A obra poética do padre Daniel Lima foi construída de maneira subterrânea, discreta. Pouquíssimos amigos conheciam seus versos e a relutância em editá-los só foi vencida quando o autor já chegava aos 95 anos. Toda insistência no ineditismo, ao que parece, prendia-se a uma humildade intensa. Os poemas têm qualidade rítmica e um conteúdo profundo que justificariam sua publicação em qualquer época, no entanto Daniel preferia deixá-los na gaveta.
Enfim, rompida a barreira inicial, um grupo de amigos conseguiu reunir em um alentado volume, Poemas, parte considerável da obra de Daniel Lima. A repercussão foi tamanha que o livro conquistou, em 2011, o Prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Fundação Biblioteca Nacional. No ano seguinte, com a morte do poeta, os amigos voltam a editar outra de suas obras, Sonetos quase sidos.
Retórica coloquial
A leitura dos dois volumes revela uma poesia curiosa. Não há grandes inovações ou mesmo novas abordagens temáticas. Do ponto de vista formal, Daniel trabalhou o verso livre e percorreu temas recorrentes como a morte, a solidão, a condição humana. Mesmo a linguagem é corriqueira. No entanto, ao tomar para si instrumentos já tão manejados, o poeta ganha fôlego e força, e daí surge uma poética que se arrisca, se renova e causa impacto.
A dualidade entre uma retórica rasa e um conteúdo denso, mais surpreendentes porções de lirismo, se revela constantemente. “Quando escrevo os meus versos/ meu coração fica leve/ como uma folha.// Mas sopra a tempestade/ e a folha sofre/ o desespero de ser leve.” Esta densidade de conteúdo se estabelece como um diálogo com a filosofia inaugural, aquela em que se busca mais entender que explicar o homem. Desdizendo Caetano Veloso, para quem “só é possível filosofar em alemão”, Daniel, assim, envereda por uma dialética quase simplória. “Fui à procura da filosofia/ e ela me ensinou tranqüilamente/ que a resposta é a pergunta,/ nada mais que a pergunta que eu fazia.”
Suas reflexões são sobre o homem, repito, mas para chegar a ele o poeta vive numa forma de gangorra. Ora está com Deus, mas logo se deita com insetos e revela um despojamento que chega até a escatologia. Num contraponto a Lêdo Ivo, entretanto, não canta os ratos em sua condição de miséria, mas os ratos como paradigma quase religioso, do ser também divino que tem espaço na terra.
Daí certamente nasce sua retórica coloquial, seu canto quase ingênuo. “É para alguém, que se canta,/ voz de gente quer escuta./ Cantiga da voz da gente/ quer agasalho de ouvido.” E certamente este é um dos pontos mais altos de sua poética. Seus versos, nascidos no espontâneo, se fixaram sem o apuro do aprimoramento, da reescrita.
Neste aspecto percebe-se uma forte influência dos argumentos religiosos. Os poemas foram escritos por um padre que nunca se negou a esta condição. Daí a intensa presença dos dogmas religiosos que — saliente-se, estão aqui despojados da pompa —, embora ainda prenhes do conceito da verdade absoluta, mas vestidos no coloquial, despem-se de qualquer arrogância. “Eis-me agora menino:/ escutarei Deus cantar.”
Morte à espreita
Não podemos é nos enganar: este Deus que ressuscita o menino é também apocalíptico, e sabe castigar. Promove medo, até, pois está em esferas inalcançáveis. “Mas Deus é longe, tão longe!/ E eu sou tão perto de mim!/ E o mundo me dói tão dentro!” Esta crença, no entanto, o alenta e o segura para enfrentar os velhos medos, pois o poeta que escreveu uma Cantiga do medo velho está permanentemente temendo a morte e a solidão. “Ai de mim, que já tão velho,/ cabelos brancos e rugas,/ ando assustado comigo,/ ando com medo de tudo, medo das coisas que amo!”
Para o poeta, a morte é mais que o contraponto da vida e a certeza absoluta. Ela também vive como uma espreita permanente que cultiva o homem cotidianamente. “Viver no tempo é morrer”, afirma para salientar este trabalho inexorável da morte. Apesar de estar com o homem em todas as etapas do caminho, ainda assim, a morte provoca medos e dúvidas. E aí o homem, despido de qualquer outra condição, vence o filósofo.
Condenação
Visto com distanciamento crítico, em todos os versos Daniel Lima prepara o leitor para o fatalismo do destino, para aquilo que está escrito em esferas longínquas, mas que afeta diretamente o instante presente. Cada homem é único em sua condição, acredita o poeta que assim exalta a solidão: “Sinto-me só. Estou só. Melhor ainda,/ sou só, dentro de mim, no ser profundo;/ não apenas por fora, e neste instante,/ senão por ser quem sou, sou tão sozinho”.
A solidão traz alegria exatamente por dignificar a individualidade de cada ser, de cada homem, de cada inseto. Mesmo sendo a continuidade de seus antepassados, os seres permanecem individualizados e solitários: “E eu, tão diferente, rebelei-me/ contra o meu pai.// E, por isto, imitei-o/ (e, como ele, perdi-me;/ que imitou seu pai)”. É, enfim, a doce contradição de toda poética de Daniel. O homem, criado por Deus, está preso ao destino traçado e mesmo assim se destaca por ser exclusivo.
Todo ser é único. E nisto consiste a crença maior de Daniel Lima, que viveu uma espécie de condenação interna que o levou à pena de ser poeta. “Só cheguei a ser isto:/ um pássaro que enlouqueceu/ com o próprio canto.” E por cantar um canto humilde, foi intenso e consistente.