Caminhos entre prosa e poesia

A prosa reflexiva e poética de "Ao contrário, um caminho" marca a estreia do contista Afonso Caramano
Afonso Caramano, autor de “Ao contrário, um caminho”
27/05/2016

No mercado literário atual, uma questão que parece ser ponto pacífico é a preferência dos (poucos) leitores brasileiros pelo gênero conto. Para embasar essa constatação, basta consultar qualquer lista de “mais vendidos”: mal se depara com exemplares representativos da categoria, o que suscita reflexões talvez pertinentes num mercado literário como o brasileiro onde sobejam escritores que se dedicam a esse gênero, e em média o fazem com competência.

Quem se mostra interessado na questão por certo já observou que o desejo em voga do leitor é por narrativas cujo ritmo intenso se deve a uma dramaticidade constante e progressiva; há que se aprofundar na história, aos mínimos detalhes, cada aspecto do caráter e passado dos personagens: em geral, elipses são depreciadas.

Como se vê, as demandas desse leitor se chocam frontalmente com os aspectos mais marcantes do conto moderno e que respondem pela tênue linha divisória entre a prosa e poesia desse gênero.

No entanto (e isto não só no terreno do conto, mas também nas vastas planícies do romance) as sugestões e omissões do prosador, o lirismo que atua como suplente da tessitura dramática podem, por sua própria essência, estreitar mais as distâncias entre o leitor e a ficção com seus personagens. Basta que o leitor se abra a essa experiência e, claro, que o escritor tenha a capacidade de seguir por esse caminho, vizinho à obscuridade e ao hermetismo.

Caso ilustrativo da questão estilística que aqui se reflete é o primeiro livro do gênero do paulistano Afonso Caramano, Ao contrário, um caminho.

Veredas
Nessa pequena união de histórias sintéticas e intimistas, as questões humanas como misantropia, relações familiares entre outras são condensadas e não diluídas numa prosa clara e fluente, altamente poética. Seus dramas humanos intensificam-se por dois elementos que estrategicamente envolvem o leitor, afastando-o da letargia: a elipse narrativa, que instiga quem lê a especular em torno do passado dos personagens ou da história pregressa aos dramas presentes e o foco narrativo que enleia o leitor, seja em primeira pessoa, seja em terceira, com discurso indireto livre, embora neste último, em alguns casos (em especial no conto Vigília), a alternância de vozes entre narrador e personagem tenda a desorientar a leitura.

A já mencionada linguagem, bem como o foco narrativo, também apresenta variações ao longo desses treze contos, embora mantenha um acento pessoal ligado à prosa enxuta e ao uso simbólico de imagens, num mergulho introspectivo que remete à prosa de uma Clarice Lispector.

Mas, como já dito, essa linguagem segue outros caminhos, tangenciando, inclusive, a recriação poética da fala regionalista levada a cabo por Guimarães Rosa:

Julguei por bem que se por acaso não houvesse acaso não seria de esperdiçar a casualidade do encontro, e fui encompridando a conversa. Presumir qualquer um presume, assentar sentença, porém, se deve fazer em foro apropriado.

Nessa pequena união de histórias sintéticas e intimistas, as questões humanas como misantropia, relações familiares entre outras são condensadas e não diluídas numa prosa clara e fluente, altamente poética.

Percalços
O título da obra não é escolha arbitrária de um título dos contos (no caso, o quinto) porque, considerando com bastante atenção, é de caminhos a serem tomados e suas implicações que se tratam os dramas dessas treze histórias.

Do homem que é alvejado num campo privado o qual não costumava percorrer, em Primavera rubra, à mulher que, optando por atravessar a avenida, mergulha em íntimas considerações sobre os rumos que optou por seguir na vida, entre obras-primas da pintura mundial num museu, em Encontro.

Assim, ora literais, ora alegóricos, os caminhos acabam por ser o eixo desses dramas, com uma profunda conotação existencial. Contudo, esse elemento gera não uma movimentação dramática, no sentido de uma sucessão de acontecimentos convencionais que convergem para um clímax, mas antes uma movimentação interior, introspectiva, a implicar cada um dos personagens centrais, num torvelinho onde passado e presente coexistem (por vezes, de forma estranhamente inusitada):

Comprazia-se em uma divagação infrutífera (…) — entregava-se a um movimento de raciocínio, meio enviesado, é verdade, sobrepondo camadas à realidade até transpô-la como se atravessasse um véu diáfano (…)

Descortinava em minúcias a própria história, reescrita em diferentes nuances, ora revestindo de antigas sensações fatos que nunca ocorreram, ora inventando impressões para acontecimentos passados.

É bem desse mundo interior que o livro de Afonso Caramano trata; o exterior, quando este aparece, exerce a função de leitmotiv para os dramas internos daquele.

Em Olhos verdes, a visita breve e inesperada de um antigo conhecido desperta sensações novas num casal de meia-idade, em especial na esposa. Mas a relação ambígua dela com o visitante não fica clara — fruto da elipse narrativa que não desvela o passado; resta ao leitor, do ponto de vista do narrador/esposo, especular sobre a raiz da questão.

Em Entrevero, dois viajantes em direções opostas obstruem, cada qual, o rumo do outro, num estreito caminho à boca de um despenhadeiro. As reflexões existenciais do narrador e o tom simbólico da contenda dotam o conto de um contorno mítico realmente notável.

É da solidão humana e seus desamparos que tratam O jantar e Ausência; no primeiro, um idoso divide seu lar com a família de sua filha, mas a indiferença mútua, disfarçada em excesso de zelos da filha e respeito dos netos, é o que predomina, além do latente interesse do genro pelo imóvel; no segundo, o vazio dos dias de um velho aposentado se materializa na ausência do amigo/parceiro de pesca que não mais compartilha o exercício que em si é a metáfora da vida: a pesca do peixe que, tão logo capturado, será devolvido ao mar. Portanto, uma atividade metódica, mas sem uma finalidade que a justifique.

É a mesma sensação que emerge de Ao mar, palavras, embora de forma enviesada: num porto sitiado pelo mal tempo, um casal se debate entre ressentimentos passados que o leitor apenas entrevê e a esperança quase extinta no ritual que ali os trouxe, e que visa reaver de alguma forma o filho ausente de ambos: em pleno mar, numa confluência de correntes marítimas, lançar garrafas com mensagens. Aqui, a mesma sensação de vazio, o mesmo viver sem a bússola que norteie a um sentido redentor para o espírito.

Nessas como em outras histórias, Afonso Caramano observa as implicações das escolhas individuais, e embora o desalento seja o saldo dessa prosa imersiva, a beleza por vezes plástica de sua poética surge como um alento:

Somente um dos cavaleiros seguiu pela trilha e chegou do outro lado. Provavelmente tenha vislumbrado os últimos resquícios sanguíneos do poente no horizonte contrário.

É nessa confluência de habilidades usadas em geral com competência que reside o motivo, mesmo ao categórico amante de romances, para se ler Ao contrário, um caminho. Mesmo porque não raras as vezes que a extensão dilui o que aqui, em forma breve, se adensa: o ser humano e seu drama.

Ao contrário, um caminho
Afonso Caramano
11 Editora
109 págs.
Afonso Caramano
Nasceu em Jaú (SP), em maio de 1969. Formado em letras pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Jaú, destacou-se em diversos concursos literários (8º Prêmio UFF de Literatura, Concurso Cultural Conte o Conto Sem Aumentar um Ponto, pela Academia Brasileira de Letras, Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto). Ao contrário, um caminho é seu livro de estreia.
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

Rascunho