Brinquedo de Deus

Relevância das questões levantadas em “A invenção de Morel”, romance do argentino Bioy Casares, garante sua longevidade
Adolfo Bioy Casares: genialidade atemporal.
01/06/2006

Antes de começar, quero lhes dizer que não sou louco o suficiente a ponto de contradizer Jorge Luis Borges. É dele a seguinte afirmação sobre A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares: “Discuti com o autor os pormenores da trama e a reli; não me parece uma imprecisão ou uma hipérbole qualificá-la de perfeita”. Assim sendo, este é um livro perfeito. O que tentarei aqui é dar o olhar de um leitor voraz que não tem formação literária suficiente para ser um crítico e que, além de não ser louco para discordar, é pelo menos lúcido para dizer, ao fim do livro: sim, Borges está coberto de razão.

A invenção de Morel, do argentino Adolfo Bioy Casares, existe para a humanidade desde 1940. E desde aquela época ele é considerado uma obra-prima da literatura mundial, um texto que merece ser lido por todos, ou melhor, um texto que deveria ser lido por todos, como deveriam ser lidos todos os clássicos. E como ele está há mais de 65 anos na praça, muita coisa já foi dita sobre ele. Felizmente, eu sabia apenas que o livro era muito bom, e nunca li nada sobre ele. Assim, tive o prazer de pegar um livro que era altamente recomendado com olhos de iniciante. E ao chegar ao fim do livro, não há como nem porquê discordar de Borges. A invenção de Morel é um livro fantástico.

Em um resumo de vestibular, poderíamos dizer que A invenção de Morel fala de um homem que, fugindo da polícia venezuelana, vai parar numa ilha no Pacífico. O livro seria o diário de sua permanência na ilha, o relato dos fatos que lhe acontecem por lá. O fugitivo escolhe a tal ilha por ela ser misteriosa, “de mau agouro”, como diz um mercador italiano a quem ele pede ajuda durante a fuga. Não sabemos qual é o motivo pelo qual a polícia venezuelana o persegue, e nem é necessário saber. Sabemos apenas que a ilha é escolhida justamente por não ser habitada e afastar pessoas devido à sua má fama. Mas este é o resumo do preguiçoso. O livro é muito mais que isso.

Na ilha, o fugitivo encontra (ou julga encontrar) outras pessoas, incluindo uma morena, Faustine, por quem se apaixona platonicamente. Durante um bom tempo, acompanhamos todas as suas tentativas de se aproximar dela, todas fracassadas. Ele não compreende exatamente o porquê dessa rejeição. Mas persegue seu intuito obstinadamente, sem esmorecer. E se o fugitivo de Bioy não é visto pela mulher ou pelos outros habitantes da ilha, como não o identificar por semelhança a tantas outras pessoas invisíveis que vivem hoje em dia? Excluídos, segregados, pessoas que não fazem parte de cânones de beleza e/ou inteligência desaparecem na multidão e são solenemente ignoradas pelos outros, chegando mesmo a se tornar invisíveis.

As incursões do homem pela ilha mostram que ela já foi habitada um dia. Lá o fugitivo encontra uma casa, a que chama de museu, e dentro dela um gerador de energia movido a marés. À medida que o tempo passa, ele descobre quem construiu tudo aquilo — Morel, o personagem do título — e o porquê da construção. Morel era um cientista que 0desenvolveu uma máquina para captar toda a pessoa, não apenas a voz ou a imagem ou ambos. Seria uma espécie de cinema 3D com tato e olfato, eventualmente até o paladar. Assim, todas as pessoas que o fugitivo vê na ilha são apenas reproduções do que um dia foram aquelas pessoas. Seu amor por Faustine o motiva a um dia querer sair da ilha, antes que novas revelações o façam mudar de idéia.

