Caminhos imprevisíveis

O texto deve ser um organismo vivo e independente, cuja respiração brote da força de cada palavra e imagem, sem a necessidade de uma mensagem final
01/12/2007

Não há mensagens, há mensageiros e essa é a mensagem, assim como o amor é quem ama. Julio Cortázar

A epígrafe de Cortázar sugere uma idéia sedutora: o amor não é algo que nos acontece, nós é que acontecemos a ele. A sua existência se alimenta de quem o sente. De repente, nos tornamos sujeito e não objeto do sentimento amoroso. Não há mensagens a serem entregues ou missão a ser cumprida. Há, sim, o mensageiro, viajante que não tem objetivo de chegar a lugar algum. A sua única meta é a própria viagem. Andar por caminhos incertos e imprevisíveis, receptivo ou desafiante ao que o inesperado apresenta, em um percurso definido a cada passo. A finalidade da sua experiência não reside em um segundo elemento, que a explicaria e lhe daria sentido, colocando o ponto final na questão. Sem necessariamente uma lógica que a justifique, a finalidade está na própria experiência e no que ela oferece.

Essa é uma idéia, além de sedutora, inquietante para uma reflexão a respeito da escrita literária. Sugere uma experiência artística que estimula mais perguntas e questionamentos do que desenvolve explicações e apresenta conclusões. Um texto que seja um organismo vivo e independente, cuja respiração brote da força de cada palavra e imagem, sem a necessidade de uma mensagem final. Um texto errante, como o mensageiro de Cortázar.

Pensar na criação de uma ficção assim, que escolhe caminhos imprevisíveis, em vez dos já percorridos e sinalizados por outras narrativas e outras épocas, torna o ato de escrever a própria experiência. Sem a ambição de, por meio do relato, passar mensagens, muito menos de responder a questões morais, humanas, ou atingir algum grau de “verdade” ou “retrato fiel da vida”, se abre uma janela fértil de imagens e de possibilidades de escrita infinitas.

Livre da incumbência de dizer alguma coisa com a sua chegada, já que não há mensagens, ou livre até mesmo de chegar, o mensageiro aproveita a viagem. Na estrada literária, prefere caminhar por lugares desconhecidos, explorar caminhos errantes que se desdobram em outros caminhos, entrar em matos fechados em vez de seguir as placas e setas do asfalto, descobrir um livro que conduz irresistivelmente a outro, tremer diante da expressividade de uma frase, um tema, um estilo. Textos arrebatadores, surpreendentes, que deixam a marca singular daquilo que são, daquilo que dizem, não do que querem ser e dizer. “Nenhuma emoção, só essa de estar aqui se dizendo”, profere Hilda Hilst. É a força expressiva da palavra latente em si mesma.

Cortázar é um dos escritores citados por Reinaldo Laddaga no ensaio Introducción a un lenguaje invertebrado. Una situación de João Gilberto Noll. Nas últimas linhas deste texto, Laddaga aponta para uma constelación de escritores, nascidos no final dos anos 30 e na década seguinte, que teriam em comum a composição de uma escrita singular. A constelación inclui os nomes de Clarice Lispector, Julio Cortázar, Octavio Paz, João Gilberto Noll, entre outros artistas. Na busca de compreender no que consiste a singularidade dessas escritas, principalmente a de Noll, Laddaga se debruça sobre a sua prática criativa, e descobre assim um arsenal de idéias e convicções acerca do ato literário, que criam dinâmica interação entre a prática da escrita e o que podemos chamar de proposta estética deste escritor.

Uma questão bastante interessante se revela nessa interatividade entre o fazer e o pensar a arte: a de que por trás da história contada (ou não), da linguagem e, até mesmo, do escritor, há uma proposta literária que alimenta e desafia a criação. Pode-se dizer que essa proposta, longe de servir apenas ao livro escrito no momento, serve na formação de todo um pensamento e direcionamento da obra. É, portanto, um modo específico de ver e fazer literatura.

Laddaga utiliza uma expressão do próprio Noll, dito pelo protagonista do romance Harmada, de 1993. Um ex-ator se refere à fala de um personagem cego, interpretado por ele no passado, para indicar um estado de linguagem bastante específico alcançado por meio da condição da cegueira. Estado que Laddaga vislumbra como um signo da investigação criativa do próprio escritor: a “linguagem invertebrada”.

Nesta fala, o “cego terminava como uma espécie de faquir, […] quase um puro espírito, e como tal perdera a capacidade para a linguagem humana; […] já não usava palavras, explorava sons remotos — […] finalmente tínhamos chegado à linguagem invertebrada, ou seja, àquela que desconhece qualquer viga mestra, àquela que não quer ir a ponto algum, àquela que em microexplosões se liquefaz na tela baça do cego”.

No romance, o personagem faz de sua cegueira um modo de “ver” o mundo material que lhe cerca e com o qual não possui nenhuma identificação. Para ele, as formas concretas limitam a expressividade, aprisionam e degradam a alma humana. Ao libertar-se das imposições da forma, na busca de uma espécie de purificação, o cego passa a emitir apenas “sons remotos” (sons de épocas distantes, busca de uma expressão primitiva, primordial?), que não correspondem a nenhuma estrutura gramatical, ou vocábulo reconhecível de sentido; são sons que não querem dizer nada, apenas dizem a si mesmos, no próprio instante em que saem da boca, “em micro explosões”, para logo em seguida esvaírem “na tela baça do cego”.

Nessa imagem do personagem que busca dominar, pelo controle do corpo (uma espécie de faquir) e libertação da voz, o mundo da matéria — as linhas, curvas, volumes, retas, cores, que dão definição e limite às coisas — é possível enxergar a imagem da própria linguagem humana também limitada e definida por seu uso, funções e convenções. No campo da literatura, essa limitação pode ser remetida ao conflito de certos escritores inquietos com a constatação de que seu material de trabalho, a linguagem, é de uso cotidiano e generalizado, detalhadamente organizado em categorias, significados e funções.

É nesse sentido que interessa a expressão “linguagem invertebrada”. Aquela que vem de um lugar primeiro, de uma comunicação ainda sem estruturas, que o cego atinge ao perder a capacidade para a linguagem humana, organizada. Aquela que, como o mensageiro sem mensagens de Cortázar, “não quer ir a ponto algum”. Interessa como termo indicador de uma busca artística. Escritores inconformados com as limitações da linguagem, impostas pelo uso cotidiano e pela tradição literária, se lançam na busca de outros estímulos e sentidos. Assim como a cegueira pode realçar o som e o gosto das coisas, anseiam por outro modo de lidar com as palavras, sentindo-as, engendrando-as e expressando-as de outra forma. Uma forma particular, que deseja o desvio, a contorção, o quebrar dos ossos (quando eles existem) da tradição de uso e costumes narrativos, em busca de um texto cuja consistência não dependa de um esqueleto recebido gentilmente da herança de um outro texto, mas que esta venha de uma solidez própria, criada por elementos de seu próprio universo. Uma forma singular, única, como o sabor de uma fruta nunca é o mesmo para duas pessoas.

Claudia Lage

Claudia Lage é escritora. Autora do romance Mundos de Eufrásia, entre outros.

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