Borges no WhatsApp

Terceiro livro de ficção de Vinícius Portella traz as novidades tecnológicas para o centro de relações desastrosas e ausentes
Vinícius Portella, autor de “O inconsciente corporativo”
01/09/2023

Em tempos em que quatro de cada cinco notícias são sobre o ChatGPT e sua ameaça àqueles que vivem da escrita e, de quebra, à existência da humanidade, é bem-vinda a ficção que relaciona pessoas com a tecnologia e como tudo isso pode dar muito errado.

Em O inconsciente corporativo e outros contos, o brasiliense Vinícius Portella imagina situações que envolvem a vida pessoal e laboral de homens e mulheres em que gadgets e apps são antropomorfizados.

Ficamos na dúvida sobre o que é mais ameaçador, “eles”, seres formados por bits, ou nós mesmos, responsáveis por relações amorosas cada vez mais distantes, preguiçosos que reclamam o tempo todo, vítimas do passado e do ódio típico da polarização estimulada pelas redes sociais. Culpar o digital parece mais simples.

Em Concentração, nos deparamos com um espelho, pegos no flagrante mau uso desse recurso tão precioso que vendemos aos nossos empregadores — o tempo. Ali nos identificamos com a dificuldade de nos concentrarmos em meio a tantas redes sociais e seus disparos de dopamina a conta-gotas, na recompensa ao cérebro de cada curtida ou mensagem. Ou na frustração de não ter mensagens novas. Como numa montanha-russa, o autor nos leva lentamente até lá em cima, retratando um cotidiano de tédio extremo no ambiente do trabalho remoto, para depois despencar numa mudança de ritmo, indo do banal ao metafísico em dez segundos.

Como bem destaca Verônica Stigger na orelha do livro, esse pequeno conto inaugural cria uma espécie de “aleph digital”, “um vórtice espiralado em que todas as conexões contêm todas as demais conexões”. Para Stigger, “é essa virtual abertura ao infinito que nos atrai na tecnologia, ao mesmo tempo que nos enreda, como a um inseto na teia de aranha”.

E a herança de Jorge Luis Borges, argentino autor do conto Aleph, perpassa todo o livro.

Um Borges que pode ser manuseado, jogado como prompt no ChatGPT, enviado por WhatsApp. Vinícius Portella declara seu amor a esse mentor ao inseri-lo em sua escrita de forma orgânica, divertida, sem tentar ser um discípulo de forma anacrônica.

No conto que homenageia diretamente o argentino, a inteligência artificial surge como condutora de uma nova literatura que parece andar em círculos, em Pedro Gustavo, autor de Ficções.

Referências pop e alusões à saúde mental sob ataque nos dias de hoje, questões de gênero e identidade se entrelaçam em ficções sobre esse humano digitalizante.

Em 366.GGR, Portella dá um salto rumo ao desconhecido e solicita Borges em imaginações de uma outra realidade, que poderia ser verdadeira, mas só até certo ponto.

Em O Sr. Denner Voltasso não entende, um político jurássico ganha ares de Rei Ubu, em que o teatro do absurdo soa muito familiar, possível e saído do noticiário atual.

Tinder, Reddit, redes neurais tornam-se amálgama literário e uma boa companhia de leitura. O leitor fica curioso para receber mais contos que o atualizem quanto às novas tecnologias, ao mesmo tempo em que tragam pílulas de releitura literária e assim o ajudem a situar-se nesse mundo em transformação do qual já não sabemos se fazemos parte.

O inconsciente corporativo
Vinícius Portella
DBA
210 págs.
Helena Carnieri

É mãe da Catarina e do Ivan. Nasceu em Curitiba (PR), em 1978. Estudou jornalismo e Estudos Literários (UFPR), além de relações internacionais e economia. Publica reportagens especiais nos jornais Valor Econômico, Folha de S. Paulo e portal UOL, e crônicas em A vida é palco.

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