Gosto de reler o texto de Paulo Leminski em que ele diz, reiteradas vezes, que a idéia de “evolução e desenvolvimento”, extraída da área tecnológica, econômica e industrial, não faz nenhum sentido quando aplicada à arte. O texto (que pode ser encontrado no livro Uma carta uma brasa através, da editora Iluminuras) se chama Cenas de vanguarda explícita e, cheio de bom senso, argumenta que “a arte não avança, indo ‘para a frente’, como as pernas quando caminham. Avança para todos os lados, como a pele num dia de muito frio ou muito calor”. Se um avião voa mais alto, mais rápido e transporta mais passageiros do que um dirigível, o melhor é dar adeus ao dirigível. Mas no terreno da arte não há evolução desse tipo. Tanto isso é verdade que Leminski não se cansa de exemplificar: “Um quadro de Matisse não é portador de mais informação do que uma tela de Rembrandt. O teatro de Brecht não é superior ao de Sófocles. Um filme de Godard não abole a existência de Cidadão Kane. Uma canção de Caetano ou uma ópera de Arrigo Barnabé não são, necessariamente, melhores do que uma canção de Ismael Silva ou de Dolores Duran. Ou de Arnaut Daniel.”
Uma das qualidades dos novos poemas de Ademir Assunção, reunidos no recém-lançado Zona Branca (Altana, xx págs.) é justamente reforçar a tese de Leminski. Pois à maneira da pele num dia de muito frio ou de muito calor, os poemas de Ademir não avançam para a frente, como se palmilhassem uma trilha linear, mas para todos os lados, como uma explosão ou um campo de força capaz de contaminar presente, passado e futuro.
Zona Branca não é o roteiro de uma história em quadrinhos futurista, baseado na vida de Clara Crocodilo ou do gigante negão, Itamar Assumpção. É o presídio de segurança máxima para onde são enviados os rebeldes, os dissidentes e os desajustados mais perigosos. Não se trata de uma penitenciária convencional, com paredes, grades, muralhas e portões. Trata-se, antes, de uma prisão metafísica, situada em outra dimensão. Uma vez lá, o detento não perde o contato com o nosso mundo. Separado de nós por uma fina película, sua pena é justamente essa: poder nos ver e conviver conosco, sem, no entanto, conseguir participar de nossa rotina nem se comunicar com quem quer que seja. Por mais que muitas religiões defendam a existência de locais semelhantes, para os quais seria conduzido o espírito dos grandes pecadores, a Zona Branca ainda não existe de fato. É apenas mais uma das criações do poeta e jornalista Ademir Assunção, que, a partir de uma dica do compositor Frank Zappa — “The White Zone is for loading and unloading only. If you gotta load or unload, go to the White Zone. You’ll love it… It’s a way of life…” (Joe’s garage, ópera-rock de 1979) —, condensa numa única imagem duas ideologias místicas distintas: a dos românticos e simbolistas do século 19 e a da cultura de massas da segunda metade do século 20.
Mas, cuidado! Ademir fornece dados sobre Zona Branca — presídio — nas orelhas da capa de Zona Branca — livro — como quem passa informações incompletas e distorcidas, só para burlar o sistema de defesa do leitor. Não acredite no tom de novela de ficção científica, nem na promessa de sexo, aventura e violência contida na suas palavras finais, pseudo-kitschs, à maneira de Arrigo Barnabé: “Por isso Zona Branca é muito mais sofisticada do que uma colônia penitenciária convencional. E incomparavelmente mais segura. As chances de fuga são mínimas. Mas sem que o sistema de segurança encontrasse uma explicação plausível, um jovem dissidente conseguiu escapar. E resolveu escrever um livro de poesia”. Zona Branca — livro — é muito mais do que as peripécias de um fugitivo do ciberespaço. É pura poesia.
Dividida em sete sessões (Cosmorama, Um deus está a caminho, Jazz kamaiurá, Luas, éguas & golfinhos, O anjo louco da história, Descida aos inferninhos e O lótus nasce na lama), Zona Branca é a condensação das qualidades apresentadas nos livros anteriores de Ademir Assunção, sem os excessos. Continuam presentes o cuidado formalista com a linguagem aplicado ao coloquialismo beat, a volatilidade da poesia chinesa misturada com o lixo da cultura de massas, de LSD Nô (Iluminuras, 1994), o humor, a paródia, as referências aos quadrinhos, ao cinema, à tevê e ao rock’n’roll como forma de relativizar o que certa elite convencionou chamar de “alta cultura”, de A máquina peluda (Ateliê Editorial, 1997), a crítica social e a imersão nas sociedades primitivas, na lógica onírica e cinematográfica, de Cinemitologias (Ciência do Acidente, 1998).
