Um romance de formação como acenam alguns leitores? Não, não. Em Os tais caquinhos, de Natércia Pontes, não há como acompanhar um processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico ou social da protagonista. Não há progressão da subjetividade diante de vicissitudes e experiências e, menos ainda, não se veem caminhos da protagonista em direção à maturidade.
Hoje, alguns romances sobre adolescentes (vejam-se os excessos em Elena Ferrante) de alguma maneira parecem investir-se em releituras do Bildungsroman alemão. A crítica apressada evoca tal definição, e o leitor, resignado, sente-se impelido a simpatizar com a heroína. Alguns desses romances acabam tirando da sombra memórias biográficas das autoras, encaminhando-as à autoficção. Se for esse o projeto aqui, me parece longe da realização. Não há caminhos, e tudo se perde no simples relato (telling) da narradora. E a construção da frase nada ousa em nome do que se quer narrar (enumerações e repetições não são traços eficientes de estilo).
Abigail vive com o pai e Berta, a irmã, também adolescente, no apartamento 402 de um prédio qualquer do Rio, abarrotado de caixas e sujeira. Esse lar, importante protagonista, acaba por se sobrepor aos habitantes da casa e poderia alterar percepções. Entretanto, nenhum dos três moradores parece discernir, na desordem escatológica da casa, um estímulo para a busca da própria identidade. Se a casa impusesse seu torpor imundo, e cada um fosse instado a buscar quem é, o romance alcançaria um status interessante.
O pai, às vezes ausente, às vezes bêbado, às vezes semidespido, dorme entre caixas. Berta, sempre que possível, foge para a reluzente casa da amiga rica. A narradora, que apenas descreve esse ambiente repugnante e devastador, pouco questiona sobre a vontade e a vida. Narrando em primeira pessoa clássica, da sua puberdade à gravidez, dela espera o leitor que desperte para um sentimento, talvez profuso, da maternidade. Não: um aborto espontâneo faz tudo voltar ao ramerrão e imundície da vida.
Meus peitos tinham crescido com os hormônios da gravidez e agora murchavam como balões em fim de festa. Me dei conta que durante todo esse tempo não tinha me atrevido a pensar por um segundo em pôr o bebê em meus braços. Escrevera tão somente uma lista de possíveis nomes no meu caderno espiralado.
Um dos incômodos sobre Abigail é vê-la adolescente (com cadernos espiralados) e, ao mesmo tempo, uma mulher experiente, usuária de drogas (que conhece todos os motéis da cidade). Não me parece intencional, é vago. Até marcas geracionais se atrapalham: usa Modess dos anos 1960, mas fala em “absorventes internos” — entre tantos outros registros. A verossimilhança quanto ao perfil da personagem fica assim comprometida.
Nem a inserção das fantasias da jovem, nem certas digressões dirigem a narrativa a um desfecho que justifique este relato da narradora. Conta por contar? Por que no passado, mas às vezes no presente? Lembra por lembrar? Terá superado a imundície e a tristeza a ponto de escrever? Nem ao final da obra, quando os três mudam para um apartamento limpo (ao menos por enquanto), a narrativa diz a que veio. Pai e filhas, juntos, acomodam-se à continuidade de tudo.
Naquele ano repetimos de série e Lúcio trocou de trabalho. Mudamos também para um apartamento limpo onde Lúcio começava a acumular coisas sorrateiramente. (Os cabos soltos no canto da sala serão úteis um dia.)
E juntos vão ao cinema assistir a um documentário sobre a vida dos insetos. Como nenhuma interpretação pode nem deve melhorar o texto a que se dirige, ficamos num limbo, suspensos. E a pergunta segue: a que vem este romance?
