Algumas vezes nos deparamos com livros que trazem mensagens implícitas, como por exemplo “mate o seu pai e coma a sua mãe”, ou algo mais prosaico como “McDonald’s engorda”. Claro, essas mensagens estão ali, colocadas pelo escritor, para que você as entenda ou não. Quando um escritor coloca uma mensagem explícita do tipo: “por que você não desiste de ler esta porcaria e vai assistir aos sitcoms da Sony? Ou pega um cinema? Ou escutar uma música? Para quê, afinal romances? Para quem? E eu respondo: para mim”, meu amigo, quando isso está escrito na página 88 de um romance com 395, siga o conselho, feche o livro, e nunca mais o reabra. Pode até parar de ler esta resenha, que se tornará inútil, pois você não lerá o livro. Agora, se quiser insistir, eu aviso: o livro é ruim, e essa resenha não irá deixá-lo melhor.
(…)
Você continua aqui? Pois bem, então, agüente. Vou comentar aqui o último livro de Fernanda Young, Aritmética. E já aviso, eu não segui o conselho de Fernanda na página 88, pois devo fazer por merecer o vultuoso salário que recebo deste Rascunho, ou seja, o prazer de escrever sobre livros, já que continuamos nossa quixotesca empreitada de escrever de graça e receber apenas impropérios de leitores e artistas feridos em seu orgulho.
Voltando ao livro. Para ver como esse último trabalho de Fernanda é um desperdício de papel, comece pela contracapa:
“A geometria dos triângulos amorosos. O frio calculismo das traições. A matemática do sexo, com seus problemas sem solução. A diminuição de um sentimento, a soma de dois desejos. A divisão de um coração, a multiplicação das culpas. A paixão elevada à ultima potência. A raiz quadrada do ódio, o fracionamento das emoções. O ímpar que há nos pares e o paradoxo do amor infinito (sic).”
Juro, se você conseguir ser cativado por tão esdrúxulo jogo de palavras, há algo errado.
Basicamente, o enredo gira em torno de seis pessoas, cujas histórias se entrelaçam às vezes em relações sentimentais, outras em relações sexuais, outras ainda em relações familiares. João Dias é o narrador da história, escritor famoso já na terceira idade. América é sua amante. Entre eles, no entanto, uma ridícula regra de encontros, que de tão absurda nem na ficção funciona: a distância entre um encontro e outro é o dobro do tempo entre o precedente, uma progressão aritmética ao longo dos anos.
Talvez seja um componente do amor que eu não entenda. Pois se há tanto desejo e amor entre eles, se ambos já sabem que são um do outro para o resto da vida, mesmo que o primeiro encontro deles se dê quando ambos estão grávidos, mesmo com tudo contra, por quais cargas d’água eles não se juntam? Ora, a explicação é uma só: para dar um argumento para o livro existir. Mas é um argumento pobrinho, coitado.
Os outros seis personagens são um pouco melhores. Eduardo, filho de João, é um escritor frustrado, cujo único livro de sucesso é a narração praticamente factual de seu caso com Elisa, neta de América. Eduardo é o típico cinqüentão em crise, que necessita de uma mulher uns 20 anos mais nova, e não hesita em largar uma relação estável por uma aventura que endureça seu pau. Já Elisa não tem motivações tão aparentes em trair seu marido, Rigel, fotógrafo das mais belas mulheres vestidas ou nuas do Brasil. Ela apenas deseja viver algo diferente, acreditar em algo diferente.
Rigel, por sua vez, refém de suas parceiras neuróticas, acaba se envolvendo com Mariana, neta de João, sem nem mesmo saber o motivo. É outro caso de um cinqüentão que vê na possibilidade de comer uma gostosa de 20 anos o renascimento de seu pau flácido, de ereção difícil. Todas as relações familiares aqui descritas são reveladas no terço final do livro. Até lá, ainda que já haja a suspeita de que essas relações familiares existam, é apenas a suspeita. Então, pelo menos um ponto positivo Fernanda tem.
