Biografia das solas de um pássaro com sede

Antologia de Fabrício Carpinejar pode ser lida como um novo livro, e mostra a força da dicção narrativa do poeta
Carpinejar: “Antologia costuma ser publicada quando o poeta está no estertor da carreira”
01/09/2003

Quem não é poeta e se mete a fazer versos meio por acaso, talvez nem se ocupe de pensar na grande quantidade e na não desprezível qualidade da poesia em língua portuguesa já existente. Nem falemos na poesia em outras línguas, que excede até nossa capacidade de imaginação e portanto é inabarcável em uma vida; fiquemos apenas com a poesia de nossa língua mesmo. Pois para aquele poeta despreocupado, essa massa de coisas escritas não aborrece, não constrange, não atrapalha, porque ele quer é dizer umas coisas, desabafar, chorar suas particulares pitangas. É um direito seu, tão certo quanto seus escritos não terem direito à condição de poesia.

Agora vamos pensar no candidato a poeta que cultive certo grau de informação em poesia. Trata-se se um sujeito leitor, que acompanha o fluxo da língua ao largo dos séculos, que freqüenta seu Camões, seu Cláudio, seu Cabral, seu Carlos, seu Castro, seu Chico, seu Caetano, seu Campos (que Deus o tenha) — para ficarmos apenas na letra c. O cara pensa em ser poeta, lê um tanto e descobre, aterrado, que tanto já se fez. Tanto que tonteia, paralisa e pode mesmo matar a vocação. Candidato a poeta com autocrítica e leitura é um infeliz.

Vamos ao grau máximo do problema: consideremos um candidato a poeta que tenha não apenas leitura, e portanto saiba do tamanho da encrenca que é achar um lugar para sua voz no meio do vasto coro da poesia já existente, mas que tenha simultaneamente um pai e uma mãe poetas, cada qual com vários livros publicados, leitores e dicção reconhecível. Pessoalmente, não consigo quantificar o quanto deve pesar isso tudo, que deve ser muito.

Algum otimista dirá que ter pais poetas facilita as coisas, e terá alguma dose de razão. Porque se os pais lêem o menino já tem ali, à mão, os livros, a tradição, o exercício de mexer em palavras, tudo isso que para quem não tem tal berço soa como raridade, como utopia. Mas o que me interessa aqui é sublinhar o lado negativo da equação: ser filho de um pai e de uma mãe poetas deve pesar uma enormidade.

Ocorreu isso com Fabrício Carpi Nejar — ele aglutinou os dois sobrenomes, um italiano e relacionado ao trabalho do carpinteiro (se bem que “carpire”, como informa o dicionário, é bem outra coisa: surrupiar, extorquir), e outro com cara de médio-oriental e ar de verbo de ação, para formar seu nome de guerra, Carpinejar. Filho de um dos bons poetas brotados no calor dos anos 60, Carlos Nejar, e de uma poeta sensível, de revelação tardia, Maria Carpi, Fabrício veio ao mundo da poesia com esses encargos, a que se soma a maldição do nome, que traz nas entranhas a memória do “fabbro”, fazedor. Sina pouca é besteira.

Tenho vários motivos para não postular distanciamento crítico em relação ao Fabrício. Nos cruzamos na faculdade, quando ele foi meu aluno num curso brevíssimo de literatura, era quieto e ainda não tinha nada publicado. Conheço seus pais há algum tempo (e fui professor de sua irmã antes de tudo isso). Para culminar, o Fabrício teve o pouco juízo de me tomar como orientador em seu mestrado, um belo trabalho sobre Manoel de Barros e João Cabral. Somos amigos, em suma, e isso certamente diminui as condições de frieza que um julgamento sereno requer.

Mas nada disso impede de falar sobre sua ótima antologia, recém-lançada, Caixa de sapatos. Ali, o poeta reúne o que lhe parece ser uma súmula de percurso, com poemas de seus quatro livros de até agora: As solas do sol (1998); Um terno de pássaros ao sul (2000); Terceira sede (2001); e Biografia de uma árvore (2002). Obra pouca, compacta e próxima no tempo, como se vê. Mas é uma obra respeitável, que tem a seu favor, antes de mais nada, um temperamento definido: é poesia que mistura auto-exame com comentário sobre o mundo. Talvez se possa mesmo falar de certa linguagem característica.

Vendo a coisa panoramicamente, Carpinejar parece ter desempenhado, na sucessão do tempo, um caminho que saiu do surrealismo para o realismo. O primeiro livro tinha muitas passagens obscuras, muitas e deliberadas inversões de sentido, tudo convergindo para uma sensação de leitura próxima do enigma, da opacidade. Os poemas não se entregavam, o sentido parecia estar em outro lugar, e o leitor (este leitor, ao menos) se sentia quase expulso do jogo.

Que a poesia não se entregue facilmente, é respeitável e mesmo desejável, ainda mais se tomamos a vigência da poesia-piada, que dilui as obscuridades no trocadilho simples. Fabrício estaria, assim, reposicionando as coisas — de resto, nisso ele parece associar-se a uma vigorosa família contemporânea, de poetas relativamente jovens, com grande cultura letrada e por vezes grande ousadia, que parecem dispostos a batalhas de fôlego largo: tendo abandonado as facilidades semipropagandísticas da poesia como efeito imediato, é um pessoal que parece disposto a medir forças com a tradição exigente, de índole formalista mais que qualquer outra coisa. (Estava pensando em gente como o já provado Carlito Azevedo ou como o novato Eduardo Sterzi.)