Até aí, poderíamos ter apenas mais um romance fantástico. No entanto, a genialidade de Bioy Casares, mostrada já aos seus 26 anos, idade com a qual escreveu A invenção de Morel, torna o livro algo mais que simplesmente um romance. Para começar, Bioy inventa um editor para o diário, que faz observações de modo a desacreditar o seu autor em alguns casos, ou a referendar seu relato. Por exemplo, quando as explicações técnicas do fugitivo não parecem plausíveis, o editor aparece para retocar uma informação e dizer que aquilo é possível.

Em segundo lugar, temos o fato de que Bioy escreveu o livro numa época em que se acreditava que a tecnologia seria capaz de tudo (bom, ainda hoje tem gente que acredita nisso), até mesmo de sobrepujar a morte. Assim, ao contar a história de um inventor que acredita ter superado a morte, ele faz uma dura crítica à crença absoluta na tecnologia como forma de avanço da humanidade. Bioy consegue mostrar, sem nunca ser panfletário, que o ser humano é mais do que apenas os seus cinco sentidos. Há qualquer coisa na espécie que a torna singular, e que as máquinas não conseguem reproduzir. Fazendo um paralelo com os dias de hoje, pode ser um bom recado a quem acredita na clonagem humana como uma maneira de se alcançar a imortalidade. Ou seja, passados 66 anos de sua publicação, A invenção de Morel continua atualíssimo.

Eventualmente o editor-fantasma do diário tenta colocar a invenção de Morel em seu devido lugar. Diz lá o editor/Bioy: “Resta o mais implausível: a coincidência, num mesmo espaço, de um objeto e de sua imagem total. Este fato sugere a possibilidade de que o mundo seja constituído, exclusivamente, de sensações”. E quem não tem essa impressão vez ou outra? Somos mais que sensações, certo, mas há momentos em que apenas uma boa sensação é o que importa.

Outro ponto importante é lembrado pelos editores na orelha do livro. Bioy era ateu. Morel, no entanto, tem como objetivo superar Deus e ser capaz ele próprio de perpetuar a sua vida e a de quem mais for importante para ele. É claro que esse objetivo tem conseqüências graves, tanto para ele como para as outras pessoas. No entanto, a ambição e a crença de que a tecnologia pode tudo fazem Morel não enxergar conseqüências, fazem-no relevá-las, tudo em busca de um objetivo para ele maior. Escrito numa época de guerra, ainda que uma guerra distante da América do Sul, não seria exagero supor que Morel também se referia a um momento da humanidade em que os fins justificavam os meios. Os homens brincavam (brincam) de Deus, e uma hora pagariam por isso. Novamente, apenas para citar a clonagem humana como forma de uma pessoa tentar se tornar imortal, se a ciência já mostra que gêmeos univitelinos são diferentes, por que clones seriam semelhantes? Que tipo de pessoas serão esses clones? E quem lidará com eles, quem cuidará deles, para que se cuidará deles?

No caso de Morel, a sua invenção mata todas as pessoas e coisas vivas (plantas e animais) que registra. Faustine, Morel e todos os outros personagens que aparecem no livro não passam de espectros de pessoas que um dia viveram em algum lugar. O fugitivo, que em determinado momento pensa em escapar da ilha para ir atrás da verdadeira Faustine, quando descobre que todos estão mortos, passa a procurar uma alternativa para se manter próximo a ela. Ele então estuda os mecanismos da máquina de Morel para se registrar nela e assim inserir-se, ainda que como um enxerto ao roteiro original, no “filme” que passa na ilha. Claro, com as conseqüências que já sabemos quais são. Assim, vemos um personagem que não se importa com a morte, desde que ela lhe traga o que tanto deseja.

