Canga bruta

O poeta, tradutor e ensaísta Carlos Felipe Moisés lança seu quarto livro sobre a vida e a obra de Fernando Pessoa
Carlos Felipe Moisés: especialista apaixonado.
01/09/2005

Escrever sobre Fernando Pessoa é mais fácil do que escrever sobre outros poetas. É só permitir que atue, sem reservas, o seu efeito psicoestimulante, debaixo do qual todos nos sentimos capazes de despejar uma falação interminável, achando que encontramos uma chave secreta, a explicação definitiva.

É o que afirma o poeta e ensaísta Carlos Felipe Moisés no livro Almoxarifado de mitos, observando que sob o efeito excitante da dialética pessoana, todos tendemos a lidar com instâncias temáticas, categorias mentais e padrões lógico-reflexivos fornecidos pelo próprio poeta, correndo o risco de só parafrasear o já dito — atalho sedutor, por onde às vezes envereda a portentosa massa de estudos críticos a respeito do autor.

Este é o quarto livro de Carlos Felipe Moisés sobre a vida e a obra de Fernando Pessoa. Não se trata apenas de um especialista apaixonado, mas, antes, de um autor que leva a fundo análises que duram a vida inteira. Sempre haverá algum aspecto ainda desconhecido a ser examinado. Carlos Felipe é incansável em relação a Pessoa, a exemplo do que ocorre também em relação a outros poetas da língua portuguesa.

Carlos Felipe Moisés observa que Pessoa não é autor de uma obra, no sentido convencional, uma obra acabada, mas de uma genial promiscuidade de projetos literários, a work in progress, que aparentemente continuaria in progress enquanto ele vivesse. Vale dizer — afirma Carlos Felipe, inspirado quem sabe no alquimista Fulcanelli, ou no mago Aleister Crowley, que Pessoa ciceroneou em Lisboa — que o poeta talvez encarasse a famosa arca onde depositava seus manuscritos como uma espécie de retorta ou cadinho, em permanente ebulição. Nela ele se dedicava a decantar a canga bruta das palavras, transmutando-as no ouro puro de umas frases lapidares — às vezes alheias, como “Navegar é preciso, viver não é preciso”.

Mais uma vez Carlos Felipe Moisés esmiúça a obra pessoana, num livro que reúne material dos últimos 30 anos. Almoxarifado de mitos é um ensaio de qualidade, assinado por um poeta brasileiro que prima pela absoluta honestidade em relação à poesia. Ele observa que, graças à popularidade que Fernando Pessoa atingiu, é provável que, hoje, até o menos atento dos leitores já tenha saciado parte de sua curiosidade em relação ao poeta, sem a necessidade de o ler, já que se trata do escritor de língua portuguesa sobre quem mais se escreve e de quem mais se fala, nos últimos tempos.

Carlos Felipe Moisés está lançando também Alta traição, poemas que selecionou e traduziu ao longo de 30 anos de trabalho. Ele observa logo na primeira página que alguém já definiu “poesia” como aquilo que se perde na tradução: “A justificativa para continuar traduzindo poemas — exercício intermitente a que me dedico, há anos — reside exatamente no desafio de tentar evitar essa perda”.

O tradutor explica que os poemas — mescla heterogênea de épocas, tendências e estilos — contam todos com sua particular admiração. Esclarece que traduzi-los lhe proporcionou uma experiência estética inestimável. Primeiro, pela tentativa de apreender, no original, o que seria sua substância íntima; segundo, pelo desafio de converter essa substância em algo que seja, na medida do possível, fiel ao original e, ao mesmo tempo, literariamente convincente no idioma de chegada, algo cujo resultado atenda também aos padrões lingüísticos e poéticos desse idioma. Foram traduzidas obras de Marcel Proust, Alfred Jarry, Guillaume Apollinaire, Vicente Aleixandre, Henri Michaux, Roberto Desnos, Luis Cernuda, W. H. Auden, René Char, Reed Whittemore, José Emílio Pacheco, Rosana Warren e Carolyn Creedon, uma garçonete em San Francisco.

