Caldeirão de sarcasmo

Márcia Denser torna natural o ingresso num mundo que a maioria dos mortais consideraria no mínimo assombroso
Márcia Denser: sarcasmo e ferina e aguda ironia
01/03/2004

“Há uma escritora brasileira que sabe escrever. Se chama Márcia Denser.” A afirmação do inesquecível, inesgotável, insubstituível Paulo Francis encerra uma série de depoimentos transcritos na contracapa de Diana caçadora e Tango fantasma, relançamento de duas coletâneas publicadas original e respectivamente em 1986, pela Editora Global, e em 1977, pela Editora Alfa-Ômega. “Tem uma linguagem límpida, sem retoques”, prossegue Francis na resenha de onde o trecho foi extraído, “bem diversa desse pseudo-romantismo retórico que caracteriza boa parte da nossa ficção. Denser situa-se entre os raros criadores de linguagem, aqueles que têm algo de muito novo a dizer. Quanto aos outros, resta-lhes a rabeira da História.” As demais loas da contracapa vêm de personalidades literárias do quilate de Marcos Rey, Wilson Martins, Carlos Graieb, Rubem Fonseca, Ignácio de Loyola Brandão e Caio Fernando Abreu (a quem Márcia deve a alcunha de “musa dark da literatura brasileira”). Nas páginas finais do volume, novos elogios ajudam a engrossar as fileiras de admiradores: Bernardo Carvalho, Nelson de Oliveira, Nelly Novaes Coelho, Ítalo Moriconi, entre vários outros. A apresentação vem pelas mãos de Bernardo Ajzenberg, a orelha, por Marcelo Mirisola. Ou seja, gente de vasta leitura, estudo e escrita enaltece, sempre com veemência, as virtudes da “paulistana de quatro gerações” recém-chegada aos 50 anos, escritora desde os 23 (quando publicou o primeiro livro), jornalista, publicitária, editora, mestre em Literatura e Semiótica, pesquisadora de literatura brasileira contemporânea, com obras traduzidas e publicadas na Alemanha, Suíça, Holanda e Estados Unidos, e que — é claro — acabou ficando conhecida, desde os anos 80, como a escritora favorita de Paulo Francis.

Diante de um currículo de tal envergadura, o leitor desavisado sente nas costas o peso das referências todas e começa a explorar Diana caçadora e Tango fantasma pisando em ovos: o que, afinal, pode haver na prosa de “uma das escritoras mais impiedosas da literatura brasileira” (Carlos Graieb), “bêbada, drogada, trêmula de ressaca e tesão” (Caio Fernando Abreu), “barra-pesada, caldeirão MD” (Bernardo Ajzenberg) para que ela mereça tantos afagos?

Quase uma década separam as duas coletâneas, unidas agora numa oportuna e necessária reedição. O projeto gráfico tem a mesma qualidade dos demais lançamentos da coleção Lê Prosa, do qual faz parte, sem luxos, mas com sobriedade e bom gosto. Provando a suave textura da capa, que leva as assinaturas de Nelson de Oliveira e Tereza Yamashita, e ali contemplando o belo close de uma rosa vermelha, molhada, na sugestão de um redemoinho, o leitor não se engana ao pensar que talvez o mais impactante tenha sido reservado para o texto. Bastam alguns poucos parágrafos para ele descobrir que, mesmo se o livro tivesse saído de um mimeógrafo, ainda assim restaria impactante.

São várias as possibilidades de abordagem do texto literário. Qualquer uma que se propuser à isenção opinativa do resenhista vai privilegiar os aspectos técnicos relativos ao gênero, à linguagem, à temática e sua oportunidade. Vai buscar analogias com outros trabalhos, dentro ou mesmo fora da literatura. Vai, em suma, procurar o enquadramento da obra apresentada em algum modelo que o leitor possa reconhecer e, dessa forma, facilitar a comunicação. Se for essa a escolha, o resenhista encontrará a primeira dificuldade já no conto de abertura, Welcome to Diana. É o mais longo da coletânea — 52 páginas, o que equivale a aproximadamente 1/6 de todo o livro: uma enormidade —, possui mais do que um só conflito, estrutura-se de forma um tanto caótica e parece ter como objetivo tão-somente apresentar a personagem que dá título à obra e que protagonizará os demais contos dessa primeira parte, sem que aparentemente ela sofra qualquer transformação no decorrer da trama. Ou seja, ele desafia pressupostos muito caros ao gênero. Talvez pudesse funcionar melhor como o início de um romance, mas vem classificado como conto e é assim, por conseguinte, que se deve lê-lo. Afinal, já ficou estabelecido que, hoje em dia, conto será tudo aquilo que o autor quiser que seja conto, embora o leitor não esteja necessariamente obrigado a aceitar essa convenção. Contudo, antes que ele prove um arrepio pelas transgressões à forma, descobrirá exatamente o que Paulo Francis quis dizer ao afirmar que Márcia Denser é um dos “raros criadores de linguagem”. Referir que a autora é desbocada, irreverente e outros adjetivos tão modernosos quanto vazios é desprezar o “metal puro” de que fala (de novo ele) Caio Fernando Abreu.

