Como confiar em uma cidade que dá as costas para o seu rio? A pergunta, com que estampa o narrador de Medianeras, um dos filmes indie da sétima arte portenha, parece ser também a gênese de A metade fantasma, romance mais recente de Alan Pauls. Tanto o longa de Gustavo Toretto quanto o livro de Pauls tratam de um tema similar: a internet como mediação das relações, ou como no slogan de Medianeras, Buenos Aires na era do amor virtual.
Savoy, o protagonista de A metade fantasma, nĂŁo Ă© como MartĂn, o encabulado personagem do filme; e, claro, Carla nĂŁo tem quase nada de Mariana, a futura parceira de MartĂn, ainda assim, existe algo que cruza esse double date: a solidĂŁo das metrĂłpoles — o tal do nĂŁo lugar, o espaço antropolĂłgico de invisibilidade das grandes cidades. Savoy, Carla, MartĂn e Mariana sĂŁo todos peças soltas do xadrez urbano, dos esquemas capitalistas de vidas vazias, preenchidas somente por um escape fortuito. No caso de Savoy, a fuga Ă© sair por Buenos Aires visitando casas e apartamentos para alugar, praticando um voyeurismo do espaço que, outrora, pertenceu e abrigou outras existĂŞncias. Ao mesmo tempo, coleciona objetos cuja utilidade Ă©, no mĂnimo, duvidosa.
Uma leitura mais atenta Ă psicanálise diria que o problema de Savoy teria a ver com questões da infância nĂŁo resolvidas. Pauls nĂŁo dá um indĂcio certeiro dessa interpretação, porĂ©m, deixa pistas que possibilitam essa lĂłgica.
Uma vez cismou com um desses abajures infantis inspirados nos antigos zootrĂłpios, em cujas cĂşpulas cilĂndricas se projetam os prodĂgios da cinĂ©tica popularizados pelo primeiro cinema: trens a todo o vapor, atletas correndo, cavalos acompanhados em pleno salto. Por mais apressada que fosse, a referĂŞncia a uma prĂ©-histĂłria mĂtica da imagem em movimento — e o sĂşbito laço Ăntimo entre a infância da indĂşstria audiovisual e a de um menino, um menino duplamente menino, porque imaginado sempre prestes a dormir — tocava em algum ponto fraco de Savoy (…).
Que ponto fraco seria esse, se é que existe? Na verdade, o protagonista Savoy está muito mais fechado em si mesmo do que possa parecer. Seja por ser e estar vulnerável, seja por um cansaço, imposto pela sociedade, Savoy está totalmente perdido e obcecado, lançado ao mar aos seus próprios tubarões e turbulências.
Dessa obsessĂŁo, nascida do tĂ©dio e da impossibilidade de olhar a si mesmo como alguĂ©m ativo no mundo, Savoy joga para escanteio o que ainda lhe resta de vida. Aos cinquenta anos, está completamente deslocado do tempo, existindo em um lapso tĂŁo Ăntimo que Ă© incapaz de incorporar os avanços sociais. Pauls retrata esse deslocamento em um objeto banal de seu protagonista: um celular velho, ultrapassado para os padrões modernos. (O prĂłprio Pauls Ă©, na verdade, um náufrago digital: possui uma conta no Instagram, fechada e pouco atualizada.)
Se Savoy é esse sujeito ainda preso ao século 20, Carla é o oposto, aquilo que podemos chamar de nômade digital. A conexão mais próxima entre dois, além da internet — via Skype —, é a relação estranha com casas: Carla cruza o mundo para ser uma espécie de cuidadora de moradias, sem qualquer laço sentimental ou fixo que a prenda ao lugar em que está. Essa alheação, que, em alguma medida é necessária para o seu trabalho, passa também para a forma com a qual se relaciona com as pessoas. Seu contato inicial com Savoy é intermediado pelo computador — Savoy, claro, em uma máquina que muitos podem chamar de rudimentar — e, quando finalmente deixa de ser virtual, não consegue suportar o peso da realidade, a força do caos do encontro de dois corpos à deriva.
É a partir dessa tensão, ora superficial, ora um mergulho mundo adentro, que A metade fantasma se sustenta. Pauls consegue tratar, sem ser sisudo, de temas que estão na nossa cara e, ao mesmo tempo, não os traveste de urgentes ou necessários, como se tornou praxe na literatura, principalmente, a literatura brasileira contemporânea. O escritor argentino trabalha a sua história com naturalidade e desejo de contar uma boa história.
Passado, presente e futuro
A metade fantasma confirma a predileção de Pauls pela memĂłria e pela resolução de mistĂ©rios ancestrais e imediatos. O passado, talvez sua obra mais conhecida por aqui — e que ganhou filme dirigido por Babenco e estrelado por Gael GarcĂa Bernal —, foi publicado há duas dĂ©cadas, porĂ©m já tratava dessas relações sinuosas entre passado e presente. A trilogia das histĂłrias — HistĂłria do choro (2007), HistĂłria do cabelo (2010) e HistĂłria do dinheiro (2013) — tambĂ©m já se colocava de cabeça nas contradições entre realidade e lembrança, histĂłria e memĂłria, pessoal e coletivo.
Imenso devedor de Ricardo Piglia, que influenciou boa parte dos romances de Pauls, em A metade fantasma a relação mais próxima, na verdade, parece ser com outro portenho, Manuel Puig, em especial, O beijo da mulher-aranha — também transformado em filme por Babenco. Molina e Valentin, personagens de O beijo da mulher-aranha, vivem como Savoy, entre a ficção criada deliberadamente como espaço de manobra da vida e as memórias inventadas.
Esses traços de um mundo fugidio e de uma vida sem muito atrativo vão levando Savoy a uma espécie de apatia diante de tudo o que o cerca. Seus pontos de contato entre a realidade mais imediata e um contexto mais amplo se perdem pouco a pouco. Em determinada cena, em que está conectado com Carla via Skype, Savoy duvida da identidade da amante por desconhecer o ambiente em que ela está. Não o rosto dela, sua voz e quaisquer outros pontos comuns que conferem a ela a sua individualidade, mas os objetos que a cercam.
Nesse sentido, seriam, portanto, os objetos — esse delĂrio silencioso de Savoy — o verdadeiro, e talvez Ăşnico, contato do protagonista com a sua realidade. Mais uma vez, o autor esconde uma conclusĂŁo fechada atrás de uma narrativa elĂptica que vai construindo uma complexa relação centrĂfuga. Savoy, por certo, Ă© prisioneiro do seu prĂłprio mundo, enfiando atĂ© a cabeça em suas paranoias e devaneios. Tanto alijamento nĂŁo poderia produzir outro efeito que nĂŁo fosse o isolamento e a devastação social. A solução, a Ăşnica possĂvel, era suportar o mundo dopado.
Numa sexta-feira, por exemplo, a piscina era pura psicodelia. Brilhos, reflexos ondulantes, cores que vibravam. Uma cortina de hexágonos luminosos caĂa a quarenta e cinco graus. Escamazinhas de luz a tilintar na água como lentes de contato perdidas. Savoy lamentou — primeira vez que lhe acontecia isso na piscina — nĂŁo ter ido chapado.
Ao fim e ao cabo, A metade fantasma Ă© um dos livros mais interessantes e ambiciosos de Alan Pauls, e tambĂ©m um dos retratos mais pungentes de uma sociedade doente, incapaz de lidar com seus sintomas e cicatrizes. Savoy Ă© o paciente terminal desse sistema de vida. E, mesmo sabendo que Ă© impossĂvel sair dessa, faz da sua deriva, e de seus pedaços, uma salvação ao seu modo.