Em 27 de março de 2024, Affonso Romano de Sant’Anna completou 87 anos. Ele já não escreve mais, nem segue contando histórias, dividindo reflexões sobre as artes, literatura e poesia, o mundo pela pequeneza da política ou a grandeza do cotidiano. Há muito o que (re)ler de tudo o que produziu e publicou ao longo de seis décadas de intensa atividade. ARS e sua obra de fazer pensar. ARS, iniciais do poeta, arte em latim. Neste ensaio, partimos de um poema, escrito em sua maturidade, que propomos condensar de maneira muito potente e representativa a poética de Affonso Romano (e obviamente falhamos, porque é na certamente bem mais ampla).
O poeta tinha quase 80 anos quando nos deu a ler isto:
Nada mais banal que dizer:
— o Sol se põe sobre o horizonte.
São 7h30 da tarde
quase noite, é verão.
Terei um minuto de contemplação
até que a luz
desapareça uma vez mais.
O trecho é absolutamente factual e ao mesmo tempo metafórico em máxima potência. Extremamente lírico e no entanto nenhum termo incomum compõe esses versos, nenhuma inversão no jeito de dizer as coisas, nenhum enfeite, somente descrições. É o começo do poema Noturno de Ipanema I, no livro A vida é um escândalo (Rocco, 2017), o último livro de poemas lançado por Affonso Romano de Sant’Anna, desde que começou essa “brincadeira”, perto dos vinte e poucos anos de idade, entre as cidades mineiras de Juiz de Fora e Belo Horizonte, no fim da década de 1950.
Preciso enfatizar isto: como é raro se alcançar o incomum através do muito comum, criar camadas de significação possível por meio do que pode parecer apenas plano. Como é hábil e madura essa lida, composta para causar emoção. Um início de poema que serve como tratado de uma poética ou histórico de uma busca, a caça de uma vida inteira.
São muitos anos. Muitas as transformações do mundo (quantas dele próprio?). ARS saiu de Juiz de Fora para estudar Letras em BH, publicou seus primeiros livros, logo envolveu-se na cena literária nacional, começou a trabalhar como jornalista, saiu do país para ver os Beatles e os hippies de perto, tornou-se doutor estudando Drummond, professor universitário, poeta estabelecido também como ensaísta e cronista, presidente da Biblioteca Nacional e entre o início de tudo e esta proximidade maior do pôr do sol, sua poesia refletiu, afetou-se por tudo, como se percebe percorrendo seus principais livros de poemas, mais de dez.
Abordagens e estilos diferentes
Entre Canto e palavra (1965) e A vida é um escândalo (2017), são abordagens e estilos diferentes, mas ao mesmo tempo conservando sua voz, única, marcada pela disposição crítica, pela reflexão filosófica e pela conversa da grande História com os desejos mundanos e sexuais do cotidiano das pessoas, do próprio poeta.
Assento-me neste terraço e olho.
Não há como datar este instante.
Van Eyck pôs no seu quadro:
Johannes de Eyck fuit hic.
Este é o mesmo ritual
há bilhões de anos.
Certeiramente o Sol se põe
entre aquelas ilhas que o acolhem.
Viu que o pintor Van Eyck, do século 15, pintou em Ipanema no início do século 21? Os fatos dos jornais e a arte erudita sempre dividiram as mesmas páginas em suas edições, porque simplesmente isso reflete o modo de ver o mundo deste poeta, capaz de descascar mexerica na esquina, sentado num caixote de madeira, suas pernas longas elegantemente cruzadas, ao lado de Leonardo da Vinci, Barack Obama ou Rosa Luxemburgo, conversando sobre política ou um cena da rua. “O poeta passava caminhando aqui na frente”, Affonso muitas vezes disse, referindo-se às caminhadas de Carlos Drummond de Andrade, entre Copacabana e Ipanema. Ou, com sentido parecido, apontando para a cobertura de Rubem Braga, a fazenda suspensa que se vê muito bem do mesmo terraço de onde canta o poema reproduzido aqui: na cobertura da rua Nascimento Silva, Rio de Janeiro, sua morada desde os anos 1970 ao lado da esposa, a escritora, ilustradora e poeta Marina Colasanti.