Fernando Pessoa: almoxarifado de mitos é seu quarto livro sobre o poeta português. Um deles, aliás, O poema e as máscaras, foi publicado em Portugal. Por que esse tão longo amor por Pessoa?
Fernando Pessoa tem sido, para mim, um desafio constante, desde meu primeiro contato com ele, na adolescência. De um lado, a desconcertante variedade de estilos, humores e modos de sentir o mundo, representada por seus heterônimos (até hoje desconfio que Pessoa não é um poeta, é uma literatura inteira); de outro, o halo de mistério em torno de uma obra quase toda de publicação póstuma, que vem sendo dada a conhecer aos poucos, e ainda segue em parte inédita, 70 anos depois da morte de seu autor. O fato é que continuo a perseguir uma explicação possível para a perplexidade que experimentei já naquele primeiro contato, e que só tem feito crescer. Continuo a ler Pessoa, hoje, com o mesmo entusiasmo, embora a desejada explicação sempre escape. Este Almoxarifado… registra algumas tentativas que tenho feito, ciente de que uma eventual explicação satisfatória só aparecerá, quem sabe, daqui a duas ou três gerações. Nunca duvidei que Pessoa é um poeta para ser lido e amado século 21 adentro.

No capítulo “Lisboa: 1893”, você, baseando-se em documentos, tenta reconstruir o clima familiar e a infância do poeta aos cinco anos de idade. Peço que explique especialmente essa parte do livro.
Esse “Lisboa: 1893”, peça de ficção, tem a ver com meu interesse pela biografia do “verdadeiro” Fernando Pessoa, por trás dos heterônimos (o Pessoa “ele mesmo”, convém lembrar, é só um deles). Nesse texto, e em outros dois similares, deixo o crítico um pouco de lado e cedo espaço à imaginação do leitor, que, guiado pelo poeta, divaga livremente em torno da figura humana por trás da obra. Ali, detenho-me naquele momento mágico em que tudo deve ter começado: a descoberta do poder transfigurador da palavra escrita, em meio à primeira aterradora experiência da morte e da loucura. Esse conto, se assim posso chamá-lo, procura visualizar isso com delicadeza, sem drama.

O livro junta ensaios e conferências de um período de 30 anos. O que você escreve hoje sobre Fernando Pessoa é o mesmo de 30 anos atrás ou alguma coisa mudou nas suas observações e análises
Abrangendo um período tão longo, o livro evidencia que alguns dos temas que me atraíram de início (o desdobramento em heterônimos, os paradoxos e a ironia, a linguagem elíptica e intelectualizada, de pendor filosofante, a racionalização das emoções, o ceticismo, o relativismo etc.) continuam a me atrair, com a mesma intensidade. Mas a visão não é a mesma: algo daquele entendimento inicial permanece, caso contrário eu não retomaria interpretações antigas, mas novos tópicos e facetas vão se acrescentando, sobretudo no que se refere à questão da auto-identidade e à inserção da obra pessoana num contexto cultural mais amplo, para além do estritamente literário. Os capítulos não estão ordenados cronologicamente, mas o livro registra momentos do meu esforço naquela direção, um esforço de amadurecimento, ao longo do qual a mão vai ficando menos pesada (assim espero), para que algumas idéias se confirmem e se adensem, outras desapareçam e outras mais vão surgindo. Essa dedicação pertinaz, julgo eu, jamais implicou idolatria, muito menos idolatria exclusiva: meu interesse pelo poeta português nunca impediu que eu continuasse a admirar, e a ler com entusiasmo, outros poetas, quer os que eu já lia antes, quer os que eu vim descobrindo depois. Eu só tenho escrito mais sobre Pessoa do que sobre João Cabral, por exemplo, ou Drummond ou Vinicius, em razão das circunstâncias: ao longo desses anos, tenho recebido constantes convites para conferências, cursos e congressos sobre Fernando Pessoa, para colaborações em números especiais de revistas e preparação de edições sobre ele, e até convites para escrever livros inteiros a respeito — como é o caso dos dois Roteiros de leitura, que escrevi para a Editora Ática, de São Paulo, um sobre Mensagem, outro sobre Álvaro de Campos. Mas se fosse para falar em termos de idolatria, eu diria que, apesar da admiração pelo poeta português, meu trato com poesia tem sido francamente politeísta. Mesmo porque meu propósito nunca foi endeusar Fernando Pessoa: nem ele nem seus leitores precisam disso. Este, aliás, é o tema do capítulo de abertura e que dá título ao livro.

