Seu pai morreu. Na verdade, seu pai está morto há dois meses, mas a notícia só chegou agora. No entanto, como no passado este anúncio já fora feito algumas vezes, você não acredita. Só passa a acreditar quando recebe a herança paterna. Cento e dezessete cadernos que ele começou a escrever em seu país de origem, cadernos nos quais tenta escrever a história de sua vida, busca imortalizar as lembranças que já começam a lhe escapar devido à idade. E só quando você abre os cadernos e inicia a leitura sobre a vida de seu pai é que começa a conhecê-lo de verdade. E passa a querer ficar mais perto dele. Mas sobram apenas os cadernos. Será que existe (ou existiu) um pai assim?
Se ele é verdadeiro ou não, pouco importa. Afinal, na literatura, em muitos casos a ficção é muito, mas muito melhor, que a realidade. E quando a ficção tem como base fatos reais, temos uma oportunidade rara de ver a história sendo feita por pessoas muito mais interessantes do que as que existiram. E percebemos que a história humana, pessoal, continua maior que a história coletiva.
Por isso, quando conhecemos o pai fictício de Edgard Telles Ribeiro em Olho de rei, ou melhor, quando conhecemos o pai literário de Edgard Telles Ribeiro Lafitte, Jean Lafitte, temos a certeza de que estamos em frente a um grande personagem que não mereceu ainda um verbete em uma enciclopédia de história — por modéstia pessoal ou por ignorância dos enciclopedistas. E como Ribeiro (o autor, não o personagem) consegue tornar altamente verossímil Jean Lafitte, perdemos em certo momento a noção de que estamos diante de um personagem fictício. O que é um ótimo sinal para um livro.
A divisão entre ficção e realidade começa a se dissolver na apresentação do filho do protagonista. Ao escrever em primeira pessoa, o autor conta um pouco da história de seu pai. Ele era francês e fugiu da Europa em 1942 por causa da guerra. Do Brasil, foi para o Equador montar um restaurante. De lá, partiu para a Guatemala e morreu na França sem que ninguém soubesse que para lá ele havia voltado. Sabemos também que Edgard (o personagem, não o autor) tem duas irmãs de quem se reaproxima após a morte do pai. Juntos viajam para a França. A trama é bem montada, e quando mergulhamos nos cadernos de Jean Lafitte editados por Edgard (o personagem e o autor, nessa hora ambos são o mesmo), temos certeza de que Jean existiu.
E que baita personagem. Membro da Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial, matou sete adversários ao longo do conflito. Jean Lafitte foge para o Brasil após explodir um tanque alemão na França. Já na chegada ele percebe que passará a viver uma nova realidade. As caveiras verdadeiras que ele deixou na Europa são substituídas por fantasias de caveiras pulando alegremente no cais do porto do Rio. Era carnaval. A partir daí, Jean acredita que conseguirá, de alguma maneira, fazer as pazes com o seu passado aqui nos trópicos.
Edgard (o autor) continua o texto em primeira pessoa, mas consegue habilmente passar a sensação de que estamos falando com uma pessoa real. Dessa maneira, ao mesmo tempo em que vamos descobrindo a história pessoal de Jean, sabemos também o que acontece com ele durante o seu retorno à França. Descobrimos o quanto o seu passado ainda lhe persegue, como ele tentou (sem sucesso) a vida inteira se perdoar pelos erros do passado. A morte o atemoriza, logo ele que enfrentou uma guerra verdadeira e não teve medo dela. Descobrimos, enfim, que não estamos diante de um personagem fora do comum no sentido de poderes especiais, mas sim de um personagem extraordinário pela sua própria história.
Jean, por exemplo, é um assassino, com sete mortes nas costas. Mas o que mais pesa não são as mortes que causou, mas sim a traição que cometeu por um orgulho besta. Quantas vezes não nos sentimos um merda quando traímos a nós mesmos? Jean é assim. Jean também foi contrabandista. No entanto, não sentimos nele um arrependimento por ter passado um tempo atuando na contravenção, por acreditar que o que fazia não era tão errado. E não somos assim também quando paramos em fila dupla só um minutinho? A trajetória de Jean é diferente, mas ela é uma seqüência de fatos que realmente poderiam ter acontecido a qualquer pessoa. Por isso gostamos dele.
Em alguns momentos do livro, porém, temos certeza de que não é Jean quem escreve, nem Edgard (o filho), mas Edgard (o autor). Quando ele comenta, por exemplo, à página 71, sobre as possibilidades do Brasil do futuro (o futuro do protagonista, nosso já quase passado), vemos que não é bem um francês que mora no Brasil comentando: “A variedade de recursos existentes no país parecia fundamentar todo e qualquer sonho de grandeza. Ainda que as opções internas se restringissem à área agrícola, as perspectivas no campo da industrialização também eram objeto de especulação. A possibilidade de que o país conseguisse produzir um automóvel ou um avião fazia todos rirem, naturalmente — eu inclusive.” Posso estar errado, mas me parece pouco provável que um recém-chegado ao Brasil, que pensava praticamente todo dia em voltar ao seu país, estivesse comentando em seus cadernos 40 anos depois uma conversa com temática econômica. Compreendo que estes toques que o autor dá servem para situar historicamente o personagem, mas vez ou outra (poucas, felizmente) eles parecem forçados.
Outro ponto positivo é que Edgard (o filho e o autor) não conta todo o conteúdo dos cadernos de Jean. Há diversas lacunas na cronologia do personagem. Longe de prejudicar a compreensão total, instiga o leitor a preencher os espaços em branco com a sua imaginação. Ao mesmo tempo, talvez até para que nos identifiquemos melhor com o personagem, temos um relato mais extenso do tempo que Jean passou no Brasil e do período para retornar à França, com algumas voltas à infância, à adolescência e ao início da vida adulta, durante os períodos de guerra. Assim, se gostamos do personagem, somos obrigados a imaginar o que foi o restante de sua vida, o que não está escrito.
Olho de rei é um bom livro. Com habilidade, o autor nos leva a acreditar que seu personagem realmente existiu, que ele é o seu pai, e que aquela vida cheia de reviravoltas aconteceu. E, ao chegarmos ao seu final, pouco importa se ele existiu mesmo ou não. A história nos conquistou. E isso basta.