A escala monstruosa do tempo universal está no poema, assim como a visão lírica das ilhas que acolhem o sol. Ciência e fantasia não são mundos à parte. Sou um leitor comum, não um super estudioso, e desse ponto de vista elejo este poema como o que condensa da maneira mais potente tudo o que li de Affonso Romano de Sant’Anna. Há estudos de vários aspectos de sua obra. Há uma tese, por exemplo, que aborda a temática da morte, da qual Affonso muito tratou, destemido — e realmente ela até agora não o alcançou. Uma doença o tirou de nosso convívio, não muito tempo depois do lançamento do derradeiro livro, calando sua mente tão profícua, tão ágil, encantadora e afiada; o coração pulsa.
Tenho um minuto
para a contemplação da luz.
Um minuto,
— é muito pouco
mas a poesia rasga o tempo
e me inunda com sua luz.
Intensidade é uma palavra que parece caber bem entre as tentativas de se definir a experiência de vida de Affonso Romano de Sant’Anna e o que se lê em seus poemas: poesia que rasga o tempo (une pontos da História em diferentes épocas, mostrando que tudo está conectado, que tudo se afeta, que todos nos afetamos uns aos outros); poesia que inunda com sua luz (poesia como efeito do poema ou da vida, alumbramento).
A estrofe traz esse deslocamento de um dos versos, com o uso de travessão, que aparece em poemas de Affonso Romano desde sempre. Talvez algo que carregou de leituras de Manuel Bandeira, recurso que adaptou ao seu próprio estilo, atendendo à sua demanda própria. Visualidade, conteúdo, mensagem ou provocação. Affonso se aproximou, depois se afastou e brigou com o movimento da Poesia Concreta. Pude pesquisar academicamente sua correspondência com Décio Pignatari e os irmãos Campos, Augusto e Haroldo. Não foi um encontro à-toa. Deixou marcas, que ele desenvolveu em estilo. Afeto não significa imediatamente amor. Entre admiração e mágoa, foi afetado pelo contato. Reagiu poeticamente às aproximações e distensões com os concretistas, como evidencia o estudo de sua correspondência:
A própria poesia de vanguarda, a arte de vanguarda, pode ser uma caricatura. Intencional ou não, ela o é, e não pode é se envergonhar disso ou querer justificar. A diferença entre nós é simples: eu procuro me mover com mais liberdade, sem asfixiar os pulmões, porque para mim, também, poesia é atividade vital.
(Transcrição de trecho da carta enviada por Affonso Romano de Sant’Anna a Décio Pignatari, de 5 de março de 1963, cuja cópia em carbono está guardada no acervo particular do poeta mineiro.)
Retomo as perplexidades
que me acompanham
— desde as montanhas de Minas.
Adiante a Ilha Rasa
o farol que o poeta anotou
ao lado da cobertura do cronista
e a solidão nadando mar afora.
A história é um assombro ingovernável.
Tomaram-me um pedaço do mar.
Não nos demos o país que merecíamos.
Amigos se foram
e não resolveram nossos enigmas.
Consulto suas obras em vão:
rodavam o uísque em seus copos
eram espirituosos nas festas
mas partiram sem entender
o inexplicável.
Relendo o que escrevi até agora neste ensaio, percebo que pode parecer que estou tentando decifrar o poema. Seria uma mentira muito da safada. O que ofereço é apenas uma leitura, minha, de agora. Daqui a dois anos será outra, possivelmente. O tempo só nos transforma e quando não entendemos que há este mistério, “assombro ingovernável”, pouco entendemos da vida.
Pela geografia o poeta localiza o que há de mais diretamente biográfico no poema (montanhas de Minas, terraço, o mar do Rio de Janeiro). O eu lírico da poesia de Affonso normalmente é Affonso mesmo. Fosse prosa e seria autoficção, beirando o ensaio, ou vice-versa. Já citei a cobertura do Rubem Braga: o poeta trouxe ao poema uma das crônicas mais marcantes de seu vizinho (Homem no mar). Ele frequentou aquele lugar, assim como muitos outros grandes autores do Rio de Janeiro nos anos 1960 e 1970. Vinicius de Moraes, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Hélio Pellegrino é que rodavam ali seus uísques. Foram grandes, foram sábios, mas ele entende que viveram atormentados por inúmeras e imensas dúvidas existenciais — e nos deliciamos hoje com essa herança, suas obras. Creio que reflita nos companheiros já mortos o fracasso destinado a essa busca. “Não nos demos o país que merecíamos” poderia estar na boca de Darcy Ribeiro, que escreveu O povo brasileiro, tentando responder a si próprio por que o Brasil não deu certo.
