Brasil no espelho

Nos ensaios de "Verifique se o mesmo", Nuno Ramos defende que a crise brasileira é resultado das semelhanças, e não das diferenças
Nuno Ramos, autor de Verifique se o mesmo
30/05/2020

Verifique se o mesmo, segunda reunião de ensaios produzidos pelo artista visual e escritor paulistano Nuno Ramos, está sob os efeitos de uma persistente força centrípeta, que impõe aos assuntos tratados o retorno a um mesmo e instigante mote: a cultura brasileira está sob os efeitos de uma persistente força centrípeta, que impõe a suas obras um retorno para dentro, uma interiorização em certo sentido forçada, mas também buscada pelos artistas, que, sem identificar ressonância no mundo e nas pessoas, sem qualquer perspectiva de debate ou de reflexão vivificante, se acostumam a ignorar a seara pública e a investir em trabalhos que se encapsulam em si mesmos. Não é à toa que ilustre a capa, ironicamente, uma fotografia de Lygia Clark cortando a exótica fita de Möbius — figura geométrica circular em que, sem descontinuidade, um lado se encontra com seu verso. Esse símbolo matemático, uma metáfora de nosso panorama cultural, é mencionado diversas vezes ao longo do livro.

Há artistas e obras cruciais para a argumentação. Certamente Lygia Clark com Caminhando (1962). Ao lado dela, João Gilberto no disco Chega de saudade (1959) ou no Álbum branco (1973), Graciliano Ramos em Vidas secas (1938) ou S. Bernardo (1934) e Mira Schendel, com a dedicação a um alfabeto particular. Também Glauber Rocha de Deus e o diabo na terra do sol (1964), Caetano Veloso com, por exemplo, Transa (1972) ou Tunga e a performance Xifópagas capilares, de 1984. Estão eles apenas na primeira parte da coletânea. A seção Dispersos continua enfileirando nomes, que são lidos, de alguma forma, na mesma chave: Oswaldo Goeldi, Nelson Cavaquinho, Jorge Guinle, Marina Rheingantz, Marcia Xavier; encontra-se ocasião até mesmo para os criativos projetos visuais do próprio Nuno, como Iluminai os terreiros (2006) e o nunca concretizado Cartas ao negro. Nessas análises, que esperam familiaridade razoável com as obras mencionadas, o autor confere especial relevância a aspectos formais, por meio dos quais, em grande medida, reconhece o movimento interno e os discursos mais profundos.

Avaliar a adequação ou a pertinência desse olhar talvez seja o primeiro gesto da crítica, mas é também o mais errado. Porque, incorrendo num equívoco de método, partiria dos mesmos eventuais pressupostos que o escritor. Nosso objetivo primordial, porém, deve ser justamente questioná-los, pô-los em estresse para verificar se, após exames, eles ainda se sustentam. Faremos isso, inicialmente, com a simples indagação: bom, mas que artistas e obras? Por incrível que pareça, a dúvida persiste, mesmo tendo sido respondida. É que, para situar a discussão, é essencial entender como variadas manifestações artísticas, mesmo aquelas da indústria de massas, estão também presas ou se independentizaram do paradigma da interioridade. Considerando que “esse chamado para dentro é uma característica central da nossa cultura, ao menos em seu período moderno”, como afirma Nuno na página 24, então é necessário supor uma abrangência não restrita aos artistas citados. Logo: Wesley Safadão estaria no mesmo trem azul de, digamos, Egberto Gismonti? André Vianco dividiria a mesma cela literária que Guimarães Rosa? Xuxa e Glauber Rocha morariam na mesma prateleira cinematográfica?

Uma réplica sensata deve se constranger ao “não”. Porque as obras desses e de tantos outros artistas têm objetivos diferentes e, portanto, expectativas díspares em relação ao público. Pois, se alguns processos, para a felicidade deles, não fazem exigências exclusivistas à audiência, também não estarão subjugados à falta de reverberação, em maior ou menor grau, inevitável dos produtos que precisam de alguma disposição de espírito. A obra deve necessitar, no cerne do seu projeto, de uma relação profunda com os espectadores para que sinta fraturada ou incompleta a própria realização quando não encontra determinadas posturas críticas de recepção. E, quanto mais for demandante disso, mais aguda sua estrangeirização do mundo que a cerca. Aqui ou na Europa. O que distingue o Brasil talvez seja a violência com que algumas de nossas melhores produções são vitimadas por esse alheamento opressivo, obrigando os criadores a recuperar energia vital de outras fontes. De qualquer maneira, as premissas de Nuno veem sua validade manter-se em certa região da arte brasileira, e não em sua inteireza. Mas outras áreas da cultura podem dar à tese uma pavorosa materialidade.