Mas nos livros sucessivos, Carpinejar ajustou as tarraxas de sua lira em favor de mais comunicação. Seus livros passaram a permitir a leitura linear, como quase-narrativas que eram: apresentado um personagem, ou ao menos uma voz, os poemas iam-se sucedendo diante dos olhos de um leitor mais e mais inteirado da intimidade de uma história, de uma biografia, naturalmente inventada. No segundo livro, a Voz era de uma primeira pessoa que tinha acabado de rasgar suas vestes, em desespero, e se dispunha a argüir o Pai ausente. Nem precisa dizer que essa voz e esse pai são a cara de nós todos, que alguma vez precisamos pagar o preço da individuação pela medição de forças contra alguém maior. No terceiro livro, a voz era a de um velho, a dar balanço de sua vida; no quarto, já o título indica algo, Biografia de uma árvore.

Na antologia, Fabrício deu um jeito de realmente buscar o seu melhor. Numa obra, como se disse, de dicção narrativa, ele teve o discernimento de buscar mais os poemas autônomos, ainda que tenha mantido um mínimo das informações de conjunto sobre aquelas vozes. De tal maneira está articulada a seleção que se pode dizer de Caixa de sapatos que é realmente um novo livro. (Ainda esses dias, Marcelino Freire comentava que o recente livro é simultaneamente uma seleção mesmo, espécie de recapitulação da carreira, e uma novidade, porque permite leitura consistente apenas nos limites sua extensão, em suas restritas 76 páginas, sem precisar conhecer os livros originais.)

Do primeiro livro, preservou os poemas menos obscuros, e nisso agiu bem, a meu juízo. Em vários sentidos, o que foi antologizado é a autobiografia de um tímido. Versos como “Aprendeu a se deslocar parado” e “O homem mínimo/ pressentia-se mirado” estão aí para mostrar. Também ficaram alguns poemas com a volúpia da grandiloqüência, que é um mérito e talvez um limitador de sua poesia. Tome-se um poema assim:

A roldana palitava
a boca da cisterna

e o pescoço da luz vestia
o poncho do vento.

O verbo no imperfeito é narrativo, o gosto pelas imagens está claro, assim como a habilidade no flagrante descritivo, que quer deslocar o leitor, obrigando-o a deslizar os significantes e os significados habituais uns sobre os outros, nisso se aparentando com Manoel de Barros, uma sua admiração.

Do segundo livro, a vários títulos mais maduro que o primeiro, ficaram poemas que só se consegue ler com certo travo de mágoa e infelicidade. Em poema que denuncia a ausência do amado pai, lemos o seguinte desfecho:

Vestia tua camisa.
copiando o ritmo
dos teus braços,

a respiração copiosa,
sendo meu próprio
e definitivo pai.

Também aí aparecem as virtudes e o preço da busca pela sentença, traço de sua linguagem em todos os livros, traço que alguém explicará por certa proximidade que sua poesia tem (ou procura) com os textos de sabedoria, em sentido amplo, e com poetas dessa família, de Pablo Neruda a, claro, Carlos Nejar. “Herdei tua solidão// e não posso humanizá-la./ Um segredo compreendido/ é um segredo morto”, diz a voz inventada por Fabrício no mesmo Um terno de pássaros ao sul, num desfecho que é também a moral da história.

Os dois livros mais recentes forneceram para a antologia um punhado de poemas ótimos. Para meu gosto, são particularmente felizes aqueles em que a poesia se expressa em forma de perplexidade e mesmo de paradoxo, indo além da inversão de sentidos e do mencionado deslizamento, que se faz por analogias mas também em chave alegórica. Pode parecer singelo, mas é consistente que um homem se pergunte, num poema que quer entender o preço da separação, assim: “Passei a vida aprendendo a respeitar teu espaço./ Como povoá-lo após tua partida?”. Da mesma maneira, faz sentido alguém se olhar no espelho e apelar para certo irracionalismo confessional, como ao fim de outro poema: “Até quando serei o que compreendo?”.

É de coisas assim, imagino, que Fabrício Carpinejar vai encontrando leitores, num tempo complicado para uma poesia como a dele, que tem afinidades com a tradição imagética e que precisa competir com a vastidão da oferta de imagens nos meios eletrônicos. Que ele venha se saindo bem nesta arena, desembotando a percepção de seus leitores e instilando neles um sopro de renovado lirismo, é uma notícia auspiciosa, para sua poesia e para a força da língua em que nos expressamos.

LEIA ENTREVISTA COM FABRÍCIO CARPINEJAR

Caixa de sapatos
Fabrício Carpinejar
Companhia das Letras
76 págs.
Luís Augusto Fischer

É professor de Literatura Brasileira na UFRGS e escritor. Autor, entre outros, de Filosofia mínima —Ler, escrever, ensinar, aprender (Arquipélago).

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