Duas origens
A criação de Affonso Romano parece ter duas origens que podem parecer conflitantes, as duas origens clássicas quando se fala em criação literária: a racional e a encantada. Mas sinto pela leitura que a maior parte das vezes escreveu a partir da reflexão racional, multidisciplinar, como um vício intelectual inescapável, a investigar problemas do Brasil e da humanidade, um olho em grande angular e outro em lente macro. Vejamos em ordem cronológica alguns exemplos:
“Sou primeiro o canto/ e o que cantou/ e só depois — palavra/ e o que falou” [Canto e palavra, 1965]
“Sei que não existe mais poesia, embora saíssemos em expedições teóricas para matá-la/ sei que não existe mais poesia porque ainda ontem/ dei a bibliografia aos meus alunos que agora sabem/ (que não existe mais poesia) e podem livremente/ ler um não-poema” [Poesia sobre poesia, 1975]
“— Onde leria eu os poemas de meu tempo?/ — Em que prisão-jornal?/ — Em que consciência-muro?/ — Em que berro-livro?” [A grande fala do índio guarani perdido na história e outras derrotas, 1978]
“Uma coisa é um país/ outra um ajuntamento.// Uma coisa é um país,/ outra um regimento.// Uma coisa é um país,/ outra o confinamento.// Mas já soube datas, guerras, estátuas/ usei caderno ‘Avante’/ — e desfilei de tênis para o ditador.” [Que país é este? e outros poemas, 1980]
“Mentiram-me. Mentiram-me ontem/ e hoje mentem novamente. Mentem/ de corpo e alma, completamente./ E mentem de maneira tão pungente/ que acho que mentem sinceramente” [Política e paixão, 1984]
“Debaixo de minha escrita/ há sangue em lugar de tinta/ — e alguém calado que grita” [A Catedral de Colônia e outros poemas, 1985]
“O Sol segue sua rota/ entre a montanha e o mar./ A tarde, exasperada, luta/ e minha mão, gaivota/ sobre o azul morrente, escreve/ — antes que escureça” [O lado esquerdo de meu peito – Livro de aprendizagens, 1992]
“Nunca direi a palavra completa/ Pois entre Alfa e Ômega/ sou Beta.// Nunca direi a verdade absoluta/ pois o que exponho/ não é sequer vitória/ mas uma parte da luta.” [Textamentos, 1999]
“Escapei de duas repressões patéticas:/ a primeira foi política/ a segunda foi estética./ Numa cassaram-me/ a palavra/ em nome da revolução/ na outra/ quiseram convencer-me/ que a poesia era forma pura/ sem função.” [Vestígios, 2005]
“Era um homem com sombra de cachorro/ que sonhava ter sombra de cavalo/ mas era um homem com sombra de cachorro/ e isto de algum modo o incomodava.// Por isto aprisionou-a num canil/ e altas horas da noite/ enquanto a sombra lhe ladrava/ sua alma em pelo galopava.” [O homem e sua sombra, 2006]
“Penso:/ talvez esteja/ jogando meu tempo/ fora/ enquanto escrevo poesia.// Que pena!// Penso:/ talvez esteja apenas/ jogando o tempo/ dentro/ do poema.” [Sísifo desce a montanha, 2011]
Pensamento e ordenação
Dá para voltar a cada um dos livros e colher trechos muito diferentes, esta é uma seleta aleatória, que não propõe ser resumo da ópera. O que mostra, isso sim — e talvez mostraria qualquer outra seleção —, é que há na obra de ARS uma voz que se identifica. Mesmo na variedade temática. Ainda quando soa contraditória, porque, dizendo em seu conteúdo que brota muitas vezes da “poesia do mundo, a poesia do viver”, sua elaboração indica mais pensamento e ordenação. Aliás, duas afirmações que faço aqui eu tive confirmadas pela escritora Marina Colasanti. Ela disse uma vez que “Affonso queria participar”, quando falávamos de sua correspondência com escritores. E, em outra vez, que “a poesia de Affonso é uma poesia de reflexão”.
Que país é este?, poema de 1980 publicado numa página inteira do Jornal do Brasil, que na época era um dos principais jornais do país, um dos mais prestigiados veículos de comunicação e, detalhe não tão pequeno, ainda com a ditadura militar em vigência, Affonso disse que se tratava de um “ensaio poético”. Pode-se dizer o mesmo de A grande fala do índio guarani, de 1978, espécie de poema épico, com altas doses de reflexão filosófica e principalmente histórica. Affonso andava engajado entre as décadas de 1970 e 1980, quando até mesmo poemas para a Rede Globo ele escreveu.