Diana Marini, a caçadora, por muitos considerada o alter ego de Márcia Denser, é a personagem que qualquer autor gostaria de ter talhado. Sobrevive ao dia para viver a noite de uma desvairada São Paulo de luzes, bebida, cigarro, droga, música, sexo, muito sexo, peremptoriamente descartável sexo, barulho, fumaça, tensão, tesão. O “caldeirão” a que se refere Ajzenberg é mais que o fruto, senão o próprio ambiente mesmerizante de onde ela emerge, paradoxo de frenética agitação e vacuidade. A frustração é o elemento perene de todos os relatos, mas jamais o que poderia ser um foco de intermináveis lamúrias descamba para a autocomiseração. É no sarcasmo, na ferina e aguda ironia que Márcia Denser resolve literariamente esses conflitos. Em grande parte, porque a narradora é o alvo primeiro de sua própria verve irônica. Além disso, por mais desprevenido que esteja o leitor, ele não se choca, nem se escandaliza, tampouco sofre nas mãos da personagem. Ele acaba rindo da miséria toda, e com tal naturalidade que é capaz de se perguntar, ao final da leitura, como isso foi possível. Eis aí a grande virtude da estética de Márcia Denser: tornar natural para o leitor o ingresso num mundo que a maioria dos mortais consideraria no mínimo assombroso.

O discurso é paradoxal: ao tempo em que assume a crueza de uma linguagem compatível com a personalidade da narradora — em outras palavras, um léxico “sem retoques” e por vezes chulo —, ela tem ritmo, sonoridade e equilíbrio estético impressionantes. A autora é eficiente em evitar ecos, repetições, cacofonias e demais ruídos que contaminam a boa prosa, seja por obra de um trabalho meticuloso de escrita, seja por intuição pura, seja ainda pela soma de ambas as coisas. O ritmo é sempre rápido, rascante, um carro em alta velocidade varando a madrugada luminosa da Avenida Paulista, deixando para trás o luxo dos hotéis dos Jardins em busca do motel, da pensão, do quarto dos fundos. A bebedeira, que começa no elitizado salão ou no boteco da Alameda Santos, é vomitada num banheiro tão desconhecido para Diana quanto o inquilino do apartamento a que pertence. O ritmo, em resumo, está totalmente afinado com a estrutura narrativa.

Depois do tropeço formal do primeiro conto — já devidamente anistiado —, o leitor vai descobrir nos demais que Márcia Denser conhece, e muito bem, o gênero a que se propõe. As situações se repetem, mas em novas e sempre atrevidas nuanças. Ou seja, cada nova história, mesmo que em torno de uma única e excêntrica personagem, vem para desvendar uma face ainda obscura ou secreta. Mas funcionam igualmente bem como peças isoladas.

Na apresentação, Ajzenberg chama a atenção para um trecho pinçado do conto Relatório final e iluminador do ideal estético da escritora. É inevitável repeti-lo aqui:

“E tudo isso quer dizer literatura: a requintada crueldade de poder observar atentamente as próprias vísceras expostas refletidas no espelho e imaginando não ser as nossas, como se este refletisse toda humanidade agora — a desumanidade estará dentro de nós, como o olho cego da câmera fotográfica, as lâminas frias da cortina que fecha e abre a objetiva, o vidro da lente, inopinadamente a sangrar, a sangrar, amigos, a sangrar, o fluxo maldito chamado literatura, a sangrar…”

Leia e releia, prezado leitor, o que foi transcrito acima: a essência de 300 páginas expressa numa única frase — magistral —, onde também encontramos — será muito arriscado afirmar? — a mais bela e precisa definição de literatura que um escritor jamais cunhou. (Quem usa o próprio estômago para atingir o do leitor provavelmente não encontrará nenhum exagero na afirmação.) Aliás, o amor que Márcia Denser tem pela literatura transborda do início ao fim do livro, sob forma de inúmeras referências a obras e autores, e na mesma constância com que ela registra seu profundo desprezo por tudo que for raso, frouxo, perecível, supérfluo, fútil, inútil. Como o descrito no conto Tigresa:

“Lá em cima, sob o céu mais alto da Avenida Paulista, encontramos uma superprodução de gente em cores. A Terrazza envidraçada pareceria, para um observador colocado num prédio próximo, um carregamento de confeitos coloridos embalados em papel celofane, nas diversas cores e sabores artificiais de produtores de moda, produtoras, senhores, senhoras, reprodutores de foda, diretores de arte, subdiretores de arte, assistentes de arte, arte-finalistas e todos artistas, é lógico.”

