A imagem, de tão recorrente, já virou lenda urbana, quase: um homem magérrimo, subnutrido, pálido, olheiras profundas, trancado num escritório, angustiado diante de um papel em branco, por horas e horas catando a palavra exata para expressar suas idéias, para contar suas histórias. Uma vida tão intensamente apática que, ao contrário da existência do homem comum, não daria um romance. Fora os raros aventureiros, como Jorge Amado e Fernando Sabino, esta é a imagem do escritor, a do ser que perde os dias no imenso espaço de solidão de uma torre de vidro, que está na imaginação coletiva.
Curioso é que recentemente a figura do escritor vem aparecendo com freqüência como personagem de romances. Não que ele tenha sido esquecido por completo pelos criadores de antes, e alguns exemplos desta presença são bem curiosos. Fechando o sétimo volume de O tempo e o vento, Erico Verissimo revela a angústia de Floriano, que passa a última parte da trilogia, O arquipélago, sonhando se tornar escritor, e enfim toma a decisão de enfrentar o desejo e escreve o primeiro parágrafo do que viria a ser a saga da família Terra-Cambará, ou melhor, a saga do próprio Rio Grande do Sul.
Mais próximo da literatura contemporânea está o romance Dias de Faulkner, de Antônio Dutra, onde o escritor americano, entre largas doses de bebidas, jogos de sedução e programas oficiais, transita por uma São Paulo ainda ingênua e até romântica.
Mostrar que o escritor não é o ser estranho do imaginário popular não chega a ser novidade na literatura. E também fugindo do estereótipo para aprofundar-se na angustiante rotina de um candidato a escritor, Julián Fuks volta à ficção. Em seu novo livro, Procura do romance, o protagonista, Sebastián, é um brasileiro descendente de argentinos que volta a Buenos Aires e ao apartamento onde passou a infância. Aparentemente a viagem se dá como uma solução para as incontáveis dúvidas que o impedem de começar, de fato, uma carreira literária. Mas nada no texto pode ser lido de maneira tão óbvia. As buscas se bifurcam amplamente durante o desenvolvimento da história, que ora aponta na direção da própria identidade do personagem, ora resvala em questões amorosas.
Fascínio pelo fracasso
Naturalmente, o foco principal é literatura, ou pelo menos é nisso que Julián Fuks quer que o leitor acredite. E neste jogo de esconde-esconde, o autor brinca com as tantas regras que são impostas a um jovem escritor. Aliás, bem como as oficinas literárias, os, digamos, “cadernos de exercício” do pretendente a autor proliferam para a glória do mercado. O problema é que, como no soneto de Carlos Pena Filho, tais regras estabelecidas são caminhos incertos. Ao escritor, valem mais a persistência e a determinação na aprendizagem.
Enfim, caminhando pelas ruas de Buenos Aires e reencontrando velhos amigos, Sebastián vai descartando os ensinamentos adquiridos ao longo de muitas leituras e, por fim, como o título do livro anuncia, a experiência termina por ser somente a procura de um romance que não acontece, que o autor simplesmente não tem ousadia para escrever. Ou melhor, não consegue enfrentar a tarefa por não saber que história de fato quer contar.
Estamos diante de uma frustração, de um fracasso pleno, e aí reside o fascínio que o livro exerce. Atraindo a atenção do leitor, Julián Fuks o leva para outros tantos temas que quer, e consegue, subliminarmente, discutir.
Identidades
O primeiro e mais explícito destes temas, claro, são as referências literárias. Ninguém está só no universo, parece anunciar, ao relembrar as inseguranças de outros autores e, sobretudo, os gestos de introspecção de gênios como Borges e Kafka. Ao longo da narrativa, Sebastián vai colhendo pérolas e, de reflexão em reflexão, se aparelhando, se armando para dar início ao trabalho artístico. Mas algo o empurra para outras bandas, o desvia de seus propósitos, e tal atitude não pode ser creditada apenas à falta de um enredo ou mesmo de talento. Há algo mais no sub-reino deste escritor irrealizado.
Ao perceber isso, o leitor olha com mais atenção para uma outra busca, a da identidade necessária. Sebastián faz parte de dois mundos. Como seu criador, nasceu no Brasil, mas logo foi para Buenos Aires, onde passou a infância. Novas reviravoltas políticas obrigaram os pais a voltarem para o exílio, no Brasil, onde o protagonista passa a viver em definitivo.
O reencontro com o ambiente portenho coloca o personagem em xeque. É quando se sente um ser híbrido, uma mistura indefinida de culturas tão próximas e tão antagônicas. E aí lhe bate aquele sentimento que Darcy Ribeiro acertadamente chamou de “ninguendade”, quando o cidadão não consegue inserir-se em nenhuma das situações que estão postas em sua frente.
No caso de Sebastián, ao mesmo tempo em que resguarda o respeito por sua porção argentina, não quer se desfazer e até necessita dramaticamente de sua parte brasileira. Este dilema se reflete no sotaque que tenta domar, mas que também não insiste em renunciar, pois sabe que ali se concretiza uma de suas mais sólidas âncoras. E neste turbilhão vai jogando as lembranças e as pessoas de sua infância. Todos para ele são caros, no entanto já não sente a proximidade íntima que gostaria de devotar a toda essa gente e a todos esses cenários.
Também Buenos Aires já não se identifica com aquela que ele palmilhou com pés infantis. A cidade está toda envolvida numa tristeza profunda, digna de uma letra de tango. E se antes a melancolia era política, esta foi quebrada pelos ventos democráticos. Os generais, os gorilas do antigo regime que oprimiu o país e exilou os pais de Sebastián, estão de volta aos quartéis ou mofam em prisões. Mesmo assim, a paz não reina na Praça de Maio, na Casa Rosada.
Todo o universo político se volta para os massacres da crise econômica. Com a falta de oportunidades, jovens perambulam pelas ruas, velhos caminham sem esperanças, e o vento frio amofina ainda mais o ambiente já pesado e dolorido. As mães voltam à praça já com outro propósito. Agora, não basta encontrarem os filhos, precisam alimentá-los. E tudo parece seguir os rumos das velhas adagas borgeanas: a solução para os instantes extremos. Julián percorre o âmago de um povo empobrecido sim, mas digno e orgulhoso.
Um outro romance
Olhando árvores ressecadas pelo frio, Sebastián observa o subúrbio e começa a entender as bases de sua origem. No entanto, também isso não o satisfaz. Sua procura é mais profunda e, certamente, mais humana.
Toda esta humanidade surge quando o livro começa a sinalizar para o final. De repente, o narrador onisciente momentaneamente larga o ofício e dá lugar a uma narrativa em primeira pessoa. Humanizado Sebastián, a prosa muda de tom. Cresce em angústia. E surge uma súbita paixão, uma necessidade de falar de amor e desilusão. E talvez esta seja a real procura do romance, ou seja, a busca do termo no seu sentido lato, no sentido de sentimentalidades e não de objetividades.
Não se trata só de literatura a procura, enfim. Ela se transfigura numa linguagem que despe toda mitologia do ofício da escrita para falar de sentimentos. E assim, Julián Fuks faz de seu Procura do romance um exercício literário pleno, pois cata os cacos de todas as frustrações, sejam elas literárias, sociais ou amorosas.
Um livro moderno por ser amplo e multifacetário.