Outro ponto positivo — mas positivo apenas para quem considera o eixo Rio-São Paulo o umbigo do universo, ou melhor, o piercing do umbigo do universo, com todo o resto do mundo gravitando ao redor das polêmicas de ser aceito em um lugar e descoberto artisticamente em outro — é que Fernanda coloca em Elisa a sua necessidade de niteroiense de se afirmar na Paulicéia Desvairada. Como Elisa, Fernanda trabalha na tevê, no (que dizem ser um) bom programa Saia justa (não tenho tevê, não posso julgá-lo), tem filhas gêmeas, enfim, Elisa é quase um alter ego de Fernanda. Mas, cazzo, há mais no mundo que essa polêmica babaca do provinciano precisar se afirmar para ser aceito na capital. Então, mostra tudo o que Elisa fez para conseguir seu lugar de destaque em São Paulo.
Fernanda consegue ainda ser irônica consigo própria e com quem acha que ela não escreve bem. Lá vai o trecho:
“Queria ser uma grande jornalista, e isso requer bom senso. Por que Elisa iria dizer que não suporta o Caetano Veloso cantando em espanhol? Que benefício isso iria trazer para ela ou para a sociedade? A quem interessa, se ela acha que os parangolés do Oiticica uma bobagem? Quem é ela para achar alguma coisa sozinha? Então, detestava o uso do gerúndio, detestava a Fernanda Young. E entendia tudo de música eletrônica, principalmente a alemã.”
Ela sabe que muita gente não gosta do que ela escreve. Mas até aí, muita gente também não gosta do Paulo Coelho, e ele vende para cacete. Então, e também ajudada pela presença na tevê, ela vai vender bastante.
Então, por que o livro é ruim? Basicamente o enredo é ruim, a maneira como a história é escrita é ruim, a tentativa de se comparar relações amorosas com equações matemáticas não passa de um exercício gráfico para colocar nas páginas, sem pé nem cabeça nem beleza, devo dizer, pois a maior parte das pessoas não gosta de matemática, não simpatizamos com nenhum dos personagens, cujas personalidades são desenvolvidas no limite da auto-ajuda e da psicologia rasteira, os recursos de narração usados são fracos, as invenções não funcionam (como na parte A chance de mudar de idéia e recapitular, página 236, quando seis páginas são desperdiçadas colocando do avesso o que estava escrito nas seis precedentes, para dar um novo rumo à história, ou ainda na página 313, quando o texto de Fernanda intercala-se a outros extraídos da internet, diretamente em inglês [e que mal fez o português?]), enfim, o livro parece um carro com bateria fraca, você bate a chave, e ele faz nhém-nhém-nhém e não liga. Há toda a promessa de potência, de velocidade, de força, mas o carro fica no nhém-nhém-nhém. Sem falar no desleixo da revisão.
Tem quem gosta. Tem quem acha “delicioso” o embate entre realidade e ficção presente no livro (isso supondo que você conhece Fernanda, e supondo ainda que ela se revela por inteiro em Elisa, e supondo ainda que ela se exporia dessa maneira). Eu não achei nada. Para dizer a verdade, achei o livro brochante, literalmente. Enquanto há uma cena de sexo bem contada entre Rigel e Elisa, há muitas que simplesmente tornariam um Viagra sem efeito. Balde de água fria não, banheira de água com gelo, isso sim. E devo dizer que já brochei na capa, pela grossura: aquele triângulo cinza que lembra os pêlos da vulva, aquela letra vê do avesso que parece um pênis. Putz, dava para ser menos apelativo? A capa é de Alexandre Machado. Se for quem estou pensando, é marido de Fernanda. Tudo sob os mesmos lençóis.
Então, se você chegou até aqui, e ainda assim resolver se aventurar por Aritmética, lembre-se do conselho da página 88. Felizmente, agora não são só os críticos que metem o pau (retoricamente falando, devo dizer) na obra de Fernanda Young, é também um exercício de autocrítica.
Fui.