Contos de amor rasgados, de Marina Colasanti, fisga o leitor já pelo título. Todo mundo gosta de uma boa história de amor. Mas e esses contos, serão contos de amor secretos, que foram escritos e depois rasgados, para permanecerem apenas no reino das palavras? Ou são contos de amor tão intensos, tão fortes que são ditos rasgados? Já nos primeiros contos percebe-se que as duas interpretações são válidas. Colasanti insere o leitor num universo mágico, cheio de segredos velados e revelados — como o da mulher que bota ovo ou o da sereia mantida em cativeiro na banheira —, e, o tempo todo, conduz a narrativa numa intensidade emocional impressionante. Não há meias histórias. Não há meias intenções nem meios amores. São todos rasgados. E nessa denominação cabe também a dor, inerente ao amor, e que ela explora revelando as pequenas tragédias da vida a dois, mesmo que esses dois sejam seres fantásticos e surreais, como muitas pessoas de fato são.
Colasanti bebe em fontes nobres. Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, José Lins do Rego, Guimarães Rosa. É possível ver semelhanças entre a maneira como ela lida com esse universo incrível e como desenvolve a linguagem e a introspecção das suas personagens com alguns dos maiores escritores dos últimos tempos, clube que Colasanti corteja.
O livro tem uma coerência interna que faz ver que a autora constrói um todo a partir dos vários pedacinhos. Por mais que em um dos contos a mãe cate piolhos na cabeça da filha para depois, finalmente, extrair-lhe um pensamento, e em outro a mulher passe o marido a ferro quente para tirar suas pregas, em todos Colasanti coloca um pouco desse mistério que é a natureza humana. Em todos, ela revela um pouquinho do que podemos ser entre quatro paredes, longe dos olhares de censura alheios e das convenções sociais, e explora toda a maravilha e o horror que isso pode conter. Talvez por isso não existam os outros no livro. Existe o interior, a experiência intensa e profunda do relacionamento com o outro, mas o outro geralmente é um só. Não há espaço para a terceira pessoa nas paixões de Colasanti. Dois é o número ideal.
Muitas vezes existe a aproximação entre as histórias do livro e fábulas de La Fontaine e Esopo, a mitologia e a filosofia gregas ou clássicos como Barba Azul, de Charles Perrault. Colasanti digere as histórias, que traz para o contemporâneo, e coloca seu próprio tempero em temas já batidos, tecendo uma rica teia de intertextualidade e usando também do inesperado para surpreender o leitor.
Os contos são também uma reflexão sobre seu próprio processo de criação e sobre o poder da linguagem em si, como no texto em que um homem ouve de uma cartomante que uma palavra vai matá-lo e começa, então, a evitar as palavras de tal forma que se esquece de todas elas. As palavras têm seu devido poder reconhecido no livro.
A edição da Rocco deste livro que foi lançado em 1986 traz na capa um quadro pintado pela própria Colasanti, o que agrega uma informação interessante sobre a autora, que é a sua formação e atuação também como artista plástica. De fato, ela não deixa de lado a plasticidade na hora de escrever. Nem escritora, nem pintora, é a soma dos dois. E se em um dos seus contos existe um seio em primavera, do qual nasce uma flor, esse seio é também a criação da imagem desse acontecimento, assim como a da mulher que, desprezada pelo marido, se torna por fim uma estátua de sal. Colasanti domina o simbólico e o poético de uma maneira assustadora, e faz deles o que bem entende, na mídia que escolher.
Os contos são breves: meia página, duas no máximo. A autora não precisa de mais que isso para estabelecer as regras de uma intensa fantasia que, em seu nonsense, é completamente plausível. Mas fica um gostinho de quero mais. A vontade de ler histórias mais longas com personagens que tem tanto para dar. Ao mesmo tempo fica a sensação de que com tanta coisa para dizer e com tantos assuntos para abordar, o melhor mesmo é que sejam breves e intensos, como se todos fossem um último poema em prosa, seguindo a definição de Manuel Bandeira. Terno, dizendo as coisas mais simples e menos intencionais. Ardente como um soluço sem lágrimas. Com a beleza das flores quase sem perfume, a pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos, mas, principalmente, a paixão dos suicidas que se matam sem explicação.