Apesar da resistência por que passa a criação literária fora do mainstream (blogs, sites e outras mídias virtuais que permitem pronta interação entre autor e leitor), percebe-se cada vez mais o surgimento e a disseminação da produção, inclusive inédita, de escritores e poetas, em larga medida permitida por essas novas formas de acesso e divulgação que dispensam o livro impresso. Uma das escritoras que seguem esse percurso é Andréa del Fuego (nome artístico de Andréa Fátima dos Santos), 32 anos, autora da trilogia de livros de contos breves Minto enquanto posso (2004), Nego tudo (2005) e Engano seu (2007), pertencente à geração pós-90 (Clara Averbuck, Adriana Lisboa, Állex Leilla, Adelice Souza, Simone Campos, etc.) que tenta se impor justamente por essa interação e diálogo permanentes entre os diversos sujeitos envolvidos com o processo literário.
Antecedida pela chamada Geração 90, grupo que sofreu e ainda sofre ataques de toda ordem, mas cujos alguns bons autores já se fixaram em carreiras-solo (para ficarmos em três exemplos: Nelson de Oliveira, Marcelino Freire e Joca Reiners Terron), Andréa del Fuego até o momento exercitou uma ficção sempre curta, marcada por enredos notadamente urbanos, incrementada por falares periféricos, elementos da cultura pop, do rock-n’-roll, história em quadrinhos e registros para além do modismo, dos clichês e das fórmulas comerciais. De todo modo, fica difícil restringi-la a determinado grupo, período ou mesmo região, uma vez que, embora a maioria desses novos autores resida em São Paulo ou Rio de Janeiro, eles costumam ser marcados mais por distinções do que semelhanças. Alguns, inclusive, ainda nem lançaram livro, a despeito de participarem de antologias, eventos e de escreverem em blogs, como a escritora Maria Alzira Brum Lemos. O mais instigante é que eles têm conseguido colocar a literatura brasileira em pauta, alimentando polêmicas ou eventualmente combinando movimentação com qualidade literária.
Andréa costuma trocar opiniões com leitores que lêem seus textos em seu blog (http://delfuego.zip.net/) sem que muitos deles sequer conheçam um de seus três livros ou ainda despendido qualquer valor para adquiri-los. Mas o que se detecta nessa prática, para além da facilidade de se publicizar e discutir literatura, é o esforço de ambas as partes em interagir, embora o mérito do processo quase sempre se deva mais à acessibilidade do que propriamente à qualidade literária. Andréa, exceção, mantém um blog, participa de chats, comenta textos enviados via e-mails, ou seja, escreve e divulga uma literatura que não exclui o livro impresso; antes, a inclui em outras mídias, sempre na expectativa de intercambiar relatos e textos seus com mais e mais pessoas. Porém, é daí que surgem controvérsias — e muitos dos preconceitos contra as novas mídias que permitem a livre expressão.
Após ressaltar esse tópico de uma literatura acessível graças à internet, algo que vem sendo largamente praticada pelos autores pós-geração 90, cremos que vale ainda ressaltarmos um outro contexto no qual também essa jovem inevitavelmente se insere, o do registro literário feminino brasileiro, derivado de uma tradição de autoras (Rachel de Queiroz, Cecília Meireles, Lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst, etc.) com enredos, personagens e situações estruturados mais ou menos de modo uniforme. Como autora brasileira contemporânea, Andréa del Fuego certamente terá de encarar a comparação com a escritora Clarice Lispector, insistentemente reiterada pela academia e por periódicos, resenhas, teses e dissertações, como se o país tivesse lugar apenas para uma escritora. Isso dito, claro, sem tencionarmos questionar seu enorme e incontestável talento. Além dessa assertiva, Andréa deve enfrentar outro estranho hábito, o de se comparar uma autora sempre a outra, nunca a um homem. De qualquer forma, nosso propósito em citar essas questões é ressaltar que essa literatura (de estrutura formal mais clássica) vem sendo posta em desassossego por muitas dessas práticas discursivas abertas, registros breves e curtos e que repercutem formas de existências e modos de ver e sentir contemporâneos e na qual, evidentemente, a literatura não poderia se excluir.
Por sinal, essa nova safra de mulheres escritoras, entre 30/40 anos, teve recentemente boa recepção em duas antologias organizadas por Luiz Ruffato (25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira e 30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, respectivamente, de 2004 e 2006). As marcas são relatos que envolvem grande diversidade sexual, racial e social, com histórias fragmentadas, sem unidade ou coesão entre si. Este, aliás, é o caso de Andréa. Em seus três livros, vemos o embaralhamento de histórias e depoimentos, com muitos relatos em primeira pessoa, como se tivessem grande função de catarse e de libertação para aquele que conta.
Até o momento, a autora exercitou uma literatura sempre calcada em testemunhos realizados em poucas linhas, mas que conseguem alguns bons insights. Embora haja um sentido de certa derrisão, de aparente derrocada em episódios que reverberam decepções, fracassos e tentativas (quase) sempre frustradas de se alcançar algo ou alguém, há também humor, ironia e ambigüidade em textos que buscam a redenção, espaço fronteiriço de desespero e enlevo, nostalgia pelo que passou e não volta mais, certa crença num futuro mais promissor, elementos embalados por uma linguagem acessível, coloquial, mas que não exclui o monólogo interior e o fluxo da consciência em narrativas com muitas descrições cotidianas e poucas reverberações psicológicas. As personagens mais descrevem do que sentem, o que não retira (a despeito dos contos terem de cinco a dez linhas) a densidade da maioria da suas histórias. Um exemplo:
Quando me pediu pra ir embora, achei melhor. A Miriam estacou no portão, ela e Francisco de Assis. Devota, carismática de uma estátua, cada dia se entretendo mais com Assis que comigo. Homem quieto, de pouca força no braço, operado da vesícula, eu. Saí pela rua, na faixa de pedestre, encontrei Assis em pessoa. Se estava lá, como o vi com Miriam? Agarrei o santo e o fiz voltar comigo até em casa. Assis atendeu, vi a barra da saia de Miriam terminar de subir a escada. Um santo pediu pro outro entrar e fechou a porta na minha cara. São dois. (Engano seu, pág. 38)
Contudo, a sensação é que as histórias de Andréa del Fuego poderiam ter mais fôlego, alongando-se e acrescentando uma dicção ainda mais própria para além do grotesco às vezes explorado. Em todo caso, vale ressaltar que, embora a maioria de seus textos seja breve, por outro lado eles não são efêmeros, voláteis. Com trabalho de linguagem buscando não só a interação, mas a concisão, seu registro não é raso, superficial, ao contrário. Suas histórias, de tão dinâmicas e criativas, podem lhe permitir que se alargue ainda mais, exercitando-se num gênero como o romance, mais extenso e que lhe possibilitará uma densidade psicológica maior — algo a conferir em seus futuros textos.