Bomba silenciosa

Novo romance de Leonardo Padura passeia pela ficção e história, entre o real e o imaginário
Leonardo Padura Fuentes, autor de “O homem que amava os cachorros”
01/10/2014

Após minha corrida, iniciada antes das cinco horas da manhã, é a vez do passeio com meus cães, Dara e Moguay. Desses passeios resultaram algumas amizades, humanas bien sûr. Passear com cachorros antes de o sol aparecer permite desfrutar o silêncio, o ar quase puro e por vezes confundir o real com o ficcional. Nesses momentos meus cachorros conversam comigo. Geralmente nasce aí a primeira reprimenda que recebo.

Sempre entendi o cachorro, o animal, como uma metáfora que ainda se presta ao bem e ao mal.

Em O homem que amava os cachorros, de Leonardo Padura, o cachorro também pode ser “lido” como metáfora.

Uma investigação a partir de uma biografia. O investigador, Leonardo Padura; o biógrafo, Isaac Deutischer. O processo não é dos maiores, beira as seiscentas páginas. Na etiqueta pode se ler O homem que amava os cachorros. Os fatos e os quase fatos são narrados por Ivan, misto de escritor e veterinário residente em Havana.

Em 2004, Iván encontra um homem que passeava com seus cachorros. A partir de conversas com esse indivíduo, que receberá de Iván o apelido de “o homem que amava os cachorros”, vem à tona os últimos anos da vida de Leon Trotski, a história de seu assassinato, assim como a criação de seu carrasco, o catalão Ramón Mercader.

“O homem que amava os cachorros” faz revelações que permitem a Iván reescrever a história de Liev Davidovitch Bronstein, assim está registrado aquele que viria a ser conhecido por Trotski, comandante do exército vermelho e mais tarde exilado por Stalin, tão logo este assumiu o comando do PC e da União Soviética. Mas o processo não se resume à vida de Trotski, Iván também revela os passos de Ramón Mercader, catalogado como um ser “obscuro”, o homem da picareta, o assassino de Trotski.

Temos em O homem que amava os cachorros personagens reais, pessoas que existiram, sob a batuta de um narrador fictício. O leitor tomará contato com a preparação de um assassino e o estudo de extrema paciência a fim de levar a cabo o assassinato.

O narrador segue as pistas de Trotski e de Mercader, seu assassino, o célebre homem da picareta. Foi sua única missão, como militante comunista, acabar com Trotski. Nada é esquecido, do ingresso no Partido Comunista espanhol, passando pelo treinamento em Moscou, a nova identidade e as artimanhas para se tornar amigo de Trotski. Duas vidas e um sentido a partir da sombra da experiência de Ivan em Cuba, sua evolução intelectual e sua relação com “o homem que amava os cachorros”.

Embora o significado do que revela, Ivan é o personagem que menos importa na trama. Seu papel: retirar o véu da ilusão da revolução cubana após o desabamento da União Soviética e a destruição do muro de Berlim, que decretou o fim do comunismo, seja como ideologia, seja como suposta prática.

Memorialístico
O homem que amava os cachorros integra a lista dos textos de cunho memorialístico. Eles frequentam o espaço localizado entre o território da ficção e o da história, entre o real e o imaginário. Não está livre do questionamento básico: até que ponto o relatado tem compromisso com a verdade? Mas até que ponto a verdade é importante? Até que ponto apontar esta ou aquela verdade é mais importante que refletir sobre determinados fatos? A literatura memorialista é como uma peça de teatro em que o narrador, ator protagonista, representa mais de um papel. Eis que uma questão se impõe: a escrita memorialista tem o sentido de preservar a fugacidade de um evento? Seria esta sua função precípua, ou nada mais que mera catarse do autor?

Em seu livro L’Art du roman, Milan Kundera diz que o romance se esforça em revelar um aspecto desconhecido da existência humana, uma possibilidade do ser que se ignorava até então. Sem dúvida é isso e mais, muito mais: o imaginário ocupa um vasto espaço na literatura, não podemos desprezá-lo, a imbricação dos gêneros literários permite imensas áreas de expressão.

A discussão acerca dos limites da ficção e do real em literatura remete a Paul Valéry: “em literatura o verdadeiro não é concebível e qualquer tipo de confidência visa à glória, ao escândalo, à desculpa, à propaganda”. Cabe acrescentar que a aproximação do real com o ficcional, em qualquer instância, traz consigo um perigo bastante considerável, abalando uma das principais categorias literárias, o autor, sobre o qual refletiu Roland Barthes e não vou tomar seu tempo citando-o.

E por falar em autor, a obra de Louis-Ferdinand Céline jamais se separou de sua biografia. Suas posições políticas, seu racismo, sua agressividade e seu desprezo pela humanidade ainda hoje servem como preâmbulo à leitura de qualquer de seus livros.

Viagem ao fim da noite vaga incansavelemente entre o território da ficção e o da história, entre o real e o imaginário. Não está livre do questionamento básico: até que ponto o relatado tem compromisso com a verdade? Mas até que ponto a verdade é importante? Até que ponto apontar esta ou aquela verdade é mais importante que refletir sobre determinados fatos? A literatura, nesse caso, é como uma peça de teatro na qual o narrador, ator protagonista, representa mais de um papel.

Caro leitor, O homem que amava os cachorros permite leitura como confiável livro de história, a história é sempre uma abstração, como romance policial e como manual de traição.

Bem, chegou a hora do passeio ao entardecer com Dara e Moguay, os cachorros que amam a quem lhes dá de comer.

O homem que amava os cachorros
Leonardo Padura
Trad.: Helena Pitta
Boitempo
589 págs.
Leonardo Padura Fuentes
Nasceu em Havana em 1955, é pós-graduado em Literatura Hispano-Americana, romancista, ensaísta, jornalista e autor de roteiros para cinema.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho