Bom dia para os trapeiros de Baudelaire!

Maria do Carmo Campos pede emprestada a disciplina das matinas para um ofício novo: fazer poesia
Maria do Carmo Campos , autora de “Matinas & bagatelas”
01/03/2004

“Há o trapeiro que vem movendo a fronte inquieta,
Nos muros a apoiar-se à imitação de um poeta,
E sem se incomodar com os policiais desdenhosos,
Abre o seu coração em projetos gloriosos”
(O vinho dos trapeiros — Baudelaire)

É preciso escrever sobre a publicação de matinas & bagatelas (Ateliê Editorial, 2002) de Maria do Carmo Campos. Lançada no ano passado em Porto Alegre, a obra também já foi saudada em Portugal; foi apresentada em Lisboa, na Casa do Brasil, e em Coimbra, no Instituto de Estudos Brasileiros da sua célebre universidade. O acolhimento a essa obra de estréia de Maria do Carmo Campos no terreno da poesia deve passar pela memória afetiva do leitor e pelo reconhecimento daquilo que de melhor o texto literário pode lhe proporcionar — “o ato de ler, na medida em que vem apelar ao receptor por sua participação, acaba provocando suas memórias e nelas, suas posturas, seus sonhos, suas opiniões antes tão encobertas ou desconhecidas por ele próprio” (YUNES, Eliana. Pelo avesso: A Leitura e o Leitor in Revista Letras # 44, 1995).

O título aponta para a vinculação do fazer poético ao ofício religioso — “matinas”, embora no poema de abertura de Os mares da palavra, o tom seja divino graças aos efeitos da umidade de Netuno. Esta obra é um despertar. A autora também pediu emprestada a disciplina das matinas para um ofício novo, fazer poesia; das ninharias do quotidiano — bagatelas — soube valorizar o olhar do flâneur. No poema bagatela, acordamos a memória do trapeiro embriagado de Baudelaire, que parece tanto com os poetas, tanto um quanto os outros recolhem às vezes do que ninguém quer a substância para a sua sobrevivência.

Matinas & bagatelas é dividido em três partes —Os mares da palavra, A sementeira dos dias e As cores do mundo. Os dois últimos segmentos contêm o que há de melhor no livro. Apesar dessa diferença, na primeira parte, há um encantador Augúrios:

Dêem-me o poema
como a salada que não sei
preparar
e ele virá
variante da noite
em natais
e serões
da Ursa Maior.

Beleza que ensombra (e graças a Deus!) A morte de Tancredo Neves. Doce trapeiro, refreie os ânimos e deixe enterrar o presidente.

O eu poético anuncia um desejo e o vincula a uma inabilidade, ignora o modo de preparo de um prato conhecido pela simplicidade…, que bagatela! Podemos supor que, ao estabelecer a comparação entre a poesia, que é dádiva — “Dêem-me”, e um prato a ser preparado, aponta para a impossibilidade de encontrar uma receita eficaz. O poema nascerá da surpresa como convidado e alimento em um “serão” especial.

Outra realização que afirma o segredo da poesia, estou me referindo à síntese que inaugura o novo — ainda na primeira parte é Conto de fadas:

Um gato de botas
atravessa a superfície
das coisas

e perde o assento
na Academia
dos lugares comuns

O que há de provocador neste poema é a impossibilidade de um personagem conhecido pela sua astúcia e capacidade de se adaptar aos mais diferentes sucessos da vida não conseguir se achar em um centro identificado, no poema, com a mesmice. Maria do Carmo Campos é professora de Literatura Brasileira da UFRGS, conhece o brilhantismo e a mediocridade no meio acadêmico, o que há de melhor na sua poesia é a síntese e a superação do academicismo. É quando a autora, nitidamente apaixonada por grandes mestres, como Drummond, João Cabral, Guimarães Rosa, Camões e outros poetas, artistas e filósofos, consegue se libertar da citação que a sua poesia nasce nova. Por libertação não me refiro à ação de ignorar, mas de transformar, por isso o poema Je vous salue, Marie é mais significativo que Flor do Lácio. Neste último caso, o valor, ele existe, quero sublinhar, é a homenagem da professora às suas paixões. Entretanto, no caso do poema cujo título aparece emprestado de Godard, reconhecemos o parentesco, pois o eu provoca a memória do leitor aproximando seu poema do filme, mas passa a perna na nossa expectativa, pois nos surpreende com o seu “balanceado /[que] é mais que moleque/ garoto guri” (p.15).

Na segunda parte —A sementeira dos dias — a poesia cresce, é boa a semente. Esquivanças, Ótica, Descompasso, Negativo, Eclipse são exemplos desse crescimento. É interessante perceber que todos os títulos citados sugerem um desvio e que, apesar de Ótica não apontar a característica a partir do título, a leitura do poema confirmará o deslocamento. Quantas lembranças há em Esquivanças! “Busque Amor novas artes, novo engenho,/ Para matar-me, e novas esquivanças;” (Camões), pois Maria do Carmo acha ainda outras esquivanças:

Não cabe ao corpo o plano.

Os enganos que cometo
são, pois, metas
ou cometas

de um arco
que nem descrevo.

O desvio começa no corpo que não abarca todos os projetos e termina na impossibilidade de dar conta de objetivos de dimensões siderais.

