Desde que comecei a ler a obra de José J. Veiga não busquei detalhes de sua biografia, o que é comum quando nos propomos a devassar todos (ou quase todos) os livros de um autor. Contentei-me em emprestá-los da Biblioteca Pública, que possui um grande montante deles por sinal, e me sujeitar a comentários e outros rabiscos atravessados na leitura, pelos quais percebi que o autor foi bastante apreciado pelos jovens, sabe lá se por imposição. Impressiona também a quantidade de novas edições com selos de renome. Do resto, sei pouco.
Cada vez que me detinha frente à sua estante — onde, por coincidência e força do sobrenome, é vizinho a José Mauro de Vasconcelos — em busca do próximo título, a linguagem e temática constantes em cada livro sendo digeridas, me coçava de curiosidade para espiar o volume que possuía uma entrevista com o autor, mas percebi que não era, no seu caso, necessário.
Confesso que teria muitas perguntas a fazer se o encontrasse dando uma entrevista ou autógrafos por aí — o que é impossível, ao que parece, ele já está morto. Também não teria coragem. De que maneira perguntar por que, salvo raras exceções, seus livros contêm a tragicidade de um personagem, pai ou mãe, no leito de morte, deixando a quem fica o engulho do remorso? Ou então, teria alguma vez na vida servido o exército ou tomado parte em algum grupo revolucionário, guerrilha, manifestação etc.? Algum motivo deve haver para a falta de liberdade e a vigília de governos e reinados opressores terem sido um tema tão precioso para ele.
Com certeza, ao fazer essas perguntas, correria um grande risco. Ele poderia rir e dizer (pois demonstrou em O Risonho Cavalo do Príncipe que a imaginação foi a força motriz para a realização de suas obras) que nunca gostou de política e não vê mistério algum na morte. Por que não?
De que experiência pessoal nasceram suas histórias é complicado saber. O jornalismo tantas vezes aproximou a vida dos escritores de seus textos, indissociavelmente, como se fosse impossível buscar o homem a partir da obra, e apenas o contrário valesse. Lembro de Saramago, quando escreveu que nada sabemos das dúvidas de um Camões, o que temos é só os seus poemas, e isso basta?
A força da narração e o envolvimento com que o enredo atrai o leitor é o que surpreende ao primeiro contato. Uma história com sabor para umas trezentas páginas termina em pouco mais de cem. Outra estranheza que o livro desperta está tanto naquilo que é narrado quanto no que é ocultado pelos personagens. Tio Baltazar abre uma cia. numa cidadezinha mítica. Por algum motivo, os acionistas o derrubam e começam a controlar a vida das pessoas. O que mais angustia: sempre há alguém da comunidade que sabe o que está acontecendo, envolve-se com os “forasteiros”, mas não comenta nada.
É certo que a síntese alegoria, imaginação e conflito com o outro desconhecido está inserida no realismo mágico. Pode-se dizer até que Veiga foi um dos desbravadores dessa cartilha no Brasil. No entanto, o proseador não apenas bebeu e deu continuidade ao universo kafkiano, sua busca está mais atrás, arraigada na tradição que a grande literatura tem, das histórias que sobrevivem ao tempo, como o Dom Quixote, de Cervantes ou o Gargantua, de Rabelais.
A salada mista não é desproposital, juntando autores de diferentes estirpes. Apenas percebo que, por mais que Cervantes tenha buscado na realidade histórias para o Quixote, ou então os personagens de Gargantua possam ser uma referência aos monarcas da época, a associação não é necessária. A obra resiste e rompe invólucros para habitar apenas o imaginário dos leitores.
Outra diferença visível para a obra de Kafka está nos personagens. O sofrimento dos protagonistas kafkianos é individual, seja o K., de O Castelo, o metamorfoseado Gregor Samsa ou o condenado de Na Colônia Penal.
O morador que estava envolvido com a tal cia. é o pai de Ju, o menino que narra a história. A presença da empresa força a sua mudança de comportamento com a família, mudança que acontece também com o restante da cidade, ou seja, não há quem escape das conseqüências, o drama é coletivo. Mas o incidente não faz com que os moradores tenham um mote para repensar seus valores ou decidam lutar. Sua possibilidade de ação apenas se turva. Sombra de Reis Barbudos foi, dentro dessa proposta, seu principal tento. Em Torvelinho Dia e Noite o paradigma se repete. “Às vezes as circunstâncias nos obrigam a um comportamento que não é o nosso”.
Além dos “forasteiros”, corrobora para esse cenário a morte gradativa desses lugares míticos e de convivência pacífica. As pessoas vêem as tradições, os valores, a referência dos vizinhos se abalarem. O livro de contos A Estranha Máquina Extraviada é o exemplo de como o homem do interior — o “interior”, nesse caso, é um prisma — perde o domínio sobre o seu espaço. Ou vive a indagação de um Camus: “Onde poderei sentir-me em casa?”.
À sua maneira, Veiga mostrou ter o faro apurado para o seu tempo — mesmo se desvencilhando da sua noção cronológica — ao perceber que no imaginário reside o prazer da condição humana. E talvez esse prosador não encontre tantos leitores no século que se inicia, caso os colégios deixem de adotá-lo. A imaginação anda esvaziada de visão de mundo e vendida à indústria cultural, e boa parte dos leitores buscam na arte cópias de uma realidade que confirme suas parcas vidas. O autor de Sombra… apostou na imaginação como resposta à submissão a esse mesmo tempo, sempre fugaz. A essa mesma realidade imposta. Abandonados ou não na penúltima estante do corredor da Biblioteca, o encanto de suas histórias continua aceso.
A novela, alegoria, ou ensaio filosófico Quando a terra era redonda, do livro De Jogos e Festas pode ser um editorial para o restante da sua obra. O narrador tem em mãos uma tese falando que as coisas na Terra um dia tiveram formatos curvos. Ele pede calma, diz que isso pode ter sido possível, e relembra o passado, quando o olhar era moldado, com um dispositivo, para enxergar as superfícies todas quadradas. O que nos faz pensar que a ideologia dominante pode ser, muitas vezes, implodida pela literatura.
Por isso o autor privilegia a criança dentro da história, pois é o olhar de descoberta, apontando o que o adulto tantas vezes não percebe, que amplia a percepção e relembra coisas que perdemos pelo caminho. O narrador infantil pode ser, então, a voz do que José J. Veiga realmente pensava. Mas quem vai saber?