Estas reflexões tornam o livro de Bioy atemporal e atualíssimo. Os temas que ele aborda — o homem brincando de Deus, a fé na tecnologia, o amor impossível — continuam presentes em nossas vidas, talvez até mais do que à época da publicação de A invenção de Morel. Só por isso, já valeria a pena ler o livro. Mas há também o estilo de Bioy, elegante, preciso, sem nada em excesso. As 126 páginas do livro correm sob nossos olhos, e queremos logo descobrir o que acontece com o fugitivo, se ele consegue escapar de um destino que parece inevitável. A trama é perfeita, não há pontos soltos, nem saltos, nem brechas. O livro não poderia receber nem mais uma linha, não há espaço, nem ter uma linha subtraída, ela faltaria.

Para deixar a reedição de A invenção de Morel ainda melhor, a CosacNaify acrescentou, ao fim do texto, uma crítica de Otto Maria Carpeaux, O mundo de Morel, publicada no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, de 26 de março de 1966. É marcante a maneira como Carpeaux encerra a sua crítica: “A invenção de Morel é uma sátira. Mas o objeto da sátira não é a técnica e, sim, a condição humana. Pois assim como o fugitivo de Bioy Casares temos todos nós a escolha, apenas, entre a morte pela peste e a prisão na vida — até a morte”. Talvez seja uma afirmativa um tanto quanto pessimista, mas na prática ela é verdadeira. Não temos escolha. Podemos tentar tornar o caminho entre o útero e a cova relativamente agradável, nada mais. Ah, há também um prólogo de Jorge Luis Borges, em que ele analisa A invenção de Morel. Sensacional.

Apenas para concluir, o livro é um clássico, daqueles que, uma vez terminado, ficará na estante dos livros para serem relidos um dia, quando os mesmos questionamentos a respeito da vida e do porquê de estarmos aqui surgirem de novo em nossas mentes. Mas um clássico não responde a essas perguntas, na prática ele nos confunde ainda mais. Pode não ser um alívio, mas pelo menos é um grande prazer saber que os gênios da humanidade, se não conseguiram responder a essas questões, pelo menos souberam fazer grandes trabalhos com elas.

Trecho de A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares (1.449 toques)

Hoje, nesta ilha, aconteceu um milagre: o verão se adiantou. Trouxe a cama para perto da piscina e tomei banho até bem tarde. Era impossível dormir. Dois ou três minutos fora bastavam para converter em suor a água que devia me proteger da espantosa calmaria. De madrugada, um gramofone me despertou. Não pude voltar ao museu para buscar as coisas. Fugi pelos barrancos. Estou nos baixios do sul, entre plantas aquáticas, indignado pelos mosquitos, com mar ou córregos imundos até a cintura, percebendo que antecipei absurdamente minha fuga. Acredito que aquela gente não veio me procurar; talvez não tenham me visto. Mas sigo meu destino; estou desprovido de tudo, confinado ao lugar mais parco, menos habitável da ilha, a pântanos que o mar suprime uma vez por semana.

Escrevo isto para deixar testemunho do adverso milagre. Se em poucos dias não morrer afogado ou lutando por minha liberdade, espero escrever a Defesa perante sobreviventes e um Elogio de Malthus. Atacarei, nessas páginas, os devastadores das selvas e dos desertos; demonstrarei que o mundo, com o aperfeiçoamento das polícias, dos documentos, da imprensa, da radiotelefonia, das alfândegas, torna irreparável qualquer erro da justiça, é um inferno unânime para os perseguidos. Até agora não pude escrever nada senão esta folha que ontem eu não previa. Quantos são os afazeres na ilha solitária! Como é insuperável a dureza da madeira! Como é maior o espaço que o pássaro movediço!

A invenção de Morel
Adolfo Bioy Casares
Trad.: Samuel Titan Jr.
Cosac Naify
136 págs.
Adolfo Bioy Casares
Nasceu em Buenos Aires, em 1914, e morreu na mesma cidade, em 1999. Sua obra, vasta, inclui romances, contos e peças teatrais. Considerado um dos maiores ficcionistas do século 20, é autor de livros como Histórias fantásticas e Diário da guerra do porco, entre outros.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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