Política do caos
A política brasileira das últimas décadas se tornou o palco privilegiado do mesmo, e essa figura misteriosa, derivada daquele aviso antes comum na entrada de elevadores, se revelou, para Nuno, o leitmotiv da crise atual de nossa democracia. Ele explica cruzando as ideias de dois pesquisadores. De um lado, lê a perspectiva de René Girard sobre o desejo como cópia e mimese; de outro, relembra a compreensão de Raymundo Faoro sobre a drenagem espúria à qual as classes dominantes submetem o país historicamente. Os que se achegam desejosos ao poder como as mariposas à lâmpada acabariam se queimando também numa perpétua disfuncionalidade que, em certo sentido, igualaria todos os partidos. Colabora para isso a paisagem política com inúmeras siglas que nada significam e as duas forças principais (PSDB e PT) em essência amigadas a uma social-democracia capenga e pouco transformadora.

Assim, a ruína contemporânea do Brasil “teria origem, nessa leitura, numa crise do mesmo e não da diferença, por semelhança e não por tensão entre opostos inconciliáveis (diferente, portanto, da crise dos anos 60, que levou à ditadura), ou, para dizer de outra forma, seria resultante do aprisionamento que se impõe eliminando as energias diferenciais. A atribuição de culpa, geral e irrestrita, seria, nessa leitura, o passo inevitável, e o resultado do processo, uma diferenciação radical, vizinha à violência, entre o que parecia semelhante”, escreve o autor. E continua mais à frente, apontando as consequências do nosso colapso: “Alguma coisa definitivamente se formou, está formada, deixamos que se formasse — e não parece nada boa. O ensaio já não é geral, o mesmo é que é, rondando e ganindo e zumbindo por toda parte”.

Suspeito que estamos e Gente frouxa, ambos publicados na Folha de S. Paulo no intervalo de quatro anos, simbolizam esse ocaso perfeitamente. No primeiro, de 2014, o elenco de suposições sobre a falência brasileira desenha esse abismo que maculou a esperança dos anos petistas e, portanto, do país. A violência absurda, a estupidez das cidades que avançam sobre o mar, a brutalidade da indústria cultural, a decadência do Estado, a ausência de projetos políticos, o desprezo aos desvalidos, tudo leva à constatação de que estamos perdidos, para usar um eufemismo — deixamos que se formasse. No segundo, de 2018, às vésperas da eleição presidencial, não havia mais suspeitas, mas antes a necessidade de apontar a inatividade total das figuras políticas da República diante da tragédia, que, afinal, se concretizou — deixamos que se formasse.

Os dois textos, que guiados por Möbius dão substância teórica à sensação de desalento geral, são registros muito eloquentes da ruptura com nós mesmos. Colocados lado a lado na edição, sugerem ao leitor o óbvio que parece ser nossa história recente: estava tudo ali, a tempo suficiente para que não deixássemos acontecer. Mas permitimos. Talvez porque Nuno Ramos não tenha sido lido, nem discutido. Ainda há tempo para começar a notar a beleza no que não é espelho?

Verifique se o mesmo
Nuno Ramos
Todavia
304 págs.
Nuno Ramos
Nasceu em 1960, em São Paulo (SP). Formado em filosofia na USP, é artista visual, músico e escritor. Desenvolveu trabalhos em pintura, escultura, desenho. Em 2006, recebeu o prêmio da Barnett and Annalee Newman Foundation, de Nova York, pelo conjunto de sua obra. Em 1993, teve o primeiro livro publicado, Cujo, pela Editora 34. Ó, coletânea de contos editada pela Iluminuras, ganhou o Prêmio Portugal Telecom de Literatura em 2009.
Alan Santiago

É revisor de textos da UFPR. Já foi repórter nos jornais Folha de S. PauloAgora São Paulo e O Povo. Publicou o livro de contos A lua de Ur num prato de terra (2009, 7Letras)

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