Nilto Maciel é um cachorro sem dono. O homem escreve que é um cão. Ataca com ou sem fome, constrói frases com as quatro patas, limpa as palavras com o rabo, escreve bem o bichinho. Parou no poste, levantou a perninha e despejou Carnavalha. Trocinho bacana esse Carnavalha, meio desorganizado, mas trocinho bacana. Falemos bem primeiro, para dar de bonzinho.
Niltinho vomita frases. O ritmo é forte demais. Tem que tampar o nariz e encarar, que vale a pena. O homem parece que incorpora o capetinha das letras. E a dança corre solta, o carnaval como pano de fundo em cima de sofá rasgado para dar cor e esconder o buraco.
Zuza é o cara no book. Enquanto os outros vivem, pulam, dançam, bebem e trepam, Zuza observa, dorme no chão, no banco da praça, toma todas, é amigo da cachorrada da cidade de Palma. Zuza deu nome para os vira-latas: Alão, Brochote, Cafoto, Centola, etc.
Palma tem hotel Canuto, rua 7 de Setembro, praça da Matriz, praça de Santa Luzia, praça Waldemar Falcão. A cidade é uma festa, quase uma população inteira de foliões. Essa Palma, que saiu da cabeça do Nilto, não tem no mapa mas tem carnaval que recebe visitantes de Brasília (barnabés, é claro) e do Rio de Janeiro. Tem o bloco dos porcos (“Todos gordos, roliços, desajeitados, grunhiam obscenidades.”); tem ratos saltitantes (“Enormes ratos. Todos fantasiados. Uns levavam fitinhas ao redor do pescoço. Faziam caretas para o público e abanavam os rabos.”).
Todos estavam na festa, fosse na rua ou em casa. Quem não estava pulando se dizia contra a bagunça e ia para a janela com a desculpa de que precisava rezar pelos pecadores. Queria mesmo era ver a folia e fazer fofoca: “Você se lembra de Nequinho? Pois ali vai Noé, irmão dele. Nequinho morreu tragicamente e o irmão dele aí comediante”.
Mas Carnavalha é bom porque não é sobre carnaval. Carnavalha é sobre gente. O carnaval é só uma data para juntar todo mundo. Fosse Natal também daria, mas Zuza teria que ser papai noel. No carnaval fica mais divertido, a gentarada se expõe, ainda mais gentarada de cidade pequena. Zuza observa a gente de Palma, e a gente observa Palma pelos olhos de Zuza. Os olhos de Zuza vêem o que Nilto Macielzinho quer nos mostrar. Nilto faz graça, cria tipos. Silveira tem como apelido Bafo de Onça e volta e meia é provocado na cidade mas não entende por quê:
Todo mundo tem mau hálito. Dente podre, estômago estragado. Todo mundo carrega merda no intestino. Todo mundo fede, até a mulher mais bonita.
Depois de apresentar Palma e sua gentarada, Nilto resolve dar um nó na cabeça do leitor, enveredando para o fantástico. A cidade é invadida por animais de todos os tipos, não apenas os domésticos, mas também aranhas, cobras, lagartas, formigas. O sinal para a invasão foi dado pelo pio da coruja na torre da Matriz. Os foliões transformaram-se em caçadores e partiram para o contra-ataque, armados de facas, tesouras, navalhas, espetos e o que mais tivessem à mão. Os primeiros a sucumbir foram os vira-latas amigos de Zuza:
Néo Bento agarrou Alão pelo pescoço, sujigou-o e, com um facão, decepou-lhe a cabeça. Zé Pinto enforcou Brochote com um cinto. Vicente enfiou um espeto na goela de Cafoto. Silveira sangrou Dentola, com uma navalha enorme.
A guerra contra os bichos acaba com o carnaval, mas é uma grande fantasia. Os moradores transformam-se em exterminadores sanguinários: donas de casa torcem pescoços de galinhas pelas ruas; um casal derruba porcos a chutes; Adolfo Mendes monta bodes até cansá-los para dar uma machadada na nuca; Erisa coloca fogo na cauda dos animais; Carmelita cega os jumentos com uma tocha; e até um ritual macabro é feito na igreja com um novilho e dois carneiros.
Da peleja com os animais só resta a coruja, que da torre da Matriz passa a voar pela cidade, pousando no telhado de cada casa. Por meio da espionagem da ave, Nilto Maciel se volta agora a contar as intimidades dos moradores de Palma. Casais são flagrados na cama, à mesa, na sala de estar.
Na casa de Lauro e Mundinha, a coruja presencia o casal numa mesa cheia de dentaduras, feitas por Lauro. Entra Juarez com um saco cheio de dentes de gatos, mortos na batalha. Ele sugere que Lauro use os dentes para fazer dentaduras. “Dente de gato é mais afiado”, defende-se Juarez.
Na última parte do livro, Zuza retorna ao centro. Uma morte acontece e o livro termina numa grande investigação para se descobrir o assassino. Em Carnavalha, Nilto Maciel mostra que passeia com facilidade pelo fantástico, pelo regional, sempre com a mão firme na linguagem e no fôlego intenso parágrafo após parágrafo. Para quem já conhece esse cabra do Ceará, o novo livro é leitura fácil, um apanhado dos talentos múltiplos do autor. Quem desconhece Nilto vai desconhecer ainda mais em Carnavalha, vai mesmo é entrar em parafuso, que é isso que quer o sacana. Nilto coloca o leitor na montanha-russa e gira para lá e para cá, um susto atrás do outro, exagerando muitas vezes.
Nilto é macaco velho. Tem mais de 30 anos de carreira, uma dúzia de prêmios, vinte e tantos livros, e parece não abrir mão de sua originalidade. Este é seu maior pecado. O que é original para o autor nem sempre é compreensível para o leitor, que quer uma boa história, e não apenas viajar nas pirações de quem escreve. Carnavalha não é romance, não é um livro de contos, não é novela. É boa literatura, mas amontoada de forma esquisita, sem continuidade, com pequenos erros de edição que atrapalham o conjunto. As citações de outros autores nos começos de dezenas de capítulos da parte da guerra dos bichos e da espionagem da coruja são irrelevantes. O anúncio da presença da coruja no telhado de cada casa espionada é enfadonho e desnecessário. Também são desnecessárias as doze páginas com o currículo de Nilto Maciel e as orelhas carregadas de elogios (livro bom mesmo traz a orelha em branco). Não que Carnavalha não seja bom, mas poderia ser melhor com uma edição mais cuidadosa, inclusive na revisão, que deixou passar erros básicos. É o mínimo que um autor com o currículo de Nilto Maciel merece. Do jeito que foi feito, Carnavalha esconde um excelente autor porque carece de um bom editor.