Em Ótica, toda a ilusão provém da confusão dos corpos. O peso da dor e da distância a ser percorrida modifica o físico de um homem em projeto de ser — um menino que carrega o corpo morto do pai. A sua missão encena poeticamente a dor dos que a solidão surpreende. Não se trata aqui de opção, pois esta ausência é a daqueles que se vêem condenados a sobreviver aos entes amados. Sabemos que a morte não respeita etapas de vida, ainda assim a dor do menino comove porque adensa o estado de desamparo:

Coube a um menino
levar pela estrada
o corpo morto do pai
morto.

Mais que o peso do corpo
vergava-o a dor,
e a infinitude da estrada
o fazia torto.

O que poucos sabiam
é que os dois corpos
redesenhavam o caminho

confundidos numa só mancha
desde o início
da estrada.

São muitas As cores do minuto, terceira parte da obra, mas se houvesse distinções de tom não culturais, diríamos que a predominância seria o matiz feminino. Na Escultura que abre o segmento, dedicada à “Aphrodite,/onde ela estiver”, no princípio era o ventre, pois “Nada mais antigo/ Que um ventre/ De mulher.

Bela Adormecida, Alteridade, Calendário, Para Penélope, Ciclo da fêmea, Reprodução, Das flores e outros poemas apontam diretamente para sensações femininas culturalmente reconhecíveis: a menina que mal nasce já está presa ao destino dos “fusos”; a mulher que perscruta as “cores arlequins” da criança que brincava de ser mulher; o tempo acertado pelo corpo e pelo ritmo do telefone que pode ou não tocar “cravos/ bem-me-queres”; o tecido que não representa a espera, mas o caminho da mulher que se decide, enquanto prepara um café; o desenho de um percurso maternal; o eu que segura os óculos do outro na esperança de que ele recupere o foco desejado e, por fim, o ciclo natural que não pode viver uma primavera eterna a combinar com a mudança da relação afetiva.

Não é possível ignorar as referências culturais da professora na obra da poeta, já afirmei que a densidade dessas afeições convive para o bem e para o mal na sua poesia. Em Portugal, a sua estréia foi saudada e conheceu “parentes” ilustres, ou seja, vinculações ora evidentes, ora mais dissimuladas. A recriação do mais evidente e a dissimulação são sempre mais interessantes. No poema Eclipse, o eu propõe uma fuga — “Foge das multidões arco-íris/ rostos opacos/consumidos/em narcóticos/ Fliperamas (…)” e propõe:

Antes a clara multidão da rua
dos bares
dos parques
do circo
onde Pierrô sem fantasia
ainda sabe seu contorno
e o palhaço com as próprias pernas
carrega a cor e a dor
de ser um tal.

É uma preferência espacial que escamoteia uma referência temporal. Afinal, ao superlativo do mundo que negocia gente na TV, ou seja, o nosso presente, o eu prefere um mundo outro, claro e inventivo (sem guardar paradoxo), como a memória apaixonada que visita o passado, um mundo em que era possível o gozo dos próprios papéis. Nessa aventura que evidencia a felicidade magoada que chamamos de saudade, a memória do leitor aciona um Sidônio Muralha que sonha com O homem dos balões:

No Jardim da Estrela, quando estrelas havia
e os sonhos nos alçapões,
havia um espantalho carregado de poesia,
havia o homem dos balões.

Ele vendia a alegria, vendia
a confiança no sorriso breve
de cada balão que subia
colorido e leve.
(…)
No Jardim da Estrela, quando estrelas havia,
havia a ternura, havia o afago
do homem que vendia, vendia
balões à beira do lago.

E a vida dançava, a vida corria
nas translúcidas canções
dos garotos que bebiam a poesia
e que compravam os balões.
(…)
— só a lembrança perdura.
(MURALHA, Sidônio. Obras completas do poeta. Lisboa: Universitária, 2002)

Esse homem que vendia balões é “parente” do “Pierrô sem fantasia” na minha leitura, sem que Maria do Carmo tenha de citá-lo. A preferência do eu pelo mundo do palhaço que sabe ser quem é uma fenda que pretende eclipsar poeticamente o mundo narcótico, mesmo que seja só na lembrança. Não nos esqueçamos de que na poesia é esse mundo que perdura.

A poeta escolheu para o fim um exemplo de realização do trapeiro de Baudelaire que seleciona a matéria da sua sobrevivência. “A insígnia e os elementos” revela uma biografia poética: “Do teu peito ao meu”, a começar pelo leitor, que dá significado às “ondas, arroios, riachos e ribeirões” em uma obra que não disfarça o grande amor à lusofonia (não disfarça nem que “Montréal” é tão belo…) e a alicerçar-se na “terra”, não dura… “areia”, misturada com “água”… “barro”, afogueado por Prometeu… os homens, “legiões”:

Do teu peito ao meu
Saltam brasas
Brasões
Churrascos
E chimarrões.

Do teu peito ao meu
Chagam ondas
Arroios
Riachos
E ribeirões.

Do teu peito ao meu
Voam ventos
Assopros
Minuanos
E furacões.

Do teu peito ao meu
Passam a terra
A areia
O barro
As legiões.

A qualidade dessas “matinas” promete uma tarde cheia de tons. É aguardar que a poeta cumpra a promessa nos próximos livros.

Marcella Lopes Guimarães

Professora Associada II de História Medieval na UFPR, membro permanente do PPGHIS/UFPR, Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq. Escritora e criadora do blog Literistorias.

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