo Lygia Fagundes Telles, inserida numa tradição de leitura dentre tantas possíveis leituras, neste mundo de tantos leitores e tantas Lygias, que se fazem a cada vez que um texto seu é aberto e somos chamados a participar dele.

Para falar das cápsulas ficcionais de Lygia, partes de seus contos que condensariam seus dramas, apontando para o que estaria latente esperando o leitor (aqui, em especial, os inícios desses textos), comecei falando do conto total, dessa espécie de texto que condensaria a obra de um contista — e no caso de Lygia, citei também seu romance total. Fico me perguntando, então, se não seria interessante que um leitor, apaixonado pela obra de determinado escritor, buscasse ver se também ele teria um conto ou um romance dessa natureza, um concentrado verbal que nos desse uma miniatura de seu mundo ficcional.

Notas

[1] Publicado pela Nova Fronteira em 1995. Os livros publicados depois viriam com textos de natureza mais próxima à da crônica ou da ficção memorialista.
[2] Vera Maria Tietzmann tem um belo texto sobre isso: Um jogo de deciframento: As horas nuas. Dispersos & inéditos. Cânone Editorial, 2009.
[3] Um artigo meu sobre esse tema foi publicado em 2019, no número 56 da revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, num dossiê sobre Lygia Fagundes Telles organizado por Regina Dalcastagnè.
[4] A arte refinada de Lygia Fagundes Telles. Cultura — O Estado de S. Paulo, 23.dez.1995, D10.
[5] O olhar de uma mulher. Posfácio a Os contos. Companhia das Letras, 2018, pp. 736-737.
[6] Entrevista concedida a Clarice Lispector, por ocasião do lançamento de Seminário dos ratos (1977).

Lygia Fagundes Telles
Nasceu em São Paulo (SP), em 19 de abril de 1923. Estreou na literatura com os contos de Porão e sobrado, de 1938, aos 15 anos. A própria autora, no entanto, considera como marco inicial de sua trajetória o romance Ciranda de pedra (1954). Ocupa a Cadeira 16 da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde 1985 e ganhou diversos prêmios literários, com destaque para o Camões de 2005. Suas últimas reuniões de contos, O segredo e Um coração ardente, saíram em 2012.
Nilton Resende

É ator, professor e pesquisador em literatura. Publicou o livro de poesias O orvalho e os dias, premiado no Projeto Alagoas em Cena 2006.

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