A ditadura militar tornou-se uma das temáticas principais da produção literária brasileira nos últimos anos. Obras de B. Kucinski, Adriana Lisboa, Tatiana Salem Levy, Claudia Lage, Micheliny Verunschk, Milton Hatoum, entre tantos outros, reelaboram o trauma e rompem com o silêncio instaurado sobre o período desde a redemocratização. De encontro à acusação de que discutir a ditadura é remoer o passado, autores contemporâneos demonstram que escavar a memória e narrar o horror são modos de evitar que o passado se torne prólogo.
Com seu romance de estreia, Os dias, Waldomiro J. Silva Filho se soma ao esforço atual de lidar com a memória da ditadura. Situada entre Salvador e Colônia, Alemanha, a narrativa fita os escombros de diferentes tragédias para pensar aquilo que as une. No livro, a figuração da reconstrução da cidade destruída por bombardeios na Segunda Grande Guerra e o processo de redemocratização do Brasil mostram como acobertar ruínas em busca de apaziguamento pode ser mais um ato de violência.
Espetáculo de brutalidade
O depoimento de um coronel à Comissão Nacional da Verdade serve de pivô para o narrador de Os dias enfrentar o passado. Exilado em Colônia quando adolescente, após o desaparecimento dos pais, o personagem vê na figura do militar o responsável pela destruição de sua família. A impenitência do coronel — “Eu não me envergonho de ter feito o que tinha de ser feito, de ter feito o que precisava ser feito, de ter feito o que muitos se mijavam de medo de fazer.” — leva o personagem a mergulhar em seu passado nas ruas de Salvador e de Colônia. A não linearidade narrativa figura a confusão dessas memórias. Quatro dos cinco capítulos têm como título datas específicas — daí advém o nome da obra — e saltam entre passado e presente, entre Salvador e Colônia, entre o antes e o depois do desaparecimento dos pais.
Observo os prédios, as ruas e já sei que tudo que me cerca foi levantado sobre uma cidade que desabou pelos golpes certeiros das bombas que, para redimir a perversão alemã, caíram, bentas, do céu. Isso explicaria o silêncio obsequioso das pessoas, sua alegria pálida: a culpa. Onde estão as ruínas de Colônia? Onde estão as pessoas misturadas à lama, nadando no esgoto, partilhando a vida com ratos? Eu sei, a calamidade está em todos os cantos, sob o asfalto, por baixo dos prédios de um modernismo duvidoso, atrás das paredes do metrô, sob o tapete verde dos parques, tudo verniz sobre os escombros, tudo está soterrado sob a assepsia, a higiene, a limpeza, tudo protegido pelo perfume […], a cordialidade ofensiva.
As ruínas acobertadas de Colônia é metáfora para o silenciamento da memória. Toda a tragédia da Segunda Grande Guerra está sob o verniz da cidade polida. Nesse sentido, o ato de caminhar é significativo na narrativa. O protagonista perambula pelas ruas de Colônia, apresentando ao leitor um espaço estranhamente sem escombros. Bombardeada na guerra, a cidade não aparenta ter cicatrizes da destruição. Contudo, soterrar a memória não é modo eficaz de lidar com o passado e por baixo da polidez pulsa todo o trauma. Aqui, a aproximação feita por Silva Filho entre Alemanha e Brasil é perspicaz. Ao representar o apagamento da guerra no espaço de Colônia, o autor lança luz sobre a indecente tentativa de aplacar a memória da ditadura militar.
Colônia e Salvador são marcadas pela calamidade. Título de livro publicado por Silva Filho em 2022, calamidade é conceito caro ao autor. No ensaio, o escritor baiano discute como a civilização humana e a busca por progresso geram profunda dor e sofrimento. Em Os dias, ele retoma a ideia e a tematiza a partir da ficção. No romance, a brutalidade da Segunda Grande Guerra e da ditadura militar exemplifica a calamidade civilizatória, mas há também outra camada: a espantosa capacidade humana de banalizar o sofrimento alheio.
“A guerra interrompe tudo, afeta os negócios, cancela as partidas de futebol, os bailes de formatura, o Natal, as compras de Natal. A calamidade, não.” A dor está por todas as partes, ignorada. O sofrimento do outro pouco incomoda quando é facilmente acobertado. Para muitos a vida seguiu tranquilamente na ditadura enquanto corpos eram torturados e esquartejados nos porões. Algumas famílias viviam enlutadas e outras agiam como se a sociedade não estivesse acometida pela barbárie. Hoje, insiste-se no mesmo erro.
Ao recorrer à Segunda Grande Guerra e à ditadura, Silva Filho também aborda a calamidade brasileira contemporânea. A intertextualidade no livro, principalmente com a obra de Clarice Lispector, auxilia nesse trabalho. Referências diretas a Mineirinho, em especial o paralelo entre a crônica e a morte de crianças negras no romance, revela a expansividade da violência do Estado brasileiro. A figuração de Alagados, por sua vez, sublinha como tal violência não é só física. A fome e a miséria também compõem a barbárie.
No entanto, todo este sofrimento gera pouca comoção. Assim como o coronel responde às perguntas sobre a ditadura com apatia, a sociedade brasileira é indiferente aos assassinatos de crianças negras e à fome dos mais pobres. Desse modo, o protagonista parte em busca da própria justiça. A exemplo de outros romances recentes, tais como O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk, e Tinta branca, de Alexandre Alliatti, Os dias preza pelo acerto de contas. A narrativa parece defender que é necessário enfrentar o passado e ter justiça para o futuro ser construído.
A opinião de que a ditadura está no passado é corriqueira, expressada recentemente até mesmo pelo presidente da República. A literatura sobre o período, entretanto, expõe a falácia do posicionamento. Não há como entender o Brasil contemporâneo sem pensar o legado da ditadura militar. Para vislumbrar um futuro melhor urge pensar as feridas do passado. Afinal, não se faz união e reconstrução a partir do silenciamento.