šŸ”“ Buenos Aires blues

Em "A metade fantasma", o argentino Alan Pauls narra a saga de um homem deslocado, perdido em si mesmo
Alan Pauls, autor de “A metade fantasma” Foto: Alejandra Lopez
01/01/2023

Como confiar em uma cidade que dÔ as costas para o seu rio? A pergunta, com que estampa o narrador de Medianeras, um dos filmes indie da sétima arte portenha, parece ser também a gênese de A metade fantasma, romance mais recente de Alan Pauls. Tanto o longa de Gustavo Toretto quanto o livro de Pauls tratam de um tema similar: a internet como mediação das relações, ou como no slogan de Medianeras, Buenos Aires na era do amor virtual.

Savoy, o protagonista de A metade fantasma, nĆ£o Ć© como MartĆ­n, o encabulado personagem do filme; e, claro, Carla nĆ£o tem quase nada de Mariana, a futura parceira de MartĆ­n, ainda assim, existe algo que cruza esse double date: a solidĆ£o das metrópoles — o tal do nĆ£o lugar, o espaƧo antropológico de invisibilidade das grandes cidades. Savoy, Carla, MartĆ­n e Mariana sĆ£o todos peƧas soltas do xadrez urbano, dos esquemas capitalistas de vidas vazias, preenchidas somente por um escape fortuito. No caso de Savoy, a fuga Ć© sair por Buenos Aires visitando casas e apartamentos para alugar, praticando um voyeurismo do espaƧo que, outrora, pertenceu e abrigou outras existĆŖncias. Ao mesmo tempo, coleciona objetos cuja utilidade Ć©, no mĆ­nimo, duvidosa.

Uma leitura mais atenta à psicanÔlise diria que o problema de Savoy teria a ver com questões da infância não resolvidas. Pauls não dÔ um indício certeiro dessa interpretação, porém, deixa pistas que possibilitam essa lógica.

Uma vez cismou com um desses abajures infantis inspirados nos antigos zootrópios, em cujas cĆŗpulas cilĆ­ndricas se projetam os prodĆ­gios da cinĆ©tica popularizados pelo primeiro cinema: trens a todo o vapor, atletas correndo, cavalos acompanhados em pleno salto. Por mais apressada que fosse, a referĆŖncia a uma prĆ©-história mĆ­tica da imagem em movimento — e o sĆŗbito laƧo Ć­ntimo entre a infĆ¢ncia da indĆŗstria audiovisual e a de um menino, um menino duplamente menino, porque imaginado sempre prestes a dormir — tocava em algum ponto fraco de Savoy (…).

Que ponto fraco seria esse, se é que existe? Na verdade, o protagonista Savoy estÔ muito mais fechado em si mesmo do que possa parecer. Seja por ser e estar vulnerÔvel, seja por um cansaço, imposto pela sociedade, Savoy estÔ totalmente perdido e obcecado, lançado ao mar aos seus próprios tubarões e turbulências.

Dessa obsessão, nascida do tédio e da impossibilidade de olhar a si mesmo como alguém ativo no mundo, Savoy joga para escanteio o que ainda lhe resta de vida. Aos cinquenta anos, estÔ completamente deslocado do tempo, existindo em um lapso tão íntimo que é incapaz de incorporar os avanços sociais. Pauls retrata esse deslocamento em um objeto banal de seu protagonista: um celular velho, ultrapassado para os padrões modernos. (O próprio Pauls é, na verdade, um nÔufrago digital: possui uma conta no Instagram, fechada e pouco atualizada.)

Se Savoy Ć© esse sujeito ainda preso ao sĆ©culo 20, Carla Ć© o oposto, aquilo que podemos chamar de nĆ“made digital. A conexĆ£o mais próxima entre dois, alĆ©m da internet — via Skype —, Ć© a relação estranha com casas: Carla cruza o mundo para ser uma espĆ©cie de cuidadora de moradias, sem qualquer laƧo sentimental ou fixo que a prenda ao lugar em que estĆ”. Essa alheação, que, em alguma medida Ć© necessĆ”ria para o seu trabalho, passa tambĆ©m para a forma com a qual se relaciona com as pessoas. Seu contato inicial com Savoy Ć© intermediado pelo computador — Savoy, claro, em uma mĆ”quina que muitos podem chamar de rudimentar — e, quando finalmente deixa de ser virtual, nĆ£o consegue suportar o peso da realidade, a forƧa do caos do encontro de dois corpos Ć  deriva.

