“Não tem mais nada acima da banalidade. Nem a morte. Em Foz, vai-se a velório de bermuda.” June diz essa frase no Dallas Hotel — de comodidade e pretensão moderada — depois de trepar preguiçosamente com Max. Ambos acabaram com os chocolates da cesta sobre o frigobar. Apaixonados no fim da juventude, Max e June se reencontraram no estacionamento do supermercado Nova Canção, na pequena cidade de Monte Castelo, a sessenta quilômetros de Londrina, região norte do Paraná. June, que não é confiável, se veste mal, não bate bem, só pensa em sexo (segundo as mulheres da cidade); que não é bonita, mas interessante (segundo ela mesma) — é June, larger than life, quem amarra o romance-bolero O inferno das frases de efeito, de Jair Ferreira dos Santos.
Planejado com calma e cuidado, o romance nasceu com a intenção de mostrar as transformações socioculturais de uma cidade interiorana no auge do primeiro governo Lula, conforme explica o autor em entrevista à revista Cândido, em 2015. Um capítulo chegou a ser publicado na revista paranaense Helena, em 2014. É neste capítulo (que permanece no romance agora lançado pela 7Letras), que encontramos uma palestra sobre bolero, o gênero musical:
(…) enquanto dança, o bolero pouco dramatizava, era quase lazer em torno do sofrimento destilado nas letras (…) praticamente não havia esforço no seu popular dois pra lá dois pra cá (…)
Já, nas letras, o gênero representava o que não gostávamos de revelar:
(…) abrindo o cofre secreto onde escamoteávamos nossa baixaria sentimental, nos obrigava a incluir o mais que vulgar entre as nossas verdades.
Um romance-bolero, nessa chave de interpretação, é o que O inferno das frases de efeito nos apresenta: um livro fácil e agradável de ler, em que se desenvolvem com habilidade várias linhas narrativas, num conjunto vivo e coerente — e nesse enredo, que fisga o leitor por sua fluidez, vai se revelando nossa “única, reles e maravilhosa humanidade subcontinental” e o desamor “imenso na solidão e na miséria latino-americanas”.
Tom de romance noir
Max Strasser, o narrador, aos cinquenta anos, volta a Monte Castelo atendendo a um chamado de seu irmão mais velho. Os primeiros capítulos têm um tom de romance noir: o personagem chega à cidade sem que saibamos claramente seus motivos, encontra uma velha conhecida (“loira e bela”) enredada num caso de infidelidade conjugal, e segue esbarrando em outras figuras daquele ambiente, num cenário que se revela cada vez mais nebuloso. Há um pai morto e inesquecível, há advogados, dinheiro e negócios escusos, há um peão quase morto em circunstâncias suspeitas. Essa trama vai se amarrar?, nos perguntamos durante a leitura. Crimes e traições se encadeiam num mesmo jogo sujo dos poderosos?
À medida que o romance avança, as respostas vão se mostrando mais realistas e melancólicas. Max, ex-poeta, é um homem apagado em meio às turbulências; os outros personagens são grandiosos, ele não. É o filho mais novo e pouco amado, é um funcionário público, é um meio-irmão. Seu olhar observador se mantém em baixo tom: ele tem a função de narrar. Max se encontra num mundo de meia-idade, as pessoas à sua volta envelhecem e enriquecem. Entre seus pares masculinos, que buscam ressuscitar a virilidade com mulheres mais jovens, Max redescobre o mistério da vida em June: sua vagina, a Capela Sistina, “cultuada como um instrumento de dominação”.
O título O inferno das frases de efeito ressoa em vários aspectos do romance. Logo no início, num avião atrasado e lotado, Max observa os passageiros à sua volta. Ele reflete que é “cretino, embora não desagradável, descrevê-los”. Na sequência, a descrição traz expressões empetecadas: “coque banana, estofado de autorrespeito”, “química abaunilhada dos fixadores”, “imitações que tanto lhe baixavam a crista”, “entrunfou-se, enroscando e desenroscando o dedo no seu colar de pérolas”. A alusão a Machado de Assis nos leva a suspeitar que o estilo poderia ser uma grande paródia. Entretanto, a opção estilística da narração vai se mostrando mais complexa, a partir do ponto em que a memória de Max nos apresenta seu pai, Celso Strasser. Este “parecia habitar algo semelhante a um grande romance não escrito”: Rio de Janeiro, anos 1950, Partido Comunista, Black Label, Zeppelin, Itamaraty — uma época de sonhos grandiosos. Celso se manterá teatral até na morte. Com trajetória mais modesta, o filho não herda do pai a grandiosidade, mas a nostalgia da eloquência.
Tal eloquência, agora, se dilui em novo padrão de riqueza em que “transmitir seu modo de estar no mundo” revela elegância. A mais jovem herdeira da família Strasser será decoradora. Em conversa com a colunista social da cidade, nascem reflexões ponderadas — a colunista, afinal, é mais inteligente que o narrador supunha. Buscar a riqueza ou abrir mão dela; ironizar os ricos ou compreendê-los — as escolhas se tornam menos graves, numa época de bonança (a história se passa em 2011). Max abandona seu emprego de servidor celetista para se tornar novamente o laranja da família, e tudo bem. O romance noir se transforma em bolero e caminha para a maturidade existencial: o narrador sobreviverá, em sua “assustadora liberdade em lidar com a solidão”.
Os leitores que conhecem os trabalhos anteriores de Jair Ferreira dos Santos encontrarão em O inferno das frases de efeito uma síntese da sensibilidade do autor, que se manifestava na ironia de seus contos, e na precisão afetiva de seus poemas; ao mesmo tempo irônico e afetivo, o romance nos apresenta um mundo que aceitamos amar em desconfiança. É assim, também, que Max pode amar June: seduzido por sua “psicopatia frustrada”, ele tenta compreendê-la, preso à vivacidade dela. Enquanto isso, June dorme, acorda, segue em frente como a vida.
Se o romance ainda pode ser o gênero literário do novo mundo, como se perguntava Bakhtin — a forma literária que reúne o passado acabado e o presente risível, e reflete as transformações da realidade em seu próprio inacabamento —, O inferno das frases de efeito é um romance à moda antiga: contemporâneo, adaptável. Um belo livro que nos traz “lições nojentas de aceitação” e bençãos misturadas.