Em dezembro do ano passado, Inés Casañas estava soterrada por centenas de originais de livros em seu escritório. Tinham sido enviados para um dos mais importantes e tradicionais prêmios literários da América Latina, que completou seu 60º aniversário agora em 2019. Ela organizava os originais em pilhas — aqui poesia, aqui romance, ali literatura infantojuvenil, ali teatro. As pilhas se espalhavam pelas estantes, mesas, cadeiras, pelo chão.
O escritório de Inés fica numa pequena mas inconfundível construção em Havana, um edifício baixo em estilo art déco tardio a poucos passos do Malecón: a Casa de las Américas, essa venerável instituição cultural que já é patrimônio do nosso continente. O mar Caribe, ali ao lado, como se não bastasse o empenho em ir comendo tudo lentamente com salitre, às vezes se põe furioso, e as ondas se esborracham contra o paredão de concreto, trepam por cima dele, não raro penetram pelas ruas e vão arrastando tudo. Já fizeram seus estragos na própria Casa.
Faz quarenta anos que Inés trabalha na instituição, hoje como especialista do Centro de Investigaciones Literarias. A sala contígua à sua é ocupada por Jorge Fornet, diretor do Centro e codiretor da Revista Casa. Quanto a mim, estava em Havana pela segunda vez, agora com o intuito de pesquisar a história das relações, no âmbito da literatura, entre a Casa de las Américas e o Brasil. Mas é difícil saber por onde começar: é vertiginosa a atividade dessa Casa — desde sua criação, sob direção de Haydée Santamaría, logo nos primeiros meses da Revolução Cubana, até este aniversário de sessenta anos da instituição, agora presidida pelo poeta e ensaísta Roberto Fernández Retamar (Santamaría presidiu a Casa até falecer, em 1980; nos seis anos que se seguiram, esteve no leme o pintor Mariano Rodríguez).
Talvez uma relevante informação inicial, para nós, seja a de que foi com um título brasileiro — Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis — que se inaugurou, em 1963, a Coleção de Literatura Latinoamericana publicada pelo fundo editorial da Casa. E que nos anos seguintes, enquanto um triste Brasil sucumbia ao golpe militar, as traduções dos nossos autores continuaram: Graciliano Ramos, Carolina Maria de Jesus (Quarto de despejo foi publicado pela Casa em 1965), José Lins do Rego, Carlos Drummond de Andrade, Euclides da Cunha, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, José de Alencar e tantos outros.
Três anos após sua fundação, a Casa de las Américas divulgou a convocatória para um prêmio literário que se propunha “ser lugar de encontro e de debate dos escritores de todo o mundo, e em especial da nossa América”. E pensar no quanto isso voltou a soar subversivo entre nós, brasileiros: encontro e debate, esses substantivos que andam tentando tirar do nosso léxico; escritores, os supostos inúteis dos nossos dias, como de resto todos os artistas e intelectuais; por fim, a nossa América, onde fica? Nunca soubemos muito bem em que continente se situa o Brasil, gringo de si mesmo.
Prêmio Casa
Foi Alejo Carpentier quem ajudou a preparar as bases do prêmio, e convidou a maioria dos membros do júri da primeira edição do então chamado Concurso Literario Hispanoamericano. No início, contemplavam-se os gêneros poesia, conto, romance, teatro e ensaio, mas logo foram incorporados o testemunho, a literatura para crianças e jovens, as literaturas caribenhas em língua inglesa e francesa (e seus respectivos crioulos), a literatura brasileira e as indígenas.
Com a entrada de autores brasileiros, numa proposta do escritor e filósofo guatemalteco Manuel Galich, o prêmio passou, em 1964, a se chamar Concurso Literario Latinoamericano. No ano seguinte adotaria seu nome definitivo, com qual o conhecemos e respeitamos tanto, hoje: Prêmio Literário Casa de las Américas. É a confirmação do generoso compromisso da instituição em congregar autores, pensadores e artistas latino-americanos da forma mais ampla possível.
Em seis décadas, passaram pelo júri do prêmio nomes como Julio Cortázar, Italo Calvino, José Lezama Lima, Ernesto Cardenal, Aurora Bernárdez, Carlos Fuentes, Allen Ginsberg, André Gorz, José Celso Martinez Correa, Antonio Candido, Eduardo Galeano, José Saramago e tantos outros, vindos de várias partes do mundo para honrar um evento literário que, como disse Silvio Rodríguez no discurso de inauguração do prêmio em 2018, oferece “provas, em primeiro lugar, de que o bem é possível, e de que a arte e a cultura são parte de sua substância”.
