A recepção da obra de Adelino Magalhães tem oscilado, desde a estreia do autor — em 1916, com Casos e impressões —, entre a indiferença e o elogio veemente. “Literatura para iniciados” e “precursor” são expressões encontradas nos que integram o segundo grupo, como Andrade Muricy e Murilo Araújo, autores de posfácios críticos à edição das Obras completas, de 1963. O primeiro compara Magalhães a Joyce, Lautréamont e Rabelais; quanto ao segundo, afirma:
Adelino Magalhães permanece ainda meio ignorado do grande público e da pequena crítica… Da pequena; porque espíritos de alta estatura consagraram-lhe estudos que o elevam às estrelas. Era justo que pasmassem “os que têm olhos para ver” com o caso desse rebelde, que, há trinta anos, quando a mentalidade do País era um açude parado esperando outros céus, surgiu diversamente de todos e de tudo. Trazia em germe as tendências que iam depois vir: arte de instintos, flagrantes, surpresas, dinamismos, relâmpagos cotidianos, individuação brasileira, reivindicações sociais. Era alguém, criando alguma coisa… Teria que crescer o curso desse destino.
Mas, no final do parágrafo que antecede esta citação, Araújo consegue ser ainda mais reverente e meloso:
[…] Esse estilo lembra o mato dos trópicos, onde os graves troncos se enredam nos graciosos bambus em vaia irônica assoviando ao vento. E se é confusa e estranha, é ainda mais surpreendente essa paisagem moral toda nova. O cenário da montanha compensa a árdua escalada. Mas para vencê-la são poucos os que conhecem os caminhos… Eis porque tão intenso artista e tão forte inovador não saiu muito além dos círculos intelectuais que lhe são próximos.
Ora, o discurso de que alguns escritores só podem ser compreendidos por iniciados nada explica e serve, principalmente, para fazer a fama dos medíocres. Não digo que seja o caso de Magalhães, mas sua obra, marcada desde o início com o sinal da dificuldade, acabou por cumprir o julgamento: serviu, nas últimas décadas, a alguns estudos reducionistas, prontos a exaltar qualquer experimento de vanguarda com um palavrório que se divide entre o não dizer ou o dizer obscuro.
Simbolismo
A hora veloz, publicado em 1926, é bom exemplo da produção de Adelino Magalhães, pois concentra erros e acertos de uma linguagem fracionária, adjetivo caro ao próprio autor: “Tudo em mim”, teria dito ele, segundo Murilo Araújo, “é fracionário: um turbilhonamento de anímicas frações”.
A epígrafe do livro explica não só o título, mas qual a pretensão do escritor:
Hora veloz, incontível, de tão arfante! hora veloz, em que mal se vislumbra pensar: hora veloz, durante a qual se gozam a pleno as existências, pois se não as consegue pormenorizar.
Apreender o momento em seus aspectos fugidios, deseja Magalhães — e não qualquer momento, mas aquele que, ao apresentar a “humana trajetória, para a Luz se impacienta”. Falta clareza a tal objetivo, delineado na linguagem impressionista e muitas vezes enigmática que ele nos oferece. Ainda assim, alguns trechos permitem ao leitor um entendimento difuso dessa pretensão.
Vejam-se, por exemplo, as cenas que compõem “Instável!… Glória ao transitório! (impressões de viagem)”. O autor almeja descrever o substrato, a natureza íntima dos diferentes tipos de viagem ou das diversas reações que o viajante experimenta. Incapaz de abandonar a linearidade da prosa e apegado ao desejo de captar apenas os momentos-chave, Magalhães, fiel à sua própria personalidade e a seu propósito estético, cria segmentos concisos e autônomos.
Nascem, dessa forma, textos extravagantes:
— Esguias torres… casario de incoerentes formas… diversas fisionomias… incidentes quantos… ora me aparece a passada visão através de um fastio morno.
Através da bruma de um fastio morno, a se alongiquar tudo: cada segundo, a se alongiquar…
Nestes parágrafos iniciais do capítulo, a imaginação, esforçando-se, pode descobrir informações preciosas ou… nada. Frágil, o escritor se coloca nas mãos do leitor e parece dizer: “Nem eu mesmo sei o que pretendo expressar”. Mas há exceções; como estas linhas, compreensíveis:
Carro-restaurante, poltronas, carro-dormitório, a correrem; a correrem, funções da vida, no vórtice.
— Viveremos em eterna semiconsciência.
Em nervos lassos de quem viaja em trepidante sonambulismo, viveremos um dia.
São anotações de um diário; promessa de uma crônica; instantâneos, apenas. Ou rascunhos de uma filosofia pessimista:
— Tudo tão célere nesta viagem!
Oh! tempo virá, em que se não verão mais, os homens. — Rápida, a extremo, será a trajetória.
— Plange, plange teu desconforto, irmão meu, a conjeturares o que virá.
Debuxar-se-ão sombras no cataclismo de tudo se ir.
Os fragmentos nascem carregados de fugacidade. De fato, é cômodo criar apenas certa atmosfera, pois a narração, a representação escrita que transcende a realidade ou abarca uma série de pensamentos, exige diferentes células interligadas de forma lógica, coesa. Mas essa unidade geral, essa sucessão de acontecimentos num enredo, é exatamente o que Adelino Magalhães nos recusa — por incapacidade, preguiça ou opção estética, seus biógrafos talvez esclareçam.