O pai
Lúcio, que a narradora registra pelo nome próprio, é um personagem sombrio e vacilante — triste, mas amoroso; deprimido, mas com alegrias passageiras. Foi abandonado pela mulher, que levou consigo outras duas filhas. De uma família de seis, sobraram só estes três soterrados pela moléstia paterna dos acumuladores. Dele só sabemos isto. Sua ocupação é misteriosa: trabalha, mas não trabalha. E quando há muita fome, as vizinhas oferecem ovos às meninas, ou Lúcio as leva a restaurantes finos para aquela fome específica. Claramente amado pela narradora, é preservado de todas as críticas e descrito com afagos e um leve erotismo:
Então seguia avançando para a região das gavetas, onde poderia com silêncio e cuidado alcançar uma cueca e vesti-la, ainda sentado, até quando pudesse, espichando os músculos com maestria e graça (…). Então o vento soprava forte e vencia as frestas de nossas janelas sujas trazendo para dentro do meu quarto o cheiro do sabonete de Lúcio, os barulhos de Lúcio e a alegria de Lúcio.
Talvez fosse o personagem mais interessante. Talvez, se a autora investisse nesse pai, se saberia a que vem o romance e se expõe essa família. De uma ambientação quase onírica do apartamento, nós, leitores, teremos mesmo é que vagar pelo realismo pungente dos moradores e seus corpos.
O embrião media dezesseis milímetros em seu comprimento cabeça-nádegas. (…) Meu pai estava ali ao meu lado (…) podia sentir sua presença montanhosa, o olhar vigilante, perscrutando cada momento meu (…). Perguntei sem medo, doutor, como eram os olhos do meu filho? E mesmo que dias depois e pelo resto da vida Lúcio tivesse negado tenazmente que esse diálogo ocorrera, o médico respondeu, já de saída (…): viscosos e inexpressivos como os de um gafanhoto, Abigail.
Foco narrativo
Talvez haja aqui frágil escolha de ponto de vista: em terceira pessoa onisciente, o foco resolveria melhor o romance, atribuindo ao narrador a construção dos personagens — que poderiam crescer. Tal como está, nos obriga a ler a vida pelos olhos da protagonista, que tampouco vê a si mesma. Há até cenas inverossímeis, que a narradora descreve sem ter a onisciência necessária para as ter presenciado. Por exemplo, enquanto estava no quarto, afirma:
Aramis pegou carona no mesmo elevador, batucando um solo de bateira do Sepultura nas próprias coxas e respirando pela boca, até que o elevador sacudisse nos solavancos do primeiro andar.
Escatologia
A escatologia é a mais insistente marca deste romance: insetos asquerosos, cheiros fétidos, sangue, menstruação, aborto, feridas cutucadas. Desde a primeira página, o corpo de Abigail é o lugar da repugnância; as amigas, como numa alegre disputa, vão tirando cera de seus ouvidos:
Mas não é possível, não acaba nunca — e exibiam exultantes as pontas dos cotonetes encharcadas de uma pasta escura e gordurosa.
Enquanto Lúcio cavoucava uma ferida antiga (resultado da caspa que tomava seu couro cabeludo) (…) desfrutando de uma prática engenhosa, comprazendo-se em arrancar do edema uma lasca muito fina não muito morta, que agora transpirava pálidas gotículas de linfa.
A que vêm tantas reproduções? Claro que não é para chocar um leitor sensível e fazê-lo aderir por contraste. Claro que a autora não pretende associar tais relatos e excrementos à teologia cristã e ao Apocalipse. Nem se refere somente ao feminino, com seu sangue menstrual e outros fluidos. Poderia, ao contrário, ser uma grande alegoria existencial num romance contemporâneo. Quanto a ovos:
As lâminas das cascas não ferem a palma da mão de Lúcio. Ele está determinado, com os nervos dormentes. A gosma cinza invade os gargalos entre os cinco dedos do meu pai. Grumos de um rosa pálido, carnes malformadas, fragmentos de tecido acastanhada, trambolhos imersos em muco e sangue, inúteis, incapazes de formar vida. Lixo. A poça viscosa escorre sobre a mesa.
O visceral, o sangue, o útero e o corpo (feminino) são estratégias reinventadas ao se narrarem mulheres, sobretudo no feminismo renovado entre boas escritoras brasileiras — algumas com obras muito fortes, como Sheyla Smanioto, Veronica Stigger ou Andréa Del Fuego, com seu recente romance A pediatra.
Neste livro de Natércia Pontes nem a escatologia nem outras estratégias alcançam força narrativa. Lamentavelmente soam como gratuidades. Saímos do apartamento 402 como entramos, despreparados para responder: o que mesmo este romance quis dizer?