Cais e raízes

Memórias de Tash Aw revelam a trajetória de uma família chinesa na Malásia e as marcas da desigualdade étnica
Tash Aw, autor de “Estranhos no cais” Foto: Tara Sosrowardoyo
01/10/2025

Tash Aw é um dos escritores malásios de língua inglesa mais conhecidos da atualidade. No Brasil, acaba de ser lançado Estranhos no cais, autobiografia centrada na infância e na juventude do autor. Antes de mais nada, é importante saber que o escritor, como 23% da população da Malásia, é de origem chinesa. Um dos temas do livro é a interação entre os três grupos étnicos — malaio, chinês e indiano — cuja distinção é oficial no país.

A imigração chinesa, ao longo do século 19 e na primeira metade do século 20, para os territórios que eram então colônias britânicas da Península Malaia e de Singapura, é uma história de superação da extrema pobreza. Os imigrantes chegavam e passavam a viver em condições insalubres, dedicando-se a trabalhos fisicamente árduos, com enorme dificuldade financeira.

Fortunas surgiram, porém, já no século 19. Existe em George Town, capital da ilha de Penang, uma célebre casa, a “mansão azul”, ou “mansão de Cheong Fatt Tze”, do nome de seu proprietário original, nascido em 1840 e falecido em 1916. A trajetória de Cheong Fatt Tze levou-o, pelo trabalho no comércio, a um nível de riqueza tão impressionante que ele era conhecido como “o Rockefeller do Oriente”. Sua casa é hoje um hotel e serviu de cenário, no cinema, para Indochina (1992) e Podres de ricos (2018). Se você assistiu a esse último filme, lembrará do jogo de mahjong entre as futuras sogra e nora. A cena foi filmada no pátio da “mansão azul”.

O que Estranhos no cais nos mostra não são, como em Podres de ricos, os excessos dos bilionários de origem chinesa na Malásia ou em Singapura. O livro descreve a criação, a partir da segunda metade do século 20, da classe média urbana malaia e o que significa crescer como membro de uma etnia minoritária. Desde a década de 1970, existem no país políticas de ação afirmativa cujos principais beneficiários são os malaios, maioria (63%) da população.

A aventura familiar começa no interior. Os avós “viviam ambos no campo, às margens de rios amplos e barrentos”. Um deles mantinha uma venda, o outro era professor em uma aldeia. Ambos chegaram à Península Malaia na adolescência, tendo partido do sul da China, na década de 1920, para fugir de um país “devastado pela fome e pela guerra civil”. Não viveriam o suficiente para ver a pátria original “tornar-se a fábrica do mundo, o maior consumidor de bens de luxo e a segunda economia mundial”.

Aportam em Singapura, sem saber para onde ir. Estrangeiros perdidos no píer.

Desenvolvimento
Sobre sua experiência em uma escola pública malaia na década de 1980, o escritor nos conta que os alunos estavam ali como “parte de um processo de formação da nação, porque nossos pais acreditavam em um projeto comum de construção do ‘eu’, da sociedade, do país”. São todos eles “filhos dos que passaram privações, nascidos em um país que nunca antes produzira uma burguesia”. Tash Aw pertence à geração que testemunhou o desenvolvimento industrial da Malásia, que a leva hoje, quatro décadas depois, à beira de se tornar um país de renda alta.

Um capítulo detém-se, de maneira afetuosa, na figura de uma das avós, na verdade madrasta de sua mãe. Nascida em uma aldeia na selva malaia, em uma família sem recursos, algumas realidades cedo se impuseram sobre ela: nunca frequentaria uma escola, começaria a trabalhar ainda muito jovem e teria de se casar com o primeiro homem adequado que se apresentasse. Essa avó nunca se mudou para uma cidade grande; viúva, continuou a cuidar da venda do marido.

Um dos objetivos de Tash Aw é apontar, como Annie Ernaux, a distância cultural criada, dentro de uma família, entre as gerações mais velhas, ou colaterais que não puderam estudar, e os membros mais jovens e urbanizados. Ir de Kuala Lumpur à aldeia, para visitar parentes, significa “esconder os livros de Faulkner e Steinbeck” que está lendo e modificar até a maneira de falar. Sua irmã, “mais determinada a escapar” daquela realidade familiar, tem menos escrúpulos e pratica abertamente “caligrafia chinesa e gramática francesa”.

O livro é curto e rico. Trata do processo de urbanização, do surgimento de prosperidade em uma sociedade, do fosso que isso cria entre gerações mais novas e mais instruídas e as anteriores ou as que permanecem rurais. Mostra o que significa pertencer a uma minoria étnica, com menos oportunidades legais ou direitos do que a etnia majoritária.

Tash Aw mora hoje no sul da França; visita os pais com frequência na Malásia, onde é uma celebridade. Uma vez, almoçando com ele em Kuala Lumpur, comentei que Estranhos no cais me permitira aprender mais sobre seu país do que qualquer volume de história ou de sociologia.

Mas Estranhos no cais é mais do que isso. Como todo bom livro autobiográfico, ilumina o processo de conscientização, por um ser humano, de sua individualidade.

Estranhos no cais
Tash Aw
Trad.: Marcela Lanius
Todavia
88 págs.
Tash Aw
Nascido em Taipei (Taiwan), filho de pais malaios, Tash Aw cresceu em Kuala Lumpur, na Malásia, antes de se mudar para o Reino Unido para cursar a universidade. É autor de quatro romances: The harmony silk factory, Map of the invisible world, Five star Billionaire e We, the survivors, incluídos duas vezes na long list do Booker Prize. Sua obra está traduzida em 23 idiomas. Estranhos no cais foi finalista do Los Angeles Times Book Prize e do Prix Médicis Étranger, na França.
Ary Quintella

É diplomata e escreve suas memórias em aryquintella.com. Autor de Geografia do tempo (2024).

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