Ɖ a partir dessa tensĆ£o, ora superficial, ora um mergulho mundo adentro, que A metade fantasma se sustenta. Pauls consegue tratar, sem ser sisudo, de temas que estĆ£o na nossa cara e, ao mesmo tempo, nĆ£o os traveste de urgentes ou necessĆ”rios, como se tornou praxe na literatura, principalmente, a literatura brasileira contemporĆ¢nea. O escritor argentino trabalha a sua história com naturalidade e desejo de contar uma boa história.

Passado, presente e futuro
A metade fantasma confirma a predileção de Pauls pela memória e pela resolução de mistĆ©rios ancestrais e imediatos. O passado, talvez sua obra mais conhecida por aqui — e que ganhou filme dirigido por Babenco e estrelado por Gael GarcĆ­a Bernal —, foi publicado hĆ” duas dĆ©cadas, porĆ©m jĆ” tratava dessas relaƧƵes sinuosas entre passado e presente. A trilogia das histórias — História do choro (2007), História do cabelo (2010) e História do dinheiro (2013) — tambĆ©m jĆ” se colocava de cabeƧa nas contradiƧƵes entre realidade e lembranƧa, história e memória, pessoal e coletivo.

Imenso devedor de Ricardo Piglia, que influenciou boa parte dos romances de Pauls, em A metade fantasma a relação mais próxima, na verdade, parece ser com outro portenho, Manuel Puig, em especial, O beijo da mulher-aranha — tambĆ©m transformado em filme por Babenco. Molina e Valentin, personagens de O beijo da mulher-aranha, vivem como Savoy, entre a ficção criada deliberadamente como espaƧo de manobra da vida e as memórias inventadas.

Esses traços de um mundo fugidio e de uma vida sem muito atrativo vão levando Savoy a uma espécie de apatia diante de tudo o que o cerca. Seus pontos de contato entre a realidade mais imediata e um contexto mais amplo se perdem pouco a pouco. Em determinada cena, em que estÔ conectado com Carla via Skype, Savoy duvida da identidade da amante por desconhecer o ambiente em que ela estÔ. Não o rosto dela, sua voz e quaisquer outros pontos comuns que conferem a ela a sua individualidade, mas os objetos que a cercam.

Nesse sentido, seriam, portanto, os objetos — esse delĆ­rio silencioso de Savoy — o verdadeiro, e talvez Ćŗnico, contato do protagonista com a sua realidade. Mais uma vez, o autor esconde uma conclusĆ£o fechada atrĆ”s de uma narrativa elĆ­ptica que vai construindo uma complexa relação centrĆ­fuga. Savoy, por certo, Ć© prisioneiro do seu próprio mundo, enfiando atĆ© a cabeƧa em suas paranoias e devaneios. Tanto alijamento nĆ£o poderia produzir outro efeito que nĆ£o fosse o isolamento e a devastação social. A solução, a Ćŗnica possĆ­vel, era suportar o mundo dopado.

Numa sexta-feira, por exemplo, a piscina era pura psicodelia. Brilhos, reflexos ondulantes, cores que vibravam. Uma cortina de hexĆ”gonos luminosos caĆ­a a quarenta e cinco graus. Escamazinhas de luz a tilintar na Ć”gua como lentes de contato perdidas. Savoy lamentou — primeira vez que lhe acontecia isso na piscina — nĆ£o ter ido chapado.

Ao fim e ao cabo, A metade fantasma é um dos livros mais interessantes e ambiciosos de Alan Pauls, e também um dos retratos mais pungentes de uma sociedade doente, incapaz de lidar com seus sintomas e cicatrizes. Savoy é o paciente terminal desse sistema de vida. E, mesmo sabendo que é impossível sair dessa, faz da sua deriva, e de seus pedaços, uma salvação ao seu modo.

A metade fantasma
Alan Pauls
Trad.: Josely Vianna Baptista
Companhia das Letras
322 pƔgs.
O passado
Alan Pauls
Trad.: Josely Vianna Baptista
Companhia das Letras
606 pƔgs.
Alan Pauls
Nasceu em Buenos Aires (Argentina), em 1959. Ɖ escritor, professor, roteirista e crĆ­tico de cinema. Mais conhecido por seus livros de ficção, como O pudor do pornógrafo (1985), Wasabi (1994) e O passado (2003) — vencedor do PrĆŖmio Herralde —, Pauls publicou tambĆ©m os livros de ensaios O fator Borges (2000) e A vida descalƧo (2006). Atualmente, graƧas a uma bolsa de criação literĆ”ria, vive em Berlim (Alemanha).
Jonatan Silva

Ɖ jornalista e escritor, autor de O estado das coisasĀ e Histórias mĆ­nimas.

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