Bordados sem risco

Os contos de “O senhor das horas”, de Autran Dourado, são promessas que não se cumprem e condenam o leitor à frustração
Autran Dourado não coloca em prática seus próprios conselhos.
01/03/2007

Não é apenas a obra de Autran Dourado que possui leitores fiéis e sinceros admiradores, mas também suas idéias sobre o fazer literário, reunidas em Uma poética de romance (Matéria de carpintaria) e O meu mestre imaginário, ambos publicados pela Rocco, nos quais o escritor mineiro reúne a planta baixa de alguns de seus romances, respostas aos críticos que acusaram seus livros “de não terem unidade de composição” — segundo Dourado, “viciados num tipo de leitura, apegados a um conceito de unidade horizontal e espacial, linear”, não teriam compreendido sua busca de uma “unidade de tônus, vertical e temporal” —, divagações sobre literatura e, inclusive, conselhos de ordem prática, discutíveis, supostamente ditados pelo mestre imaginário do escritor: “Se alguém lhe diz ou lhe aponta um defeito qualquer, a repetição, por exemplo, você tem duas coisas a fazer: 1º) obedecer ao crítico e não repetir; 2º) repetir de maneira tão radical que o que podia ser um defeito possa vir a tornar-se uma virtude”.

Em Uma poética de romance, no capítulo 5, Autran e seu mestre discutem a questão da tônica da narrativa e acabam, en passant, tratando do conto, trecho no qual Edgar Allan Poe e sua teoria do “efeito único” são recordados. Mas o debate volta-se rapidamente para o romance, e enquanto Dourado tende a apoiar Boris Eikhenbaum, para quem “o romance de uma certa forma pede uma queda depois do clímax”, o mestre imaginário aferra-se em defender Edgar Allan Poe (como se Poe tivesse escrito romances…). À parte a idéia de que “a tônica narrativa muda de acordo com a concepção e a maneira de ler e a época” — tese que mereceria uma análise detalhada, no mínimo, por, parcialmente, misturar alhos com bugalhos —, a conclusão do escritor, apesar de longa, merece ser transcrita:

A tônica é a memória. A memória do autor e a do leitor, cuja colaboração e identificação são solicitadas. O leitor deve guardar bem na lembrança os focos essenciais ou motivos, a fim de que consiga uma leitura não apenas linear mas focal, em que a linha narrativa ou centro de interesse se desloca. Assim o autor tem a pretensão de exigir do leitor mais de uma leitura, a fim de que ele ‘arranje’ dentro de si uma linha narrativa própria, em que encontre o desenho do livro, enfim — descubra o risco do bordado que o autor traçou, o plano ou estrutura narrativa subliminar.

Tais idéias parecem funcionar nos romances do autor. Mas em O senhor das horas, seu último livro, temos a impressão de que Dourado tenta empregar a mesma técnica nos contos que compõem o volume.

Capítulos de romance
Ao lermos, por exemplo, O senhor das horas, narrativa que abre o livro, deparamo-nos com o coronel Domingos Monteiro sentado na sua sala de estar, olhando para o relógio-armário que havia comprado do espólio de João Capistrano Honório Cota e refletindo sobre o inexorável passar do tempo. A partir desse ponto, os acontecimentos se sucedem, perfeitamente encadeados por uma voz que conhece bem a arte de ir e voltar no tempo, mas destituídos de qualquer relação de causalidade. O narrador apenas justapõe as cenas, ligando-as pelo fio da memória ou pelo impulso de narrar. Assim, quando chegamos ao final, percebemos que todo o nosso esforço de atenção resultou inútil: ali há uma promessa de história ou várias possibilidades de história colocadas lado a lado, nada mais.