Vamos agora ao segundo livro, Alta traição. Trata-se, também, de um trabalho de 30 anos. Inicialmente, de onde veio esse título?
O título vem de um dos poemas do mexicano José Emilio Pacheco, incluído na coletânea. A idéia é o velho clichê segundo o qual tradução é sinônimo de traição. E eu concordo, especialmente em relação à poesia: na passagem da língua de origem para a de chegada, muita coisa se perde. A tradução é só uma aproximação. Mas por isso mesmo é um enorme desafio, que eu tenho prazer em enfrentar. Não que eu aprecie tarefas impossíveis, mas vejo aí um exercício precioso, oportunidade de me impor alguma disciplina, contrária ao meu temperamento, mas que julgo necessária ao trabalho de criação. Nessas tentativas de fazer que a perda ou a “traição” se reduza a um mínimo, o esforço acaba resultando, pelo menos, em proveito próprio: eu vou afinando meu instrumento de trabalho. Isso tem me acompanhado ao longo dos anos. Embora algumas dessas traduções tenham até sido publicadas em revistas, foi só recentemente que o poeta e editor Reynaldo Damazio me sugeriu reunir tudo numa antologia. E o resultado aí está.

Que critério você usou para escolher os poetas que traduziu?
Alta traição não é um livro planejado, de modo que a escolha dos poetas não obedeceu a nenhum critério fixo. Não é, para começo de conversa, a reunião dos poetas estrangeiros que mais admiro. Numa antologia desse tipo, uns entrariam, outros não — e eu teria que providenciar a tradução de outros tantos. São poetas que em algum momento, por razões variadas, ganharam meu interesse, poetas dos quais fui traduzindo um ou outro poema. Houve uma fase, por exemplo, em que mergulhei fundo no surrealismo e acabei “descobrindo” uns poetas menos conhecidos, parentes próximos do grupo de Breton, como Desnos e René Char, ou mais afastados, como Michaux. Em outro momento, para compensar um pouco minha ignorância em relação à poesia espanhola do século 20 (uma das muitas deficiências da minha formação), andei lendo poetas ibéricos e acabei topando com Vicente Aleixandre e Luis Cernuda. Há o caso do mexicano Pacheco, poeta e crítico literário da minha geração. Fomos colegas, por um tempo, na Universidade da Califórnia. Trocamos livros e proseamos sobre vários interesses comuns. Traduzir alguns dos belos poemas de meu amigo foi uma conseqüência natural. Mais recentemente, apareceram na minha frente os poemas de Proust, tradução encomendada por uma editora de São Paulo, e essa extraordinária Carolyn Creedon, jovem escritora norte-americana, inédita em livro, que eu descobri por acaso, navegando na internet. O livro tem a ver, em suma, com a minha avidez pela poesia de todos os quadrantes, onde e como quer que ela se manifeste — a coisa do “politeísmo” a que me referi, a propósito de Pessoa.

Finalmente: para traduzir poesia é preciso ser poeta?
Assim, de bate-pronto, eu diria que não, embora não me ocorra nenhum exemplo de boa tradução de poesia feita por não-poetas. Acontece que, do tradutor de poesia, esperam-se uma apurada sensibilidade no trato com a palavra e uma boa dose de criatividade e inventividade, na tentativa de encontrar, na língua de chegada, soluções correspondentes ao engenho mais ou menos elaborado do original. Essas habilidades coincidem com aquelas que se esperam, também, do poeta propriamente dito, mas não necessariamente do tradutor profissional. (Tradução de poesia é coisa de amador.) Vai daí, você tem razão: precisar, não precisa, mas… Tanto isso é verdade que a tradução de poesia por poetas tende a ser vista, no nosso tempo, como parte integrante da ars poetica, uma atividade tão digna quanto a criação. Além disso, a poesia sempre foi — desde a antiguidade, e hoje cada vez mais, por razões óbvias — um fenômeno de interpolação cultural, vale dizer poliglota. Não tenho notícia de nenhum grande poeta, em qualquer tempo, que tenha limitado seu conhecimento de poesia ao seu idioma nativo. Toda grande obra poética filia-se, como diria Harold Bloom, a uma verdadeira family romance, em mais de um idioma, só que a recíproca não é verdadeira, caso contrário qualquer poliglota seria bom poeta.

 

Fernando Pessoa: almoxarifado de mitos
Carlos Felipe Moisés
Escrituras
232 págs.
Alta traição
Carlos Felipe Moisés
Unimarco
174 págs.
Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho