Ao chegar em casa no começo da noite, na avenida Angélica, em São Paulo, a jornalista Cremilda Medina não precisa das chaves: o marido, Sinval, adivinha sua aproximação e abre a porta do apartamento, recebendo a mulher com um beijo. Logo estamos na cozinha preparando o jantar. Sinval já lavou e cortou algumas verduras, e agora fatia o queijo de leite de búfala.
— Me casei com 21 anos, e acho que foi uma decisão muito acertada — me contaria o escritor, um pouco mais tarde.
A família de Sinval Freitas Medina tem origens modestas. O avô materno, descendente de portugueses, era barbeiro, e o avô paterno, de ascendência espanhola, construtor civil. No entanto, algo de dinástico marca a vida de Sinval: ele é o único filho homem (tem três irmãs). Seu pai foi filho único; o avô, primogênito, e o bisavô, também. Privilegiado por essa exclusividade do masculino, Sinval foi menino mimado, com infância protegida, em Porto Alegre, onde viveu até terminar a faculdade de jornalismo.
O pai tinha uma extensa cultura literária.
— Ele trazia livros, semanalmente, para mim. Quando eu tinha 13 anos, li As vinhas da ira, do Steinbeck.
— Coincidência, eu também li esse livro aos 13 anos.
Apesar dos longos anos trabalhando como editor em revistas, Sinval acha que nunca foi jornalista para valer. Desde os 12 anos, já tinha decidido que queria ser escritor, e escritor de romances. Aldorema, a irmã mais velha, também. Foi ela que ganhou o primeiro prêmio literário da família: um concurso de contos em um programa de rádio famoso em Porto Alegre, o Clube do Guri, onde Elis Regina começou a cantar.
No entanto, escrever não parecia a Sinval uma profissão. Fez um teste vocacional, ao final de seus estudos no colégio Júlio de Castilhos, e optou pelo curso de jornalismo, mas pensando em ser escritor, não jornalista. Racional, seu primeiro objetivo como ficcionista era terminar uma história, ainda que curta. Talvez um conto. Só isso. Claro que ele tinha também o grande sonho de publicar o primeiro livro, coisa que acabou acontecendo em 1980, aos 37 anos. Em 1963, sabia que tinha que fazer alguma coisa para ganhar a vida. A crise econômica era terrível, no pré-golpe. Já de namoro com Cremilda, Sinval fez um concurso para o Banco do Brasil, pensando em garantir o sustento da futura família e sua carreira de escritor.
— O modelo clássico do escritor no final do século 19 e início do 20: um emprego público que permitisse escrever. O Banco do Brasil tinha muitos escritores nos seus quadros, inclusive grandes romancistas, como Osman Lins e Esdras do Nascimento.
Casados jovens, Sinval e Cremilda logo tiveram os dois filhos. Para aumentar a renda, ele trabalhou, por três anos, redigindo verbetes de enciclopédia na antiga Editora Globo.
— Viemos para São Paulo também porque a Cremilda ia fazer o mestrado na ECA, que estava abrindo o curso de pós-graduação. Acabei sendo convidado pra trabalhar lá, no curso de editoração que iniciava, por causa da minha experiência na Editora Globo.
A monotonia do banco havia amordaçado o escritor: ele tinha tempo, mas não assunto para escrever. Com a entrada na universidade, se voltou inteiramente para a vida acadêmica, deixando na hibernação, ainda outra vez, a atividade literária.
— Depois do golpe militar, havia uma autocensura violentíssima. A perspectiva de ficção, no início da década de 1960 e na minha adolescência, era calcada nas questões sociais, romances de denúncia, como os de Jorge Amado, Graciliano Ramos. Com o golpe, esse caminho foi fechado.
Os doze restantes (inclusive quatro mulheres) tornaram-se membros fundadores da organização terrorista COVA-PP (Comando de Vingança a Atrocidades contra Presos Políticos). O jornalista Miguel Ortiz, apesar de ser radicalmente contrário à violência como instrumento de ação política, aderiu. Sei que estou pensando com minhas cicatrizes, declarou, ao justificar seu voto de filiação à COVA-PP. (Liberdade condicional, p. 102)
O regime militar ajudou a desestimular a vocação literária, mas também criou uma situação que empurrou Sinval irremediavelmente para ela. Em 1975, a ECA foi cenário de prisões e destruição. Sinval foi cassado, e Cremilda se afastou da universidade por 11 anos. Estes fatos desencadearam a primeira greve na USP, depois do AI-5. Sinval trabalharia, então, durante quase 20 anos, como jornalista, nunca em jornal diário, mas em revistas, como editor. Arranjou tempo e ímpeto para escrever de verdade.
— A literatura me obrigou a dar um salto mortal, descobrir o lado dionisíaco da existência, ao mexer com emoções.
Não que seus livros sejam sentimentais.
— Teus narradores sempre são masculinos. Tu achas que é uma coisa óbvia um escritor colocar o foco narrativo numa personagem masculina?
— Não, eu não acho. Talvez a natureza dos temas que tenho abordado seja mais própria de uma ótica masculina. Temas musculosos, como diria Ana Miranda. Já fui até acusado, em diversos debates, de ser muito descuidado com as mulheres e não desenvolver personagens femininos. Acho que, em minha defesa, no Herdeiro das sombras, a personagem por quem o Gottschalk se apaixona, lá no Rio de Janeiro, esqueci o nome, é bem desenvolvida, gosto dela, consegui trabalhar bem uma personagem feminina.
O que mais chamou a atenção de Louis em dona Maria Laura Camargo Quinteiros não foram os profundíssimos olhos negros, a sedosa cútis morena, a delicadeza do perfil — atributos sem dúvida invejáveis, mas não incomuns nas mulheres brasileiras. Em dona Maria Laura, tudo aquilo parecia acessório; nela preponderava, sobretudo, a distinção do porte. (O herdeiro das sombras, p. 112-113.)
Ora, Sinval, dona Maria Laura, como qualquer mulher, não pode se sentir amada por alguém que nem mesmo lembra seu nome; tanto pior se o desmemoriado for o próprio criador.
— Tenho um projeto, até para responder a essas críticas, de escrever uma história romântica, montadinha, armada, meio Romeu e Julieta.
Nessa hora, fico sem saber se meu entrevistado fala seriamente ou zomba um pouco de mim: por que ele acharia que mulheres só podem ser cooptadas por histórias de amor impossível? Orgulhosa demais para tirar isso a limpo, resolvo mudar de assunto. Falemos do primeiro livro, publicado em 1980.
— Achei a forma de Liberdade condicional interessante porque lembra uma coleção de esboços de textos: anotações para reportagem, para romances, para artigos científicos, para relatórios policiais.
— Não queria ser um escritor marcado por determinado estilo ou temática.
Fui dormir com muita fome na praia em frente ao mercado, onde já pernoitara no dia anterior, e quase não preguei olho pela friagem que fazia, e assim, antes do sol sair, mas muito antes mesmo, seriam quem sabe umas quatro da manhã, me acheguei ao portão principal, ainda fechado, e por ali fiquei, andando de um lado para outro, ainda meio tonto de sono. Foi aí que surgiu o homem, com um carroção de verduras, repolhos, couves, batatas, sacos de mandioca, essas coisas, e meteu a chave no portão, abriu, e só então me divisou; e pelo jeito de andar e de bater com as mãos, nas coxas, percebi que qualquer coisa não ia dentro dos conformes lá dele, e foi e me disse, de jeito que me senti um tanto diminuído, você está aí a fazer o quê? (Memorial de Santa Cruz, p. 29.)
— No caso do Santa Cruz, eu estava muito impressionado, na época, com a diversidade de falares brasileiros que encontrei em São Paulo. Tentei usar uma linguagem compósita, inspirado por sotaques de Minas Gerais, Goiás, do Nordeste, do Sul, e tal. Nesse livro que estou acabo de escrever, acho que repeti alguns maneirismos de O herdeiro das sombras, e isso me incomoda um pouco. Parece que estou me autoplagiando.
Isso, todo santo dia. Chova ou faça sol. Um entra e sai interminável. Políticos. Jornalistas. Amigos. Tudo gente em busca de ajuda. Emprego. Cartas de recomendação. Dinheiro. A inana começa antes do almoço e só termina após as dez da noite. Alguns comparecem por dias seguidos, contritos como se fossem à missa. Deixam-se ficar pelos cantos feito cachorro magro, rabo entre as pernas, à espera de um olhar, um aceno. Que nem sempre vem. O remédio é voltar no dia seguinte. O senador é muito ocupado, tem pouco tempo, dá mais audiências que o presidente da república. Dezenas de pessoas todos os dias. Um mercado persa. O senador no centro das atenções, no trono, refulgente como o rei sol. Um verdadeiro mandarim. E a casa, organizada como um banco suíço. (A faca e o mandarim)
— A linguagem também é ficção. Então, eu não posso usar a mesma linguagem para todas as histórias que conto. Isso exige o trabalho extra de pesquisa com essa perspectiva de invenção. Não pretendo que meus textos reproduzam linguagem de época, até porque é impossível.
Se o Tratado da altura das estrelas tivesse sido escrito em linguagem quinhentista, seria ilegível. Mas não: ele apenas tem ressonâncias do século 16:
A notícia deixará mui alevantados os guerreiros da tribo, mais ainda crescidos em ira ao conhecerem que os intrusos vêm a ser mortais oponentes de Carvalho, Torcato, Guimarães e Lourenço, tidos e havidos, agora, como irmãos. Ora, sabemos que entre os gentios desta costa manda a etiqueta que contrairo de parente torne-se de todos desafeto, de sorte que, reunidos em assembléia deliberam dar nos da fortaleza com a possível brevidade com o fito de os almoçarem em grande festança, antes que prevenidos por algum mau espírito decidam-se a jantá-los sem qualquer cerimônia ou rasgo de piedade. (Tratado da altura das estrelas, p. 135.)
No seu gabinete organizado, bem equipado e abençoado por uma vista reconfortante da praça Argentina, Sinval não aguarda por musas.
— Não fico torturado para escrever, nem de mau humor. Eu posso ser ofensivo aos colegas, mas acho frescura esse negócio de sofrer para escrever. Se você vai sofrer, então não escreve.
Trabalhando em retalhos de tempo, conseguiu publicar três romances em quatro anos. Não parou de escrever nem em meio ao ritmo alucinante, como redator-chefe da revista Saúde, no final dos anos 1980. Sem querer se afastar da atividade literária, mas também sem tempo para fazer romances, escreveu três livros infanto-juvenis, além de dois de poesia. Aí, ganhou uma bolsa da Fundação Vitae para escrever o Tratado da altura das estrelas, e deixou a editora. Finalmente, um tempo só para a literatura?
Só depois de 1999, com o primeiro prêmio Passo Fundo de Literatura, por Tratado…, Sinval conquistou uma tranqüilidade maior. Ainda presta serviços de redação, mas para clientes privilegiados: o filho, Daniel, e a nora, Renata, que trabalham com comunicação visual e, eventualmente, precisam de texto para certas campanhas. Nada que o massacre.
Seu método de trabalho foi forjado pelos hábitos de editor de revistas. Escolhe um tema, faz a sinopse do romance, passa para a etapa de pesquisa e começa a montar a história, tudo muito pensadinho. Mas, daí…
— …tem uma hora em que eu perco o controle totalmente, e, então, sei ter chegado ao ponto certo. A parte inicial é muito parecida com o jornalismo tradicional — não estou falando do jornalismo que a Cremilda faz, que você faz e eu, como jornalista, também. Mas, em geral, o jornalismo quer explicar, demonstrar, provar, é uma aproximação da realidade que eu chamo de especular, uma tentativa de reproduzir a imagem do real tal como ele se apresenta diante dos seus olhos. O texto ficcional não é nada disso. Quando chego nesse ponto de não saber mais por que as coisas estão indo por certo caminho, por que elas se desviaram da minha sinopse, eu falo: agora está certo. A história te coloca diante de fatos consumados e exigências, e aí o que você tem que fazer é seguir isso.