Quando se trata de um conto, o leitor experiente busca a narrativa em que um único acontecimento centraliza a trama e o final apresenta algum tipo de conclusão — ou aquele desfecho que sugere continuidade, típico de Tchekhov. No caso dos textos que compõem O senhor das horas, no entanto, por mais que nos esforcemos, é impossível descobrir qualquer “risco de bordado”; e se existe uma “estrutura subliminar”, ela permanece privativa do autor, exímio na arte de contar histórias, dando-nos a impressão, em alguns trechos, de que estamos reunidos em volta da lareira, numa velha casa de fazenda, ouvindo o ancião do clã, o guardião da memória, mas que se deleita em apenas narrar interminavelmente, sem a preocupação de estabelecer tensões e resolvê-las, migrando de um tema a outro, muitas vezes de forma errática.

E os leitores não pensem que estamos diante daquele tipo de conto, absolutamente tchekhoviano, no qual a atmosfera substitui o enredo. Não. Os textos de Dourado, inclusive, não poderiam ser classificados nem mesmo como mansfieldianos — recordando o breve mas fundamental ensaio O acontecimento, de Otto Maria Carpeaux —, apesar de se adequar a eles a conclusão, com a qual não concordo integralmente, que o crítico austro-brasileiro formula sobre os contos de Katherine Mansfield: “O que fica é, outra vez, a crônica”.

Assim, apartados da intensidade e da brevidade, talvez as duas principais características do conto, somos obrigados a repetir com Horácio Quiroga (em seu artigo, La retórica del cuento):

O contista que ‘não diz algo’, que nos faz perder tempo, e que perde tempo, ele mesmo, em divagações supérfluas, pode andar de um lado para o outro, buscando outra vocação. Esse homem não nasceu contista.

Mas e se essas divagações, digressões e ornatos sutis possuem em si mesmos elementos de grande beleza? E se eles, sozinhos, muito mais que o conto sufocado, realizam uma excelsa obra de arte?

Em boa hora, responde a retórica. Mas não constituem um conto. Essas divagações admiráveis podem luzir em um artigo, em uma fantasia, em uma comédia, em um ensaio, e com certeza em uma novela. Não cabem no conto nem, muito menos, podem constituí-lo por si sós.

É o que fez Autran Dourado: formulou impressões de um viajante da memória, compilações dos fatos curiosos de Duas Pontes, a sua cidade mítica, capítulos de um romance ou de uma novela que não se concretizaram, que não foram amalgamados, e não escreveu contos.

Adiamentos
Aliás, escreveu sim: um só, a narrativa que fecha o volume, O herói de Duas Pontes. Mas também aí encontramos a retórica que dilui os acontecimentos, que retarda interminavelmente o final, intrometendo-se no enredo, transformando o texto em um exercício de hesitação entre o conto e a novela, entre esta e o romance. O autor abusa do recurso de inserir novas histórias na narrativa central, a fim de protelar o desfecho. Quem leu As mil e uma noites conhece bem essa técnica, sem dúvida interessante, mas que não alcança o mesmo sucesso nos textos de Dourado, nos quais desvios e mais desvios nada acrescentam. Ele nos obriga, por exemplo, a conhecer as regras do jogo de bocha ou as minúcias das aulas de dona Ordália, e o leitor as deglute, certo de que iluminarão, em algum momento, este ou aquele trecho do conto, mas sempre se decepcionando ao final. Inclusive, no que se refere à bocha, a história da aposta entre Alessando Campari, o Xandoca Canarinho, e seu Gaudêncio Vasconcelos mereceria um conto à parte.

A linearidade — que não é um mal em si e da qual Dourado reclama em seu Uma poética de romance —, linearidade que ele buscará superar de todas as maneiras em suas obras, faz falta em O herói de Duas Pontes, quando jamais alcançamos o que o escritor deseja: “Uma unidade em que a cronologia (preciosa, caprichosa mesmo, labiríntica) e uma narrativa subterrânea se formassem difusamente, atingindo o seu vértice, ou vórtice, na consciência do leitor”.

Estilística particular
Mesmo a linguagem nos decepciona. Apesar das inúmeras possibilidades de verbos dicendi que a língua oferece, o escritor prefere utilizar apenas o “dizer”, criando nos diálogos uma sucessão cansativa de “disse”, “disse”, “disse”, cuja finalidade permanece como incógnita para o leitor aflito.

Há evidentes conversas com outros autores, como Proust — “[…] Para gozar da presença da mãe por mais tempo, ele forcejava por não dormir, acabava misturando a voz da mãe com as vozes dos sonhos, a doce e enevoada figura da mãe embalando o pensamento…” — ou Camões — “[…] os mesmos olhos ternos, a mesma vagareza e uma certa mansidão, o mesmo mover de olhos brando e piedoso”. Um recurso sutil, interessante, mas que pouco acrescenta aos textos.

Na verdade, Dourado pretende fugir “de um certo tipo de linguagem pomposa, enobrecida e retumbante”, como defende no Uma poética de romance, e abraçar o lugar-comum. “O lugar-comum em meus livros […]”, comenta o escritor, “é o lugar-comum mesmo, agrade ou não agrade”. Ao fazê-lo, contudo, o autor apenas segue outro tipo de retórica, maçante, que o condena a repetir os mesmos recursos. Quando, por exemplo, deseja acelerar o transcorrer do tempo, usa expressões que, de fato, são os seus queridos lugares-comuns, mas de qualidade e utilidade questionáveis: “de repente tudo velozmente aconteceu”, ou “o tempo passou ligeiro”, ou “os ponteiros do tempo avançaram mais depressa”, ou apenas “de repente”, ou, ainda, “pois os ponteiros do relógio do tempo andaram mais ligeiros, de repente”.

As teorias podem até ser inovadoras, mas aquilo que, para o autor, é uma concepção estilística particular — e que alcançou sucesso em seus romances e novelas —, transformou-se, nos textos de O senhor das horas, num estranho tipo de hibridez.

Vaga esperança

É evidente que Dourado nos presenteia com passagens deliciosas, como esta, de Memórias de um Chevrolet:

[…] Não me lembro mais de quando, nunca fui bom em matéria de data, do tempo medido pelos relógios, o meu tempo é o instável tempo interior, só meu, individual e intransferível, difícil de ser entendido pela razão ou recuperável pela vontade, e que só me vem à memória involuntariamente, nos momentos mais estúrdios e surpreendentes — este, sim, regula minha vida. Um desses acontecimentos que costumam figurar nas perdidas calendas da infância e que mesmo à incomensurável distância no tempo continuam a reger as nossas vidas. Um desses acontecimentos dignos de constar nos anais. Não dos Anais de Duas Pontes, que Ismael Silveira, poeta e escrevente de cartório, vinha compondo no espreguiçar das horas vagas, neutras ou vazias, mas dos anais translúcidos, fugidios e movediços da memória: a mesma mobilidade de preguiçosas nuvens no céu azulado, os anais diáfanos do vento.

Ou o aliciante começo da narrativa José Balsemão, no qual os leprosos de Duas Pontes surgem como figuras daquela mitologia fundada no medo, tão comum na infância. Ou, ainda, o humor e a leveza de Uma anedota de velório. Tratam-se, no entanto, de promessas que não se cumprem; narrativas sedutoras, mas que, terminado o trecho, ultrapassada a curva, quando uma nova paisagem se descortina, condenam o leitor à frustração e à incerta esperança de que Autran Dourado as transforme em um novo romance.

O senhor das horas
Autran Dourando
Rocco
140 págs.
Autran Dourando
Nasceu em Patos, Minas Gerais, em 1926, e reside no Rio de Janeiro há mais de 40 anos. Jornalista, ocupou o cargo de Secretário de Imprensa do presidente Juscelino Kubitschek, em 1954. Seu romance Ópera dos mortos foi escolhido pela Unesco para integrar a Coleção de Obras Representativas da Literatura Universal. Recebeu nove prêmios no Brasil e um na Alemanha, o Goethe de Literatura. Em agosto de 2000, recebeu o Prêmio Camões pelo conjunto de sua obra. A Editora Rocco tem, nos últimos anos, reeditado as obras selecionadas e revistas pelo autor.
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

Rascunho