Uma vez que toda obra criativa não passa de um campo de força capaz de questionar e interferir criticamente nas obras vizinhas, o que novos poemas como Escrito na pele, Matéria fina e delicada: o amor e Tribo reiteram é justamente o que críticos como Décio Pignatari, hoje, e Mikhail Bakhtin, ontem, vêm propondo há muito tempo: não recusar a miscigenação entre o erudito e o popular, identificar o luxo que há no lixo e desmascarar o lixo que há no luxo. Porém, tal procedimento não deve jamais privilegiar a mediocridade e a diluição: o resultado tem de ser sempre o mais sofisticado possível. Não se trata de dialética, em que dois termos se fundem para gerar um terceiro. Trata-se de bater no liqüidificador ingredientes muitas vezes excludentes e coar o caldo, separando da matéria grosseira tudo o que for puro como a areia das ampulhetas. Quase sempre o que fica é uma pasta mestiça, em que o antigo e o novo estão de tal maneira amalgamados que não é mais possível separar um sem danificar o outro. Uma pasta híbrida — como campos de força que se imbricaram. Aliás, encarar um livro de poemas como um campo de força é muito útil quando o que se quer é justamente mensurar a eficácia deste objeto tão volátil: o livro de poemas. Por esse viés, o objetivo da crítica seria determinar, mais do que tudo, a dimensão, a potência e o alcance dos milhares de campos de força que são postos nas livrarias ano após ano. Composta de cientistas, a crítica literária teria como objetivo a Física Poética. Zona Branca, por conseqüência, nos induziria a pensar o livro de poemas mais como energia do que como matéria sólida.
Outro fato a ser anotado: neste novo livro quase não há o esmerado trabalho tipográfico aprendido com os concretistas e pós-concretistas, muito presente em LSD Nô. Em vez do jogo de tipos e corpos de letra, Ademir optou por explorar a fundo o intervalo entre os versos, procedimento que permite, caso sejam justapostas imagens distintas, tirar desse choque de contrários centelhas mais valiosas do que as produzidas por formas mais convencionais de versificação. Um bom exemplo disso está em A queda em preto e branco:
o sol guache derretido no carvão do asfalto
onde o moleque retina em pânico
recebe o pipoco da lei
: anjo caído
na porta do reino de deus
O primeiro verso sinaliza uma direção que é subitamente alterada pelo segundo. A força poética da figura do sol e a do guache derretido no carvão do asfalto nasce do fato de estarem, ambas, impressas lado a lado, sem vocábulos que as una. Essa é a lógica da montagem cinematográfica e da composição dos ideogramas chineses — procedimento caríssimo a Ademir e a toda a escola estética da qual ele se alimenta. Mas, apesar deste procedimento fazer parte da rotina criativa de Ademir, como atestam seus outros livros, em Zona Branca ele está a serviço de uma atmosfera mais trágica, menos jocosa. O carpe diem dos epicuristas e o “Ah, vem, vivamos mais que a Vida” de Omar Khayyam tiveram de dividir o assento com certa visão melancólica do mundo. Penso nos poemas de Zona Branca como competentes traduções poéticas da seguinte afirmação de Schopenhauer: “Todo querer se origina da necessidade, portanto da carência, do sofrimento. A satisfação lhe põe termo; mas para cada desejo satisfeito, dez permanecem irrealizados. Além disso, o desejo é duradouro, as exigências se prolongam ao infinito; a satisfação é curta e de medida escassa. O contentamento finito, inclusive, é somente aparente: o desejo satisfeito, imediatamente dá lugar a um outro; aquele já é ilusão conhecida, este ainda não”. Os novos poemas de Ademir Assunção são fotogramas do instante fugaz, de pura alegria e tristeza, em que um desejo acaba de ser satisfeito e já começa a ceder o lugar a outro, tão intenso e urgente quanto aquele. Zona Branca, presídio, é o interstício entre estes dois planos existenciais.