A grande diferença em relação ao jornalismo, e também a vantagem da pesquisa na ficção é poder eleger uma ou duas fontes, sem se preocupar com sua correção; importa é elas serem interessantes, terem riqueza de detalhes.
— Trabalho muito com o pormenor e o detalhe, para criar uma ilusão de realidade. Acho que isso cria empatia com a narrativa.
— Sim, o detalhe aproxima, é por ele que se incluem os afetos na narrativa, que o leitor chega pertinho.
— E eu, ultimamente, ando à caça do que chamo de adjetivos genéricos: bom, alegre, contente etc. Eu reescrevo muito, mas, depois de publicado, raramente releio o texto, porque vou continuar achando coisas, palavras repetidas. Tenho horror a elas.
— Costumas pedir a opinião de alguns leitores, antes de publicar?
— Sim, a começar pela Cremilda, sempre a primeira leitora, mas não suficientemente crítica, muito benevolente. Eu reclamo: não é possível, você lê, não diz nada.
Então Cremilda faz uma leitura superafetuosa e tu achas ruim, Sinval? Pergunto pelo livro que ele acaba de escrever, A faca e o mandarim, que conta a história do assassinato do senador Pinheiro Machado. Cremilda entra na sala:
— Está chegando no outro livro? Não quer deixar para depois do jantar?
Toca o telefone, é um amigo do casal: Pires Laranjeira, professor de Letras na Universidade de Coimbra, de passagem pelo Brasil, perguntando o número da Edla Van Steen, e querendo saber se é muito tarde para ligar para ela. Cremilda vai até grande vidraça que mostra, do outro lado da praça Argentina, o prédio em que mora a escritora.
— Tem luz na janela dela — diz a Pires Laranjeira — acho que podes ligar agora.
Há já uns bons quinze minutos, a mesa está posta, especialíssima, tudo preparado por Cremilda, de um jeito que até parece tão fácil, juntando umas coisinhas que tinha em casa, mas que acaba resultando numa refeição ligeira e deliciosa: uns três tipos de queijo, torradinhas, salada de folhas. Faminta, devoro rapidamente uma porção que acho digna, e alinho paralelamente faca e garfo sobre o prato vazio. Cremilda me adverte:
— Já terminou? Isso é ritual para uma noite inteira, Taís.
Sinval e Cremilda contam muitas histórias de viagens, dos planos para as férias, do dia de hoje. Os queijos e o vinho são consumidos lentamente, adensando o prazer da conversa, que se estende até a cozinha, onde Cremilda não me deixa ajudar em nada: coloca num instante a louça na máquina de lavar, ajudada pelo marido, e aproveita para me mostrar uns trecos que andou comprando:
— Olha esse porta-colheres. Comprei hoje mesmo, da Márcia, que vende coisas por catálogo: muito bom, não deixa a colher que mexeu a panela sujar o balcão.
Sinval se exaspera carinhosamente com a tendência acumuladora da mulher.
— Quando vou sozinho ao supermercado, tudo dá certo: levo uma lista e faço as compras num instante. Já a Cremilda não leva lista nenhuma. Entra nas lojas, olha ao redor e se pergunta, o que é que eu estou precisando? Claro que acaba comprando muito mais do que o necessário.
— É racionalismo demais, ir às compras com a estratégia traçada — retruca ela.
— Ah, Cremilda, não viste nada, ainda — aparto. — E eu, que monto a lista do supermercado de acordo com o percurso que vou fazer, para não precisar dar voltas e mais voltas entre as prateleiras?
Na manhã seguinte, quando Cremilda sair para a USP, Sinval entrará no seu gabinete e sintonizará o rádio na Cultura FM. Ouvindo música erudita, vai ler os jornais do dia. À tarde, vai se debruçar sobre a escrita de, quem sabe, uma história de amor impossível.