Capri, Moravia, 1934

Acho 1934 o romance de Alberto Moravia uma superior captação da atmosfera não só de Capri, mas da Itália fascista que via a Alemanha despontar como potência de novo perigosa sob os gritos coléricos de Adolf Hitler.
Alberto Moravia, autor de “1934”
01/01/2003

Acho 1934 — o romance de Alberto Moravia — uma superior captação da atmosfera não só de Capri (a ilha desfigurada pelo turismo), mas da Itália fascista que via a Alemanha despontar como potência de novo perigosa sob os gritos coléricos de Adolf Hitler.

Desculpem o “achismo”, mas Capri foi descrita por Axel Munthe, Ivan Bunin e — como dizem os portugueses — uma “data” de escritores que moraram em Capri (e Anacapri), sob o “céu pintado” que desaba no antigo Mar Tirreno turquesa, profundo, revolto nos dias que impedem a visitação vulgar da Grotta Azurra pelos barcos de pescadores convertidos em guias de turistas. Desprezo o turismo. E cito outro que o detesta ainda mais do que eu, o americano Don DeLillo — que também andou por Capri e escreveu, certeiro: “Turismo é a marcha da estupidez. Espera-se que sejamos estúpidos. Todo o mecanismo do país anfitrião é engrenado para viajantes agindo estupidamente. Confusos, circulamos pelos lugares apertando os olhos sobre mapas desdobrados. Não sabemos como falar com as pessoas, como chegar a qualquer parte, qual é o valor do dinheiro, que horas são, onde e o que comer. Ser estúpido é o padrão, o nível e a norma. Podemos viver nesse nível semanas e meses, sem censuras ou conseqüências tenebrosas. Juntamente com milhares de outros, a nós são concedidas imunidades e amplas liberdades. Somos um exército de imbecis, vestidos com poliésteres vistosos, empoleirados em camelos, tirando retratos uns dos outros, abatidos, disentéricos, sedentos. Não há nada em que pensar a não ser no próximo evento amorfo”…)

A Capri de 1934 é aquela das loucas pessoas refinadas que namoravam o inesperado e o perigo — que era romântico — nas ilhas azuis e dominadas por algum sortilégio perdido. É a Capri onde Tibério se recolheu para escrever poemas e ser completamente perverso, longe de Roma. Moravia admirava os poemas do imperador, estranhos e “livres”. Era um viajante e, em 1934 — o ano armando a sombra de 35 em diante — um antifascista convicto, doente de tristeza e de tuberculose osteoarticular. Já em 1929, num sanatório de Cortina D’Ampezzo, denunciaria a indiferença dos Indiferentes — no seu primeiro romance, escrito aos 22 anos. O fascismo italiano se consolidava no poder, Hitler publicava Mein Kampf e o clima opressivo (até em Capri) obrigaria Alberto Pincherle — o verdadeiro nome de Moravia — a sair da Itália. O filho de uma família judia-romana endinheirada e acomodada (seu modelo para Ambições equivocadas, o segundo romance) foi para a Londres do início dos anos 30, onde conheceria W. B. Yeats, H. G. Wells, entre outros. Eram iniciais demais, e ele logo se transferiu para Paris e, depois, para Nova Iorque, viajante do fim dos “anos loucos” encontrando a verdadeira loucura suicida dos anos pré-guerra.

Moravia retornaria para uma Itália profundamente mudada, aliada da Alemanha daquele líder encolerizado que ainda soava distante — no romance da ilha —, quando o jovem personagem antifascista se enamora de uma alemã fascinada pelos discursos do Fürher. A censura política está instalada e o escritor é obrigada a incorporar a alegoria, a sátira e a ironia a um estilo que jamais fora doce. (Aqui estou longe do assunto de Capri, e tentando dar os traços biográficos desse escritor injustamente esquecido nos dias que correm. Moravia é grande, merece releitura — e, de modo algum, aquele apelido maldoso, que lhe deram os conterrâneos mais invejosos: amaro gambarotta, aludindo ao nome de um famoso vermute e ao fato do escritor claudicar de uma perna.)

Seu casamento com a escritora Elsa Morante foi em plena guerra (1941), e a lua-de-mel em Capri iria se alongar numa estada demorada, até chegar o aviso de que a polícia fascista sabia onde estava o amaro. O casal fugiu de Nápoles, com as recordações que, mais tarde, Moravia incorporará ao cenário de 1934. Terminada a guerra, os anos da “reconstrução” italiana lhe trarão as privações naturais da época, mas o escritor — vivendo da literatura, exclusivamente — conseguirá sobreviver de algum modo, ainda que usando roupas do irmão e empenhando até os móveis da casa. O casamento com a Morante duraria até 1962, quando Alberto e Elsa tomaram caminhos diferentes, na arte e na política. Moravia foi um entusiasta — imediato — das revoluções cubana e chinesa (a “cultural”) e se apresentaria como candidato independente ao Parlamento Europeu, pelo Partido Comunista Italiano, em 1984. O velho romano ainda se casaria com Dacia Maraini — com quem viveu até o ano da candidatura — e uma última relação amorosa (com a espanhola Carmen Llera, 29 anos) ainda levaria o escritor, com quase 80 anos, ao terceiro casamento de uma vida intensamente vivida, encerrada no dia 26 de setembro de 1990, em Roma.

Moravia nunca foi uma pessoa fácil, e muitos que o conheceram o consideravam fechado, “difícil”, se não mesmo arrogante. Sua independência de pensamento foi sempre feroz e, para os outros, talvez incômoda. Pode se dizer o que quiser dele, menos que alguma vez venha tenha recusado o engajamento vigoroso nas lutas em favor da liberdade e dos direitos humanos.

Na minha opinião, o melhor da sua obra se contém em três livros de qualidade literária indiscutível: o já citado Os indiferentes, o inconformado O conformista e o romance de Capri, 1934. Seu título mais conhecido, entretanto, é La Ciociora, quadro neo-realista filmado por De Sica, oscar de melhor filme estrangeiro. Isso ajudou a divulgação ampla do livro que retrata os anos terríveis da guerra obrigando uma mãe e uma filha a se refugiarem no campo italiano, arcaico e hostil, entre as rudezas da luta pela sobrevivência no meio, por natureza já rude, dos camponeses da “Itália profunda”. Eu ainda citaria — como de minhas preferências pessoais — o último romance escrito por Moravia, Viagem a Roma, um ajuste quase “psicanalítico” do escritor com a sua família e a cidade onde nasceu em 1907 (tendo voltado a ter casa também em Capri, nos anos derradeiros).

Sua existência de 83 anos foi a de uma testemunha de um século que mudou demais e que pôs à prova a fé humana, a esperança e a solidariedade, como nenhum outro. Para restaurá-las em parte — neste ano novo — resolvo sugerir aos que ainda amam a literatura e buscam dilatar a consciência: leiam o amaro gambarotta acre e humano, viajem à Capri de há quase 70 anos com ele e deêm a volta à moderna Roma com o autor de A romana, Desideria e outras obras desse autor fundamental da literatura italiana do século que passou. Garanto que não se arrependerão.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho