Caminhos inusitados

Em “Modo de apanhar pássaros à mão” e “O vôo da guará vermelha”, Maria Valéria Rezende une linguagem e enredo de maneira rara
Maria Valéria Rezende: histórias que seduzem os leitores.
01/09/2006

Tudo já foi dito e escrito? Não há nada de novo no front literário? Talvez. No entanto, a literatura de Maria Valéria Rezende aponta para inusitados horizontes. A autora, entre outras coisas, problematiza a respeito de trajetórias de personagens para quem não há, necessariamente, final feliz. E isso é novidade? A proposta rezendiana apresenta possibilidades inesperadas. O texto é conciso, tem elementos da prosa mais do que contemporânea, incluindo doses daquilo que alguns chamam de lirismo. E tal recurso funciona? A prosa de Maria Valéria Rezende envolve — pega — o leitor, e parece querer, apenas, aquilo que tantos pós-modernos execram mas que vem sendo praticado há muito: contar uma estória. Isso não parece convencional? Nem tanto. Há certa sutileza, estranheza e surpresa, entre inúmeras belezas, que a ficção da autora dá a impressão de inventar a roda, apesar da roda estar aí há tanto tempo.

Modo de apanhar pássaros à mão é o livro mais recente de Maria Valéria Rezende. Os 16 contos tratam, a partir de variadas abordagens, da dor. Sim. Os enredos apresentam personagens que tiveram as suas trajetórias, aleatórias ou planejadas, interrompidas; pontes ruíram e a travessia terá de ser realizada a partir de outras estradas ou contornos. Os seres da ficção desta autora colidem com um porvir cruel. Alguns dos contos tratam daquilo que se foi e não tem volta nem remendo. Tudo fluía e, de repente, de um segundo para o outro, a ordem das coisas se desordenou. E nada explica. Um óbito é ponto de partida para a narradora de Lamento para harpa e tuba recuperar fragmentos de um passado em que havia sorrisos, esperança e tudo parecia para sempre. O beijo de um casal deflagra na narradora de O homem invisível reminiscências de um período raro, ameno — em contraste com o presente.

Os 16 contos de Maria Valéria Rezende podem até vir a ser classificados, por algum funcionário do sistema de rotulagem literária, de tratados sobre a dor. Afinal, há, por exemplo, textos em que o narrador, a partir de uma mirada em outros personagens, elabora pontos de vista a respeito da volaticidade de toda e qualquer alegria diante da inevitável tristeza e decepção que rondam toda e qualquer existência — a exemplo do que se lê em Ficção e Toda dor tem fim. A vida que poderia ter sido e não foi — mote de Manuel Bandeira, entre outros — dá o tom para O sonho e o tempo. A luta, vã, para se conseguir, inclusive controlar, o objeto amado ganhou espessura no conto que empresta o título ao livro. E até mesmo o recorrente conflito entre todo Caim e todo Abel foi recriado, com entorno contemporâneo, em A princesa de Tróia. Enfim, lidos em conjunto, os textos breves ficcionais desta autora formam um painel a respeito de seres que terão em seus caminhos inescapáveis decepções, dolorosos destinos.

Cena literária
No entanto, o ponto alto do livro Modo de apanhar pássaros à mão está no primeiro conto, Dilema. Nesta peça, a autora apresenta alguns de seus muitos recursos. Entre outros detalhes, a linguagem foi construída levando em consideração o tema, e vice-versa. A personagem central é uma escritora que tem o seu original constantemente recusado e, para sobreviver, revisa provas e inéditos alheios. O título do conto e a própria narrativa traduzem o impasse da protagonista:

O resto do dia é de trabalhos forçados, revisar um texto chato a mais não poder. Por que não me dão bons romances em vez desses livros de auto-ajuda neste triste português rasteiro?, ah!, porque isso os jovenzinhos promissores não querem fazer, vão todos ser grandes escritores, revolucionar a literatura.

Dilema é um texto que discute a vida literária. A personagem central, Alícia Maria Cordeiro Lobo, atirou-se de alma e corpo na consecução de seu destino, guiada unicamente pelo seu daimon, pelo seu anjo tutelar, na construção de sua lenda e destino pessoais. Estragou a vista lendo em circunstâncias adversas, alimentou-se com os clássicos, desmanchou noivado para estudar letras e abdicou de uma carreira acadêmica para não gastar energia senão com o fazer literário. No entanto, seu nome segue a figurar apenas nos créditos de revisão. Há, em meio à narrativa, até mesmo uma observação a respeito de como usar o nome no mundo artístico.

Mas a glória não vinha e, quando ouviu um escritor famoso dizer que nenhum autor fazia sucesso com mais de dois nomes, embora não fosse bem verdade na terra de João Guimarães Rosa, José Lins do Rego, Lígia Fagundes Telles, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Caio Fernando Abreu, Rosa Amanda Strausz e assim por diante, achou que o malfadado nome podia ser mesmo a razão de seu azar e pensou em usar um pseudônimo, recuou porque lhe pareceu uma covardia, tentou reorganizar o próprio nome de várias maneiras e acabou escolhendo apenas Alícia Lobo, que soa como a alternativa mais nobre e forte.

Uma vizinha morre e deixa para a personagem central como presente, legado ou surpresa um romance inédito — “O livro que Alícia daria tudo para ter escrito, que de tal maneira a fascina que nem lhe dói a constatação indiscutível de que seu próprio romance está longíssimo da genialidade”. Alícia oferece o manuscrito a um editor ou assume para si a autoria da obra? Eis o dilema final que o conto apresenta aos leitores.

Raridade literária
Sagüi, o segundo conto do livro Modo de apanhar pássaros à mão, traz alguns dos sinais presentes em uma outra obra de Maria Valéria Rezende, O vôo da guará vermelha — romance publicado em 2005. A longa narrativa se faz a partir do choque entre dois personagens, Rosálio e Irene. Ela, uma prostituta contaminada com o vírus da aids. Ele, um sobrevivente que faz quase de tudo para continuar e deseja, mais do que tudo, poder um dia vir a ler. A aproximação entre os dois, naturalmente, é movida pelo desejo e pela possibilidade de troca. De sexo. De convivência. E até de uma inusitada proposta de alfabetização. Toda noite Rosálio conta, na cama, para Irene, uma história — como se fossem mil e uma as histórias. São recriações de causos de um Brasil fora da mídia; lendas, tragédias, milagres, etc. — e, assim, a autora elaborou linguagem raramente produzida na literatura brasileira, a exemplo do que se lê em um fragmento aleatório:

Ai que saudade me dá de quando eu era pequeno, quando chegava o verão, lá na Grota dos Crioulos, as mangueiras carregadas, a meninada assanhada, do preto de nossa cara já quase nada se via, lambuzada o dia inteiro com uma careta amarela, manga era nosso café, merenda, almoço e jantar; aquela é sumaúma de madeira bem macia que o Bugre cortava à faca pra me mostrar como eram as coisas que na Grota não havia, um avião, a jangada, um trem de ferro, automóvel e me fez uma espingarda igualzinha à que ele tinha; olhe aquela, é abiurana, parece abiu mas não é, a outra é uma cabriúva que dá mesa e tamborete e dela Donana Veia tirava ungüento pra dor, depois dela é um acaçu, êta planta perigosa!, solta um leite venenoso que gente maldosa lança pra matar peixe no rio, não é como o amapá, que se vê ali adiante, essa sim dá leite bom!, que cura qualquer ferida e chiadeira do peito, veja ali a mirueira, jatobá, muiraximbé, acolá uma gameleira, pau-rainha, olhe, mulher, que alegria!, tem um pau-d’arco amarelo já começando a florar…

Irene ganha alguma sobrevida. Rosálio aprende a ler e a escrever. Mas, se o mundo — o real, o da ficção de Maria Valéria Rezende e o cantado por Cartola — é mesmo um moinho, que vai triturar todos os sonhos, inclusive os mais mesquinhos, então, o convívio entre os dois personagens será, obrigatoriamente, interrompido. A doença mata Irene. Rosálio terá de partir, andar — outros horizontes porvir.

Se o leitor reclama que não há nada interessante nas prateleiras nem nas vitrines das livrarias, tampouco nas estantes das bibliotecas públicas, a literatura de Maria Valéria Rezende se faz, então, como a boa nova. Seja pelo romance O vôo da guará vermelha como pelo livro de contos Modo de apanhar pássaros à mão. A autora oferece linguagem adequada ao mote — até os especialistas vão gostar —, mas, acima de tudo, apresenta histórias que seduzem o leitor — e isto parece ser artigo raro num tempo em que pseudoinovadores e supostos vanguardistas surgem, discursam, escrevem e publicam mas raramente cumprem o anunciado.

Modo de apanhar pássaros à mão
Maria Valéria Rezende
Objetiva
135 págs.
O vôo da guará vermelha
Maria Valéria Rezende
Objetiva
182 págs.
Maria Valéria Rezende
Nasceu em Santos (SP) e vive há 20 anos em João Pessoa (PB). Ainda jovem, tornou-se freira e embrenhou-se pelo interior do Brasil para colocar em prática a sua militância contra desigualdades e injustiças. Já viveu na Europa, na África e na América do Norte. Participa do Clube do Conto da Paraíba. É autora de O vôo da guará vermelha (romance, 2005) e Modo de apanhar pássaros à mão (contos, 2006) — ambos com o selo da Objetiva.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

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