Murilo Araújo nos dá, contudo, indícios da técnica do autor:
Mal repassa o que escreve. Não têm rasuras os seus textos. E daí nascem justamente as obscuridades — duma expressão que é pura projeção de pensamentos. Fixam-se no papel, desgraciosos ou belos, jocosos ou tristes, com as palavras que primeiro suscitam. Escrevendo, ele olvida a pessoa com quem fala, para evocar somente a que fala ou a de quem fala. Monologa interiorizado.
O próprio crítico reconhece que obedecer a tal método significa “perder a transparência”. Entretanto, essa não é uma preocupação de Magalhães, pois ele está preso ao simbolismo que Jean Moréas definiu no manifesto de 1886:
[…] Por vezes uma personagem única se move nos meios deformados por suas alucinações, seu temperamento: nessa deformação aloja-se o único real. Os seres de gestos mecânicos, de silhuetas enubladas, se movem em torno da personagem única: não são senão pretextos dele para sensações e conjecturas. […] O romance simbólico construirá sua obra de deformação subjetiva, alentado por este axioma: a arte não saberia procurar no objetivo senão um simples ponto de partida extremamente sucinto.
Mais que um precursor das vanguardas europeias, como alguns estudiosos insistem, ou especificamente de André Breton, como bradam os mais ardorosos, Adelino Magalhães era, portanto, homem do simbolismo, tenha lido ou não Moréas.
Ironia
Contudo, nem sempre o escritor se deleita no hermetismo. Em A ansiosa espera e O ventre da Maroca Cabe-Tudo, os melhores textos do volume, encontramos um Adelino Magalhães disposto ao esforço de narrar.
Se descontarmos a adjetivação exagerada, a primeira narrativa consegue transmitir a angustiosa espera do idoso que se divide entre desejar o retorno do médium ludibriador ou aceitar a impossibilidade de contato com o neto morto. Por meio da linguagem reticente, o autor constrói a certeza de que se deixar enganar é uma forma de reencontro. São apenas alguns minutos num fim de tarde, à janela — mas o curso da história familiar e do passado próximo é recuperado de forma dramática.
O relativo preciosismo não consegue destruir O ventre da Maroca Cabe-Tudo. Apesar do texto atomizado, do exagero no uso de exclamações e dos adjetivos afetados — por que, desprezando a nitidez, usar “atassalhada” e não “difamada” ou “caluniada”? —, a perfeita construção do ambiente vulgar e a ironia salvam a cena:
— Oh! os trabalhos que a pequena dera, à Mamã Maroca Cabe-Tudo! Mamã a pusera a educar: em bom colégio: nada menos do que o Sacré Cœur.
Mamã tinha um medo infinito de que a menina se viesse a simpatizar com a “profissão”.
Conseguidos os meios, jeitosamente, pelo Pai (padrinho, aliás, nessa circunstância), a gentil Filó entrou para o educandário cristão aos sete anos: do educandário saiu aos dezesseis. Não houve remédio: teve de voltar à Escola Superior de Marocagem.
É pena que a história resvale, no final, para o dramalhão retórico:
Fulgiu um rasgo de maternidade no ventre sórdido! — A Ira irrefreável erguera a mão: a Mãe adivinhou e se lançou à frente da alvejada, com os dedos hirtos nas mãos alargadas, erguidas.
Mais que um texto com pretensões literárias, assemelha-se a certa estrofe do Hino Nacional.
Paráfrase verbosa
O livro, no geral, é decepcionante. Excelsior não passa de um somatório de arrebatamentos, em sua maioria bombásticos e incompreensíveis:
— Há no irrealizável, no inapreensível (excelsior!), no inatingível, na ânsia de desejar — há no Luminoso Impossível — um segredo!
Supremo que é, segredo dentre os segredos!
Excelsior!
Rebentarão um dia os mundos em notas de sinfonia! Sus! o magno segredo então desvendar-se-á!…
Pretende recriar a linguagem do êxtase, mas é mero enfileiramento de palavras. A via mística, entretanto, pode ser descrita; e Teresa D’Ávila o fez com sucesso — de forma clara — em seus poemas e no Livro da vida. Adelino Magalhães, ao contrário, prefere o circunlóquio repleto de exclamações.
É o que ocorre em Dies Irae: o escritor transforma o hino litúrgico do século 13, um dos mais belos poemas do latim medieval, numa paráfrase verbosa que dilui o texto original e cria um estertor de adjetivos, verdadeira lamúria.
Luciana Stegagno-Picchio, em sua História da literatura brasileira, de 1997, afirma, ao avaliar a obra do escritor, que “será mister deixar passar ainda alguns anos para que talvez, além da barreira dos pontos de exclamação e das reticências, se descubra em Adelino Magalhães um autêntico e singularíssimo escritor”. Decorridos 17 anos, não há mais espaço para “talvez”; chegou o momento de avisar aos interessados na literatura simbolista: leiam Anábase, de Saint-John Perse, lançado em 1924 — há uma boa tradução, de Bruno Palma, publicada pela Nova Fronteira —, mas evitem perder tempo com o bizantinismo de Magalhães.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Alcântara Machado e Laranja da China.