Também são importantes os diálogos com o cinema — principalmente o europeu — e com a música popular brasileira.

Já os contos de Tango fantasma, embora originalmente publicados nove anos antes, vêm agora na seqüência de Diana caçadora. Eles são um pouco mais ousados em concepção e forma, têm um ímpeto, um frescor de novidade boa que os mantém absolutamente atuais, a despeito de terem nascido sob o signo dos anos 70, o mais pródigo em datar a produção artística. Não é esse o caso. Nem mesmo a ambientação e as referências — poucas, é bem verdade — ao governo militar conseguiram miná-lo com suas indeléveis marcas. Novamente Márcia Denser vale-se de uma personagem recorrente, Madalena, que aparece em quase todas as histórias. A crueldade sutil da narradora ao alfinetar seus coadjuvantes em Diana caçadora, ganha aqui maior estatura. As bonecas deixa isso evidente no tratamento dispensado por Madalena à tia submissa e histérica, que afoga os ardores sexuais em água fervente — uma das poucas passagens do livro que pode render algum mal-estar para o leitor.

Avessa à ortodoxia, como já se viu, é justamente nela que Márcia Denser produz o melhor conto de todo o volume, O homem de Cascavel. Impossível resumi-lo sem tirar dele a essência, toda ela baseada num subtexto de rico e sutilíssimo tramado. A linguagem, impecável como sempre, dessa vez veste-se de inusitada delicadeza para descrever, de forma antológica, um ato sexual que termina assim:

“Em queda mortal, sumidouro de luta no escuro, o desejo tricotou-lhes os corpos como elásticos, tramando magníficos desenhos e, como elásticos, bruscamente desfeitos, assim que os abandonou. Devolvidos à superfície, boiavam frouxos, superpostos unicamente ao ondular da mesma vaga de sono e cansaço.”

Fato sobejamente comprovado pelo excerto acima, a poesia também visita a prosa de Márcia Denser, e com a intimidade de quem parece nunca ter saído de perto.

Reparos? Infelizmente, sim. Um detalhe, que costuma ser insignificante a ponto de poucas vezes o resenhista ter de se ocupar dele, ganha aqui uma irritante e constrangedora relevância. Não se cogita exigir que o escritor seja perfeito. Só quem escreve sabe avaliar o quão insidiosas são as armadilhas do processo, desde as postas pelo próprio idioma àquelas decorrentes da distração ou mesmo do desconhecimento de algum pormenor sobre o qual se fala. Para ser escritor não é necessário guardar na cabeça um dicionário, uma gramática completa, muito menos uma enciclopédia. Justamente para evitar constrangimentos ao escritor e a sua editora, torna-se tão importante o trabalho de revisão. Em Diana caçadora e Tango fantasma tem-se a impressão que o revisor não reconheceu a importância da atribuição que lhe foi dada, permitindo que fossem publicados erros grotescos de ortografia, pontuação, acentuação de algumas palavras e até mesmo de separação silábica. Alguns exemplos: “implica em”, “pode” (pretérito perfeito sem o necessário circunflexo), “estória”, “aplaudí-la” (com o acento irregular), “sul” (com inicial minúscula, mas referindo-se à região). As falhas na pontuação e a repetida falta da cedilha em “Graças” chega a tornar risível um dos diálogos do belo conto Ladies First.

Por outro lado, parece inexistir uma única citação corretamente transcrita ao longo de todo o livro, desde a epígrafe de O animal dos motéis, extraída da canção Desabafo de Roberto Carlos, aos versos de Tigresa de Caetano Veloso, passando pelos do manjadíssimo bolero Tu me acostumbrastes. Nem o trecho escolhido por Bernardo Ajzenberg e repetido nesta matéria escapou ileso: foi citado como pertencente ao conto Tigresa, quando de fato provém do já referido Relatório final.

Tais ocorrências atrapalham a fruição para um leitor atento. Desleixo puro e simples, incompatível com a magnitude da obra e a importância de seu relançamento. Mas a tiragem modesta — 1.000 exemplares — e o fato de que o livro deverá certamente despertar grande interesse entre os sedentos de boa literatura levam a crer que os problemas levantados serão prontamente corrigidos nas edições futuras.

Para o futuro também se projetam as esperanças de novos lançamentos dessa voz que já não tem mais o direito de silenciar, tão grande o papel que conquistou e que hoje é obrigada a desempenhar em nossa literatura. Paulo Francis já se foi, mas deixou, dentre outros legados, uma escolha enfática e muito bem-feita. Como uma bússola, ela deverá nos apontar — e por um bom tempo ainda — a dianteira desta História.

Diana caçadora
Tango fantasma
Márcia Denser
Ateliê Editorial
312 págs.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

Rascunho