A caixa aberta por Ana Paula Pacheco em Pandora é ainda mais ampla e difusa que a da mitologia grega. Abarca o cotidiano e o fantástico em um só tempo-espaço, numa narrativa em que o caos é utilizado como representante da potência e da assertividade.
O livro da autora de A casa deles e Ponha-se no seu lugar! é um excelente exemplo do quanto o romance experimental exige planejamento, técnica e uma justificativa para ser o que é. Não por acaso, a obra já demonstra ser provocativa e sedutora no parágrafo de abertura e assim permanece até o epílogo.
No enredo, uma professora universitária enfrenta o confinamento da pandemia de covid-19 ao mesmo tempo em que lida com relações amorosas mal-resolvidas e a difícil missão de preparar o programa de uma disciplina que ministrará na universidade, dessa vez à distância.
Os acontecimentos ganham desdobramentos inusitados e têm como guia uma narradora com contradições, pensamentos acelerados e questões relevantes que finge ignorar. Em outras palavras, Ana Paula Pacheco acerta ao colocar na protagonista (também chamada Ana) uma humanidade tão verossímil que só poderia existir na ficção.
A personagem é capaz de perder o foco em seus pensamentos com a mesma facilidade com que elabora frases nada convencionais, como “um miligrama de alumínio é igual a um miligrama de esquecimento”. Também por isso, a narrativa parece não oscilar entre altos e baixos, uma vez que nesse divertido enredo até as atividades cotidianas ganham um papel relevante.
Parte do mérito está na capacidade da autora de explorar diversas estruturas narrativas sem prejudicar o andamento da história. Existem, por exemplo, alguns textos indicados pela protagonista para discussão em sala de aula, seguidos por perguntas longas, esnobes e repletas de terminologias usuais no ambiente acadêmico e, não raro, nas questões levantadas pela plateia em eventos literários.
Esse humor refinado acompanha todo o romance, por meio de sátiras, acidez e ironia, como no momento em que a protagonista — na tentativa de escapar do tédio ou de se mostrar proativa — propõe a realização de uma oficina literária em uma ocupação, em meio ao contexto da pandemia, quando a principal preocupação dos moradores do local era ter comida no prato no dia seguinte.
A pandemia, aliás, é abordada de maneira ampla e crítica, ao passar por questões que vão das inseguranças vivenciadas pelos mais pobres e a gestão desastrosa do ex-presidente Jair Bolsonaro até a dificuldade de professores e estudantes se adaptarem às aulas on-line.
Ao discorrer sobre cada um desses temas, a narradora foge de eufemismos e apresenta pensamentos que, por mais bem-humorados que sejam, provocam uma sensação de que tudo que se refere a Bolsonaro é horrendo demais para realmente ter acontecido, ainda que o tenha.
Os animais
Ao mesmo tempo em que há um plano de fundo bastante realista estabelecido pela pandemia, a narrativa caminha com naturalidade no universo do fantástico. Dos três relacionamentos contados pela protagonista, dois são com animais: um pangolim e um morcego. Em ambos os casos, Ana descreve as características físicas e psicológicas de seus ex-maridos e até revela detalhes sobre o desempenho sexual de cada um.
O gato Felício também ocupa papel de destaque entre os personagens, ao servir de conforto em alguns momentos para, logo depois, desencadear paranoias e estabelecer uma relação de poder e manipulação. Já no capítulo escrito em forma de diário, uma águia relata suas preocupações estéticas ao arrancar o próprio bico e as penas.
Em todos os casos, os animais se parecem tanto com as pessoas que não geram qualquer tipo de estranheza. Pelo contrário, funcionam muito bem enquanto representantes da humanidade, com seus receios e suas arbitrariedades.
Descobertas
O outro relacionamento de Ana é sua primeira experiência com outra mulher, vivenciada com Alice, uma das moradoras da ocupação. A relação passa pela descoberta sexual, o abismo social existente entre ambas e um empreendimento bastante questionável em que se tornaram sócias.
Nesse capítulo, o sexo — já presente em outros trechos do livro — ganha novas nuances, como se a personagem buscasse explorar melhor a sua sexualidade para entender, enfim, o que a excita.
Mas não é apenas no campo sexual que Ana faz descobertas importantes sobre si mesma ao longo da narrativa. A escolha de colocar seu cargo público em risco para participar de uma atividade profissional vista como antiética e a dificuldade em elaborar o programa de suas aulas indicam o provável descontentamento com seu trabalho como professora, especialmente no que se refere às burocracias que parecem ter se intensificado no período pandêmico.
Experimental
Diante disso, a escolha da autora por um romance experimental ganha ainda mais sentido, pois reforça o desejo da protagonista de se desprender de amarras e de fórmulas prontas. Não por acaso, cada elemento no texto surge com naturalidade e desempenha um papel importante, desde as referências a mitos gregos até o divertido retrospecto de personagens vampiros no cinema, a partir de Nosferatu (1922).
É o escritor Marcelino Freire quem costuma dizer que adivinhar a próxima frase num grande livro está entre as tarefas mais difíceis — e em Pandora, isso fica evidente. Ana Paula Pacheco entrega uma narrativa que subverte, surpreende e arranca risadas sem deixar de evidenciar os perigos do cotidiano brasileiro. Seu novo romance, além de convidativo e bem escrito, é um exercício literário dos mais interessantes e urgentes da nova literatura brasileira.