Naquele ano de 1964, a categoria teatro foi vencida por um brasileiro — Oduvaldo Vianna, com Cuatro cuadras de tierra. Na categoria testemunho, Márcio Moreira Alves foi premiado em 1972 com Un grano de mostaza, sobre o qual escreveu o júri:
Se le concede el premio porque se trata de un testimonio vívido de la realidad actual de Brasil […]. Porque expone, en un estilo objetivo y de relevante belleza literaria, una parte importante de la situación del hombre latinoamericano de nuestros días.
Nessas décadas iniciais, porém, as obras brasileiras concorriam, em tradução, com as obras em espanhol. A literatura brasileira foi finalmente incluída no Prêmio Casa como categoria autônoma em 1980 (alguns anos antes, em carta a Haydée Santamaria, Márcio Moreira Alves fazia um contundente pedido de que pudéssemos concorrer com livros em português: “O Prêmio Casa de las Américas é talvez o mais eficaz esforço para descolonizar a nossa literatura e os nossos trabalhos de análise política”, escrevia ele).
O júri de 1980 premiou os poemas de Cidade morta, de Otávio Afonso, e os contos de Maracanã, adeus, de Edilberto Coutinho. Desde então, o prêmio de literatura brasileira já contemplou obras de, entre outros, Ana Maria Machado, Moacyr Scliar, Deonísio da Silva, Guiomar de Grammont, João Almino, Alberto Mussa, Rubem Fonseca, Ana Maria Gonçalves, Bernardo Ajzenberg, Luiz Ruffato, Maria Valéria Rezende e Angela Leite de Souza, que observou: em Cuba, “algumas utopias deixaram de sê-lo: a saúde e a educação, pontos-chave do programa de governo, socializaram-se de fato. E, ao que parece, graças ao êxito desse binômio, a cultura nunca perdeu sua vitalidade”.
À safra futura
As manifestações culturais que vêm sendo acolhidas pela Casa de las Américas e as iniciativas de fomento à cultura promovidas ali vão, para tomar como exemplo somente eventos recentes ou programados para este ano de 2019, desde exposições de arte popular dominicana e peruana até colóquios sobre a história e a cultura das mulheres latino-americanas e caribenhas, a diversidade cultural no Caribe, os latinos nos Estados Unidos, os estudos sobre a Afroamérica. Fazem parte do calendário de 2019, ainda, uma Semana da Cultura Dominicana, o Prêmio de Composição Casa de las Américas (aberto a toda a América Latina), oficinas literárias, concertos, um encontro de cantautoras latino-americanas, apresentações de livros e palestras como a do alemão Michael Zeuske, em torno de seu livro Escravidão: uma história da humanidade. Cabe acrescentar que não há sala vazia na Casa: o público prestigia os eventos com um interesse e um fervor que vi em poucas partes do mundo. Eventos que são, diga-se de passagem, gratuitos, todos eles.
Não terá sido por acaso que a Casa de las Américas foi contemplada em 2018 com o Prêmio Unesco-Unam (Universidade Nacional Autônoma do México/Jaime Torres Bodet), que a cada dois anos chancela com seu valioso reconhecimento — e uma importância de cinquenta mil dólares — “os esforços de uma pessoa, grupo de pessoas ou instituição internacional que tenha contribuído para o desenvolvimento do conhecimento e da sociedade através da arte, do ensino e da pesquisa na área das ciências sociais e humanidades”.
Em tempos de tanta descortesia e de tanta fumaça sendo jogada sobre o nosso passado, tempos em que às vezes temos a atordoante sensação de estar andando para trás na história e desabonando o valor de um trabalho como esse exaltado pela Unesco, é preciso lembrar o que nos dignifica. A mão estendida em lugar do muro (e do murro). O diálogo e a tolerância em lugar do fundamentalismo. A celebração da diversidade, da criatividade, do fato de sermos tantas e tantos em corpos, vidas e histórias variados que são, justamente, a medida da nossa relevância e do que temos a contribuir à comunidade. Como escreveu Primo Levi: “É preciso o dissenso, o grão de sal e de mostarda: o fascismo não os quer, os proíbe, e por isso não és fascista; quer todos iguais e não és igual”.
Se não parece ser este um tempo propício ao otimismo, como, por outro lado, acreditar em qualquer coisa que seja menos do que o melhor de nós? Julio Cortázar, um dos grandes amigos da Casa de las Américas, escreveu, em 1971, num longo poema chamado Policrítica en la hora de los Chacales: “todos juntos iremos a la zafra futura,/ al azúcar de un tiempo sin imperios ni esclavos”. Palavras que dispensam tradução, como tantas vezes é o caso entre nossos dois idiomas irmãos. Como foi o caso quando entrei na livraria que fica no térreo da Casa de las Américas (chamada Rayuela, em homenagem a Cortázar). Vendo que eu começava a remexer nos livros, o Sr. Roberto Navarro Rodríguez, livreiro que trabalha ali há quarenta anos, veio para o meu lado, me cumprimentou e me disse: Usted está en su casa.