Há uma ironia nisto, um traço marcante de Affonso Romano: não se prende a limites que ele mesmo identifica. Estou me referindo ao ensaio que publicou em 1962, O desemprego do poeta, por onde lamenta/busca/pisoteia a ideia da função do poeta e da poesia na sociedade, fundamentando que em outros tempos a figura do poeta tinha importância reconhecida e que havia perdido na modernidade. Mas veja que em boa parte da vida o que ele mais quis foi interferir, ser lido e ouvido, ser parte e não à parte. Ou seja: ser útil, ter função, o emprego da vida.
Penso nas gravuras persas que eu vi
inscritas em pedra
nas planícies onde Ciro guerreou
estavam expostas a essa mesma Lua
que me surpreenderá daqui a pouco,
neste terraço de Ipanema.
Se buscar o lírico, você encontra. Se buscar a reflexão filosófica, a social, a histórica, aí estão. Se busca a rima, tem. E o verso branco também. Há poemas melhores do que outros, em todos os livros, mas não dá para ver omissão, covardia: ARS não evitou a exposição, a prova, a análise pública. Há poemas de protesto e de denúncia, digamos, engajados. Há poemas sobre poesia e muitos deles que são críticas de poesia. Há muito de autobiografia e, em livros como Vestígios, talvez até um certo apego ao próprio ponto de vista sobre muita coisa diferente. E depois os poemas que parecem transpirar sua maturidade, a perda da pressa, a capacidade de se encantar pelo mistério. Em Sísifo desce a montanha e A vida é um escândalo, os acontecimentos não o aborrecem, não no sentido que aborreceram Drummond: revela-se curioso demais para isso.
“Poeta do nosso tempo” foi como o crítico literário Wilson Martins nomeou Affonso Romano. O recém-falecido historiador José Murilo de Carvalho escreveu que ARS é o “poeta do tempo”: “Mas por que ficava eu humilhado quando ele, num poema, dizia mais do que eu em sete minutos de fala? Talvez porque, como o ouvi definir em uma conferência, a poesia diz o indizível”. Acredito que Affonso tenha aprovado essas leituras, lido a si mesmo nelas, publicadas numa edição comemorativa de Que país é este? e outros poemas (Rocco, 2010). Mas creio também que, como tudo mais, tenha desenvolvido um ceticismo quanto a isto, sem abandonar o interesse pelos fatos, desenhando uma curiosa perspectiva entre o ínfimo e o momentâneo, o universal e o eterno, sem hierarquia:
Houve um tempo em que os versos me perseguiam
e a história ia comigo.
Não sou um herói do meu tempo.
Daqui vi
o câmbio das estações.
Alegrei-me em algumas festas,
perdi, ganhei, tornei a perder
e a ganhar.
Nesta portaria passam sombras e pessoas.
O suicida se jogou do andar abaixo.
Olhei as pragas do jardim e amei-as
e antes que essas ruas fossem abertas,
os índios habitaram
o resplandecente lago
que me contempla.
Affonso Romano de Sant’Anna me dá a impressão de ter aprendido a dobrar tempo e espaço como a um guardanapo. Aos 80 anos de idade alcançou o momento de colocá-lo no bolso, como quem carrega consigo o maior segredo do mundo, mas sem medo de perder, ser roubado. Ao contrário. Ele o desdobra, lê, o revela sem cerimônia.
Não deveria me atormentar
e sim erguer um drinque, saudar o desconhecido.
Está se esgotando meu tempo
o Sol vai se pondo.
Mas continuo sem entender
as mensagens do vento.
Noutros verões, corpos dourados
aplaudirão sobre estas praias
este espetáculo.
Não estou em condições de pensar
sobre as escavações que fazem na Abissínia.
eu que mal conheço meu vizinho
separado por esta surda parede.
No mesmo terraço onde o conheci e o entrevistei algumas vezes, assim como a Marina Colasanti, o tempo o atravessa nesse poema. E vai longe. É um privilégio reparar na lonjura do tempo, mesmo que não possamos viajar tanto e junto, não é? Esse momento já passou. Quem escreveu isto não pode mais recitar. Mas o momento existiu e foi registrado, transformado, eternizado pelo tempo que for possível. E vai pulsar toda vez que for lido, poema que guarda uma vida e é poesia.
Desfolho mais um entardecer.
A ciência não me explica, me edifica.
O espanto me reedita.
Jogo água nas plantas
olho as estrelas
e enquanto me apago
me ilumino.
NOTA
A poesia de Affonso Romano de Sant’Anna está publicada basicamente por duas editoras: Rocco e L&PM, com diversas obras em catálogo. Os trabalhos acadêmicos citados no ensaio são: Tânatos nasceu em